Les Routes de L’ Esclavage, 1444-1888
A memória, do passado para o futuro!


Les Routes de L’ Esclavage, 1444-1888

Les Routes de L’Esclavage, 1444-1888

K. M. Diabaté; I. García; M. J. Linhares; B. Sangaré; B. Sissoko; La Capella Reial de Catalunya; Hespèrion XXI; 3MA; Tembembe Ensamble Continuo; Jordi Savall

Alia Vox
AVSA9920

2016 / Livro + 2 CD + DVD


Chega finalmente a Portugal esta quinta-feira, 13 de Abril (na Fundação Calouste Gulbenkian), o concerto Les Routes de L’Esclavage, 1444-1888 - As Rotas da Escravatura - um programa dirigido por Jordi Savall, com os agrupamentos La Capella Reial de Catalunya, Hespèrion XXi, 3MA, Tembembe Ensamble Continuo, e um conjunto de solistas muito especial. Igualmente especial, diria mesmo histórico, é o âmbito temático deste programa delineado por Savall em meados de 2015, e que se encontra agora disponível numa magnífica edição.
Num cenário actual em que vivemos deparados com um confronto constante entre práticas de profundo humanismo e um desrespeito pelos direitos humanos de igualdade e igualdade, que se reflecte numa ameaça cada vez mais evidente à solidariedade social, às relações saudáveis entre povos, etnias e culturas, este programa assume-se como uma pedra preciosa da memória, numa lição do passado, para o presente e futuro.

O título é bem elucidativo da temática que serve de mote a este programa, que assenta num roteiro entre África, Portugal, Espanha e a América Latina. Um roteiro que conjuga as diversas rotas e jornadas a partir das quais se desenvolveu o monstruoso circuito mercantil da escravatura ao longo de 4 séculos. E, do passado ao presente, essa herança marca uma presença contínua neste projecto. A música em programa, que congrega cânticos tradicionais africanos, melodias populares da América do Sul, vilancicos negros, danças e improvisações, conciliando a variedade de sonoridades que poderão ter sido escutadas e executadas ao longo desse mesmo roteiro desde o século XV ao XIX. Por sua vez, o alinhamento musical obedece a um âmbito que vai desde a antiguidade até ao século XX, e onde a trajectória histórica não é linear, com episódicos momentos de fusão entre o passado histórico e influências populares do nosso tempo, facilmente constatável em Canto de Guerreiro, (faixa 11, CD 1), que parte de um caboclinho de Paraíba composto por Erivan Araújo.
O efectivo musical que se junta em torno deste projecto reúne essa mesma multiplicidade de origens e culturas. Além de Jordi Savall e dos seus 2 agrupamentos, a presença de músicos de origem africana e latino-americana é extensa: os cantores solistas Kassé Mady Diabaté (Mali), Adriana Fernández (Argentina),  Iván Garcia (Venezuela) e Maria Juliana Linhares (Brasil); os solistas Ballaké Sissoko (Mali), kora, e Driss El Maloumi (Marrocos) - acompanha Jordi Savall em inúmeros projectos há vários anos ao oud -, Rajery (Madagáscar) na valiha, o brasileiro Zé Luís Nascimento nas percussões.
A narração, já habitual em tantos programas de Savall, assume contornos teatrais, por vezes cénicos, estando ao cargo de Bakary Sangaré, actor francês que neste próximo concerto em Portugal será substituído por Alberto Magassela, moçambicano radicado no nosso país. Os textos recitados assentam sobretudo em passagens histórias, começando desde logo com a enunciação da expressão que consta da Política de Aristóteles que afirma: «A humanidade está dividida em dois: os mestres e os escravos». A partir deste mote desenrola-se um percurso que vai desde a Crónica do descobrimento e conquista da Guiné, onde se relata o primeiro carregamento de escravos africanos em larga escala (235), que chega ao Algarve em 1444, até ao ano de 1888, quando a escravatura é abolida no Brasil. Pelo meio, são revisitados relatos da música praticada pelos escravos na Ilha de Barbados (Caribe), a partir de um texto publicado por Richard Ligon em Londres, corria o ano de 1657, passando também pela literatura de Montesquieu, pela abolição da escravatura nas colónias francesas em 1848, e dando um salto a Why we can’t wait?, texto de Martin Luther-King em 1963.

hesperion xxi la capella reial de catalunya

A edição consiste num volume em livro [2 CD + DVD], de grande qualidade, repleto de conteúdos ao longo de quase 550 páginas. Curiosamente, num programa com grandes afinidades com Portugal, Brasil e a África “portuguesa”, parece-me um falta considerável o facto de a edição não incluir textos em língua portuguesa – o booklet compreende textos em francês, inglês, castelhano, catalão, alemão e italiano. Não seria uma novidade, uma vez que já em anteriores edições da Alia Vox encontramos textos em português, como é o caso da edição Francisco Javier [Baptista] (1506-1553): La Ruta de Oriente (AVSA9856), e faria aqui todo o sentido, uma vez que estamos perante um programa assente no perfume das línguas hispânica e lusitana.
A iconografia, como sempre nas edições da Alia Vox, é cuidada e de relevado interesse, neste caso assumindo contornos que nos deixam, por momentos, suspensos a meditar sobre esta pesada temática, como acontecerá a muitos dos que se deparam com as reproduções dos esquemas das navegações de transporte de escravos, onde podemos atestar como a engenharia de aproveitamento de espaço era levada a um extremo assustador e desumano.
A gravação vídeo e áudio resulta de um concerto a 17 de Julho de 2015, no âmbito do Festival “Musique et Histoire pour un Dialogue Interculturel”, que Jordi Savall dirige na Abadia de Frontfroide, em França.

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Com excelentes interpretações, este é um concerto deslumbrante, mas ao mesmo tempo um pouco melancólico, onde a celebração da igualdade e multiculturalidade acaba por estar constantemente ensombrada pela pesada herança da escravatura. Les Routes de L’Esclavage, 1444-1888 recupera a memória de um circuito triangular, entre a Europa, a África e o Novo Mundo, que marcou definitivamente a história da humanidade, e da desumanidade, onde a morte e o sofrimento avassalador e a imposição de vontades foram uma visita constante, muitas vezes contrariados pela esperança e resiliência cultivada através da música, dos cânticos e danças, como fonte de superação. Nesse sentido, este projecto assume-se como um dos melhores exemplos de como a música e a cultura são, também, um bem redentor e congregador, um canal privilegiado para a paz. E, partindo destas premissas, ninguém melhor que Jordi Savall para encabeçar um projecto desta natureza e dimensão.
Não há dúvida que dentro do vasto catálogo da Alia Vox, este será um contributo que assume um valor especial e monumental.
Absolutamente notável!

+ info: www.alia-vox.com

Performance:

Qualidade Sonora / Recording:

Aparato Editorial / Artwork & Texts:

Tiago Manuel da Hora

Tiago Manuel da Hora

Produtor e Musicólogo, autor de várias publicações, rubricas e argumentos para espetáculos musicais. Com uma intensa actividade no ramo da produção discográfica, assinando edições nacionais e internacionais, tem sido também responsável pela criação, direcção artística e produção de diversos concertos e espetáculos. É investigador do INET-MD da Universidade Nova de Lisboa, onde dedica as suas atenções ao estudo da produção discográfica.

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