Bach: St. Matthew Passion
J. E. Gardiner e J. S. Bach, há sempre sempre algo mais
J. S. Bach: St. Matthew Passion
James Gilchrist; Stephan Loges; John Eliot Gardiner; Monteverdi Choir; English Baroque Soloists; Trinity Boys Choir
Soli Deo Gloria
SGD725
2017 / 2 CD
Em 2017 registam-se 290 anos passados desde a estreia (apontada para o ano de 1727) da famosa e monumental Paixão Segundo São Mateus, BWV 244, de Johann Sebastian Bach (1685-1750), enquanto este era “Kantor” da Thomaskirche, Leipzig. Composta após a maturação do trabalho criativo em torno da anterior Paixão Segundo São João (1724/25) a obra que parte do evangelho segundo São Mateus (capítulos 26 e 27) tornou-se a grande referência no domínio da produção sacra de J. S. Bach, um predicado que pode ser perfeitamente extensível a toda a literatura de música sacra da história da música ocidental. A Paixão Segundo São Mateus é uma criação soberba, um exemplar único, onde se pode experienciar da melhor forma a fusão perfeita entre o génio criativo de Bach e a sua profunda devoção religiosa.
Hoje, 20 de Abril de 2017, dia em que Sir John Eliot Gardiner celebra o seu 74º aniversário, cai que nem uma luva a audição e apreciação da sua mais recente gravação com os agrupamentos Monteverdi Choir, English Baroque Soloists e Trinity Boys Choir, precisamente dedicada à grande Paixão de J. S. Bach.
Os mais avisados recordar-se-ão que remonta ao ano de 1989 a primeira gravação que J. E. Gardiner dedicou a esta obra, editada no catálogo da Archiv Produktion, e que constitui ainda hoje uma gravação de referência. Outros poderão argumentar que Gardiner passou os últimos 50 anos a gravar e interpretar a música de Bach. No entanto, a verdade é que esta nova gravação não é apenas mais uma, mas promete tornar-se rapidamente uma referência como uma edição de excelência em torno desta obra. E isso não apenas pelo facto de Gardiner conseguir trazer sempre algo de novo, mas também porque esta nova edição do catálogo da Soli Deo Gloria é muito mais do que um disco.
Se em 1989 Gardiner se fez acompanhar de solistas de grande nomeada - Anthony Rolfe Johnson, Andreas Schmidt, Barbara Bonney, Ann Monoyios e Anne Sofie von Otter – nesta nova gravação em concerto a 22 de Setembro de 2016, na Catedral de Pisa (no âmbito do Festival Anima Mundi), o tenor James Gilchrist (evangelista) e o baixo Stephan Loges (Jesus) têm uma performance notável, a par com uma qualidade interpretativa geral de grande nível, quer dos restantes solistas, quer dos 2 coros e orquestra. No entanto, se compararmos com a leitura de 1989, há neste nova interpretação uma maior liberdade e fluidez, uma leveza e diálogo entre diferentes forças (solistas, orquestra, coros) que resulta num registo menos pesado e mais celebratório, eventualmente também potenciada pelo momento em concerto.
A qualidade de som é de uma forma geral bem conseguida, com um recorte e clareza assinaláveis no que se refere à orquestra. No que se refere ao coro e solistas talvez poderiam ter sido evitados alguns problemas de fase que prejudicam a clareza tímbrica em certas gamas de frequências, sendo que há um predomínio de sibilantes, sobretudo nos ataques de determinadas frases que, se por um lado privilegiam a clareza da acentuação fonética da língua alemã, num disco que se pretende para uma escuta contínua tornam-se a certa altura demasiado presentes e objecto de distracção. Em todo o caso, essa é sempre uma de muitas opções que se tem de tomar numa captação ao vivo, ou mesmo num disco de estúdio. De qualquer forma, numa análise sumária, a gravação é globalmente positiva, excelente no trabalho de mistura do balanço final.
Esta é, sem dúvida, uma edição de alcance alargado. Na verdade, gravações da Paixão Segundo São Mateus é coisa que não falta desde largas décadas, para todos os gostos e feitios. Mas esta cabe num rol reduzido de edições que não se confinam ao registo fonográfico, mas que além de uma exemplar prestação interpretativa e artística, reúnem um conjunto de elementos que tornam o produto final em algo verdadeiramente imprescindível.
O trabalho que John Eliot Gardiner tem realizado em torno da música de J. S. Bach não começou ontem, mas nos últimos anos tem levado a cabo um conjunto ainda mais alargado de iniciativas, entre as quais se destacam a publicação do livro Music in the Castle of Heaven, passando pelo ciclo das cantatas que consistiu no projecto “Bach Pilgrimage” em 2000, registado numa série em 56 CD e num documentário fabuloso para a BBC - A Passionate Life - até uma discografia cada vez mais orgânica, que reúne em simbiose perfeita toda essa larga intervenção que tem empreendido e estimulado. Gardiner tem feito um trabalho notável de uma nova leitura da interpretação da música de Bach, com enfoque para o trabalho contemporâneo da interpretação histórica destas obras, num trabalho transversal, continuo e interligado entre a investigação, a prática performativa, em conjunto com musicólogos, historiadores, intérpretes, entre outros agentes. Daí é possível interligar esse património do passado a todas as valências que giram em torno da música na actualidade. É isso mesmo que acontece neste disco. É uma edição que faz parte de uma jornada, que testemunha um trajecto que não se resume à concepção e gravação do disco. Este álbum reúne conteúdos bibliográficos - excertos do seu livro sobre a vida de Bach, Music in the Castle of Heaven, servem como notas à margem – a par com preciosos testemunhos através da reprodução de algumas das notas de Gardiner em relação a ensaios e excertos de apontamentos no seu diário que levantam um pouco o véu daquilo que foi todo o percurso de preparação, interpretação e apresentação pública da obra, e finalmente o registo áudio em concerto gravado para a posteridade. De todo esse processo nasceu uma edição de grande valor histórico e documental.
A vida e obra de Johann Sebastian Bach foram sistematicamente estudadas e revisitadas ao longo de todo o século XX, em continuidade de um interesse despoletado no século XIX. E continuam a sê-lo até aos nossos dias, porque há sempre algo novo a descobrir. O mesmo se verifica no que diz respeito à interpretação da sua obra, um legado imenso registado para a posteridade em inúmeras edições discográficas, desde as pioneiras gravações de Nikolaus Harnoncourt e Gustav Leonhardt, e posteriormente através de uma plêiade de grandes intérpretes de sucessivas gerações, onde se destacam as edições fundamentais de Ton Koopman e da Orquestra Barroca de Amesterdão desde o final dos anos 70 e ao longo do restante século XX - destaque para a discografia editada pela Erato - passando por Philippe Herrewhege, Jordi Savall, e os seus agrupamentos, entre tantos outros. Neste elenco de grandes referências o nome de John Eliot Gardiner, do Monteverdi Choir e do English Baroque Soloists ocupam, sem sombra de dúvidas, um lugar cimeiro.
Este disco é uma perfeita prova disso. Uma edição imperdível!
Performance:
Qualidade Sonora / Recording:
Aparato Editorial / Artwork & Texts:
Tiago Manuel da Hora
Produtor e Musicólogo, autor de várias publicações, rubricas e argumentos para espetáculos musicais. Com uma intensa actividade no ramo da produção discográfica, assinando edições nacionais e internacionais, tem sido também responsável pela criação, direcção artística e produção de diversos concertos e espetáculos. É investigador do INET-MD da Universidade Nova de Lisboa, onde dedica as suas atenções ao estudo da produção discográfica.