Museu Nacional da Música em Mafra? Excelente ideia!
OPINIÃO, Edward Ayres de Abreu
Durante um concerto na Basílica de Mafra. Fotografia Incant'Arte.
Para surpresa minha, a esmagadora maioria dos meus contactos, dos meus conhecidos, dos meus amigos estão indignados com a ideia de transferir o Museu Nacional da Música para o Palácio Nacional de Mafra — ideia entretanto confirmada com a assinatura de um protocolo assinado em Janeiro passado e bastante discutida na imprensa: leia-se, por exemplo, de Sebastião Almeida, “Mudar o Museu da Música para Mafra é matá-lo ou dar-lhe uma segunda vida?” (Público, 07/03/2019); de Ana Paula Tudela, “Património e identidade: a propósito do Museu Nacional da Música” (Público, 07/03/2019); e, de Nuno Viegas e de Sandra Faria, “Uma ‘mudança criminosa’ ou o ‘lugar natural’: o Palácio de Mafra vai engolir o Museu da Música?” (Observador, 19/05/2019).
Creio, contudo, que toda a comunidade concordará com a necessidade de encarar a problemática localização actual do museu: não há espaço senão para mostrar cerca de um quarto da colecção e não há condições acústicas para a realização de concertos (não só pelas características arquitectónicas como pelo rumor que o metro provoca quando passa) — já para não falar do projecto museológico, ou da sua inexistência, que, na prática, reduz a utopia de um verdadeiro museu da música à triste categoria de montra-vitrine-mostruário de instrumentos engraçados, e que neste sentido envergonha até a própria distinção nacional com que o Museu da Música foi entretanto — e, pela importância da sua colecção, muito justamente — renomeado.
Alternativas haverá muitas, com certeza. No tempo de Gabriela Canavilhas, Ministra da Cultura entre 2009 e 2011, durante o XVIII Governo Constitucional, falou-se no Convento de São Bento de Cástris, em Évora, espaço magnífico e inutilizado. Por todo o país há exemplos assim. Lisboa não foge à regra e conta com muitos espaços subaproveitados. Compreendo, por isso, à superfície, as sugestões de alguns colegas: o Palácio das Laranjeiras, o Palácio Foz, o Palácio Pombal. Neste ponto, porém, observando estritamente a qualidade arquitectónica, patrimonial, o potencial cultural e turístico, a natureza histórica dos espaços, acho, pessoalmente, que a opção Mafra é incomensuravelmente melhor do que qualquer outra.
Primeiro, sou militantemente a favor da descentralização e entristece-me profundamente ler argumentos pró-Lisboa com a justificação de que Mafra é demasiado longe. Perdoem-me a sinceridade, mas custa-me imaginar ideia mais provinciana. Haja bom-senso, pardeus: Mafra fica a meia-hora (trinta minutos!) de Sintra, de Amadora, de Torres Vedras, considerando o automóvel como transporte. Do centro de Lisboa dista quarenta minutos, quarenta quilómetros.
Em Paris, quarenta minutos é a distância em transporte público entre a Torre Eiffel e o Cemitério de Père Lachaise, entre Sacré-Coeur e a Bibliothèque nationale de France. Em Londres, é a distância entre o Hyde Park e o Tate Modern, o Jardim Zoológico e a Tower Bridge, em Roma entre o Vaticano e as termas de Caracalla, no Rio de Janeiro entre o Paço Imperial e o Leblon; se quisermos, em Lisboa, é a distância entre o Parque das Nações e Belém; e se fizermos as contas pensando em transporte individual esta duração aumenta tragicamente em horas de maior trânsito. Nesta óptica, e à escala nacional, não pode sequer falar-se exactamente em descentralização, porquanto Mafra é na verdade uma localidade próxima de Lisboa e encontra-se na região centro do país. Claro que, de Lisboa a Mafra, não há a conveniência do metro, não há autocarros rápidos e frequentes; por outro lado, recorde-se, também não costuma haver muito trânsito. É seguramente mais barato, assim, cruzar Paris de metro do que viajar de carro entre Lisboa e Mafra, e será seguramente mais prático cruzar Londres de bicicleta do que organizar-se uma viagem em função da limitada tabela horária de transporte alheio — mas não será necessariamente mais demorado e, de resto… algum de nós-lisboetas planeava ir ao Museu Nacional da Música todos os dias…? Mas, sobretudo, como é possível que isto seja sequer uma questão para nós-lisboetas se falamos, em primeiro lugar, de um museu… nacional?
Aqui chegados, deparamos com outro ponto sensível: o do público. “Ninguém vai até tão longe para ir assistir a um concerto no Museu Nacional da Música!”, diz-se. Reservo-me, quanto a isto, aos números conhecidos: o Palácio Nacional de Mafra recebeu, em 2018, 340 695 (trezentos e quarenta mil, seiscentos e noventa e cinco) visitantes. O Museu Nacional da Música foi visitado por 16 043 (dezasseis mil e quarenta e três) pessoas. Não teço, para já, mais comentários.
Outro argumento, para mim o mais insólito: “Mafra não tem ligação histórica à música”. Mas quais são, afinal, as intimíssimas, transcendentais, profundíssimas e inalienáveis ligações históricas entre a Colecção Berardo e o Centro Cultural de Belém? Entre a Casa da Arquitectura e a Real Vinícola? Entre Paula Rego e a Casa das Histórias? Entre o Museu do Dinheiro e a antiga Igreja de São Julião? Entre o Museu do Oriente e um edifício portuário que serviu como armazém de bacalhau? Entre o Museu Nacional de Arqueologia e um convento de jerónimos? Entre o Museu da Marioneta e Madragoa? Entre o Museu do Design e da Moda e o n.º 24 da Rua Augusta? Ligações haverá algumas, certamente; é possível tecermos relações mais ou menos arrojadas, mais ou menos líricas, entre quanto quisermos. Todos os discursos são, com maior ou menor talento, possíveis. O que me espanta é que, para Mafra, nem é preciso grande esforço poético para isso: só o facto de lá se encontrarem seis órgãos de tubos e dois carrilhões, construídos segundo tão historicamente original e peculiar projecto, é para mim razão bastante para justificar a ideia. O conjunto é único, é espantoso, é português, é musical. Ao visitar o Museu Nacional da Música, um turista, nacional ou estrangeiro, seria assim confrontando com uma colecção importantíssima de instrumentos, por certo historicamente reunida, na sua maioria, na capital do país, e seria também confrontado com este valiosíssimo património — e uma dimensão enriquece a outra. Nem a colecção do Museu Nacional da Música é lisboeta, nem o património visitável no Palácio-Convento é mafrense: estamos, em ambos os casos, a falar de tesouros nacionais.
Imagine-se uma visita guiada ao museu que explore as especificidades dos tesouros nacionais da sua colecção, e que termine junto de um dos órgãos, e (ou) de um dos carrilhões: que viagem magnífica através dos tempos e através de objectos e factos sonoros incontornáveis da nossa história! Estaria melhor o Museu Nacional da Música no Conservatório Nacional só porque aí nasceu a sua colecção? Ou na Biblioteca Nacional só porque por lá passou? Ou algures em Lisboa só porque por lá foi construído parte do seu instrumentário, por lá foi sendo utilizado, por lá reunido, por lá foi ficando ao longo dos tempos? Considerá-lo é para mim equivalente a imaginar que o Museu Nacional do Teatro e da Dança devia sair do Lumiar e “regressar” às catacumbas ou anexos do São Carlos ou do D. Maria II só porque nestes teatros conheceram a vida tantos objectos da sua colecção. Se os instrumentos do Museu Nacional da Música passearam por Lisboa por mais de cem anos, essa é, para mim, precisamente, mais uma razão que justifica a sua migração para fora da cidade: chegada a hora de a colecção se tornar nacional, evite-se a todo o custo que ela fique na cidade por razões exclusivamente doméstico-mitológicas.
Durante um concerto na Biblioteca de Mafra. Fotografia Câmara Municipal de Mafra.
E, afinal, estamos sempre a falar de música, essa entidade supra-instrumental de que os objectos físicos emissores de som são apenas veículo. O contexto histórico de fabricação, de uso, de recolecção de grande parte dos instrumentos em causa pode até ser lisboeta, mas os instrumentos não são objectos inanimados. Os instrumentos serviram e servem os instrumentistas, os compositores, os ouvintes, em suma os viajantes do espaço e do tempo que se não confinaram à capital, muito menos se confinou à capital a arte, em sentido lato, que aqui se celebra. Um Museu Nacional da Música pretende-se reflexo histórico do fenómeno musical em contexto português, espelho dos seus músicos e dos seus públicos, das suas tradições diversas e plurais e dos seus legados. Se assim não fosse, e se o critério primeiro de localização da exposição passasse pela verificação estrita da origem das espécies, uma infinidade de questões se colocaria. A colecção integra guitarras de Domingos José Araújo: deverão estes instrumentos ir para Braga? Integra o piano que Liszt trouxe de Paris: deverá ele regressar à capital francesa? Integra um Lockey Hill que pertenceu a Guilhermina Suggia: atiramo-lo para o Porto? Integra fotografias de Tomás Alcaide, tenor alentejano de carreira internacional: que tal então pôr a colecção em Estremoz ou criar uma roulotte itinerante que apresente esta documentação no seu contexto histórico de enunciação? Integra adufes, berimbaus, uma flauta de pã, uma balalaika: o que têm estes instrumentos de lisboeta?
O defendido “contexto histórico” resume-se à sorte de estes instrumentos terem sido reunidos por coleccionadores que habitavam em Lisboa? Ora o que está em causa não é um Museu dos Coleccionadores de Instrumentos de Música: quando eu vou ao Museu Nacional da Música não procuro a fragrância, o perfume, o éter esotérico dos coleccionadores que se solta da aura dos instrumentos que eles reuniram; não pretendo captar o perispírito de Alfredo Keil nem psicografar as impressões espectrais de Michel’angelo Lambertini, não espero aproximar-me do miasma que porventura um sexto sentido pudesse pressentir de uma impressão digital de Carvalho Monteiro. Quero, simplesmente, conhecer melhor aqueles instrumentos, aquela documentação imensa, usufruir das suas maravilhas e encantamentos, aprender e crescer intelectualmente, e isto consegue-se com critérios de excelência museográfica, não com critérios de localização saudosista.
Por fim, o argumento que considero mais infeliz: transferir o Museu Nacional da Música para Mafra esvaziaria a sua rica e fértil programação — programação recheada de concertos oferecidos por músicos residentes em Lisboa que se não deslocariam até tão longe para tanto. Ora a crua realidade com que se debatem os profissionais da música em Portugal é a de um meio frágil em que o voluntariado é quotidiano e sistémico; movemo-nos contra uma sociedade ainda pouco consciente das incomensuráveis dificuldades de ofício que é ser-se músico. É preciso combater, hoje e sempre, a ideia de que música é passatempo. É preciso evitar o mais possível a banalização, a normalização deste tipo de ocorrências. Evidentemente, compreendo a generosidade de muitos músicos; também eu já contribuí voluntariamente para a referida programação, e com prazer venho contribuindo e voltarei a contribuir se a especificidade do contexto o justificar. Afinal, sabemos que o Museu Nacional da Música ainda não tem margem orçamental para remunerar os artistas que lá se apresentam em prol da divulgação e manutenção dos magníficos instrumentos da colecção; e, afinal, mantemos sempre a íntima esperança de que um dia a instituição se consolide, cresça e enfim responda condignamente aos princípios deontológicos elementares que qualquer comunidade profissional deveria poder esperar de um equipamento cultural público. Longa vida, por isso, a quem se preste voluntariamente a esta nobre causa, e longa vida à programação que daqui resulta; o que não se pode é, de todo, utilizar este estado excepcional como argumento na discussão que ora se trava. Manter o Museu Nacional da Música na capital porque, em Lisboa, há muitos músicos que não se importam de lá dar um salto graciosamente, é, ante a nossa classe profissional, solução danosa e ofensiva. Prefiro um museu longe e, em função das suas limitações orçamentais, humildemente curto de programação, do que um museu estrategicamente localizado em função da boa-vontade de músicos-mecenas.
Estes são os argumentos contrários que, para mim, pouco ou nenhum sentido fazem. Há um outro mais sério, real, preocupante: o das condições técnicas de manutenção dos instrumentos. Entre 1991 e 1994, a colecção achava-se encaixotada em Mafra, e bem sofremos só de imaginar quanto esse descaso custou à preservação dos instrumentos. É evidente que, hoje, a migração do Museu Nacional da Música para Mafra exige um grande investimento a curto prazo, de forma a garantir a viabilidade do espaço, adaptando-o às necessidades climáticas do acervo, bem como um investimento sustentado ao longo do tempo de forma a suportar os custos normais e quotidianos de climatização e manutenção. Nada que não se consiga com abertura e vontade intelectual, seriedade científica, rigor e profissionalismo: Mafra não é sinónimo de Gronelândia. Quando a dinheiro, acredito mais na capacidade de o Museu Nacional da Música reuni-lo num ponto nevrálgico tão visitado como aquele do que numa qualquer outra alternativa em Lisboa. No Palácio-Convento, o Museu Nacional da Música será parte importante e complementarmente indissociável do património pré-existente (e muito especialmente dos órgãos, dos carrilhões), e a opção de visitar o conjunto conventual e palaciano e o museu poderá ser alternativa bilhética aliciante para muitos. Na Rua da Betesga, o Museu Nacional da Música será, como foi até agora, e por mais pompa e confettis com que se engrinalde a sua (re)inauguração, apenas mais um entre mais de 50 (cinquenta!) museus lisboetas a competir por alguma visibilidade.
A razão porque acredito que esta migração seja bem-sucedida está nos números já apresentados. Mafra tem, desde já, muitos mais visitantes. É um pólo cultural muito preciso e de muito grande atractividade para nacionais e estrangeiros. Os concertos de órgão têm sempre lotação esgotada. Não há porque temer pouca adesão às actividades de um Museu Nacional da Música lá instalado. Pelo contrário: considero que a sua presença virá enriquecer o Palácio-Convento, para mim o mais escandalosamente subaproveitado edifício português de todos os tempos. O potencial de internacionalização do Palácio-Convento de Mafra, entretanto distinguido pela UNESCO como Património Mundial, será seguramente ampliado com a presença do Museu Nacional da Música — e vice-versa. Se ao espaço museológico se acrescentar o prometido Arquivo Sonoro Nacional, tanto melhor. Ainda há-de cumprir-se, assim, a vocação majestática daquele lugar, agora e para o futuro vertida em enérgica e concentrada celebração da arte, da cultura, da música.
Escusado será dizer que tanto esta minha opinião pessoal como as opiniões contrárias colidem, pesarosamente, com a falta de estudos e consequente discussão pública sobre as várias questões enunciadas. Quanto custa, exactamente, a migração do museu? Foram estudadas outras alternativas? Quais? Quanto custa hoje a sua manutenção, e quanto custará naquele ou noutro espaço? Quanto custará, aqui ou ali, a garantia de conforto higrotérmico dos delicadíssimos instrumentos musicais? Há estudos sobre o impacte do museu junto de determinados públicos no passado e no presente? Há estimativas para o futuro? Há soluções de bilhética, há integração em algum circuito? Prevê-se alguma melhoria em transportes colectivos em torno da nova localização? Onde estão as análises comparativas? Que projecto museológico está previsto? Que projecto de gestão cultural se ambiciona?
Eis as questões. Precisamos de respostas. Se, à partida, não posso senão aplaudir a intenção, desejo impacientemente que ela seja acompanhada de investigação, método, discussão. Como princípio, a ideia de um Museu Nacional da Música no Palácio Nacional de Mafra é, para mim, a melhor coisa que poderia jamais acontecer àquela nobre colecção, há tantos anos a requerer atenção e cuidado. O Palácio-Convento é um espaço amplo que parece oferecer à colecção possibilidade de crescimento, é por natureza digníssimo, é patrimonialmente riquíssimo mesmo em termos musicais; hoje semi-abandonado, poderá ser, em dimensão e capital simbólico, um Louvre português em permanente devir; havendo adequada manutenção da colecção, havendo um trabalho crítico e contemporâneo de curadoria, havendo um projecto museológico e de gestão cultural aliciante que integre renovação e desenvolvimento, e que articule exposições contínuas e temporárias, a programação musical e a visitação com quanto de música já existe e já se faz em Mafra, estaremos seguramente perante, finalmente, um dos mais importantes museus de música à escala global.
Edward Ayres de Abreu
Edward Ayres de Abreu estudou Piano no Conservatório Nacional e Composição na Escola Superior de Música de Lisboa, onde foi aluno de Sérgio Azevedo e de António Pinho Vargas. Neste âmbito, frequentou o Conservatório Nacional Superior de Música e Dança de Paris enquanto aluno Erasmus, estudando com Gérard Pesson. As suas obras foram interpretadas pela Orquestra Gulbenkian, Orquestra Metropolitana de Lisboa e Grupo de Música Contemporânea de Lisboa, dentre outros agrupamentos. A sua ópera ‘Manucure’ estrou-se em 2012 no Teatro Nacional de São Carlos. É mestre e doutorando em Ciências Musicais — Musicologia Histórica pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Foi bolseiro da Fundação para a Ciência e Tecnologia. Como musicólogo foi distinguido com o 2.º Prémio do Concurso Otto Mayer-Serra (2017) da Universidade da Califórnia, Riverside, e com o Prémio Joaquim de Vasconcelos (2019) da Sociedade Portuguesa de Investigação em Música. É membro do CESEM, Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical. É membro fundador e Presidente da Direcção do MPMP, Movimento Patrimonial pela Música Portuguesa, no âmbito da qual tem concebido e coordenado diversos projectos editoriais e de programação musical, tais como a revista 'Glosas', dedicada à divulgação da música de tradição erudita ocidental nos países de língua portuguesa. Como orador tem colaborado, em aulas, cursos ou concertos comentados, com a Fundação Calouste Gulbenkian, Teatro Nacional de São Carlos e Instituto de Filosofia Luso-Brasileira.