Arnolfo Borsacchi falando na primeira pessoa ao XpressingMusic
Na entrevista desta semana fomos ao encontro de Arnolfo Borsacchi. Para além de tentarmos conhecer um pouco melhor este músico/professor através do seu percurso e formação, iremos também ao encontro de um maior conhecimento relativamente a AIGAM - Associação Italiana Gordon para a aprendizagem da música. Esta é a única associação reconhecida oficialmente por Edwin Gordon para o ensino da Teoria da aprendizagem musical em Itália. Da mesma forma ambicionamos conhecer de forma mais aprofundada o seu trabalho no Brasil, nomeadamente no IEGAM - Instituto Edwin Gordon de Aprendizagem Musical.
Arnolfo, pode partilhar connosco um pouco do seu percurso profissional até aos dias de hoje? O que leva um saxofonista a aderir ao “movimento” da educação musical?
Tenho a certeza de que a minha paixão pela música nasceu na minha infância. Ainda tenho vivas lembranças das canções que eu cantava com a minha irmã. A brincar, nós gravávamo-nos para nos ouvirmos em seguida ou para mostrarmos aos nossos pais. Aos 8 anos tive um primeiro contacto com a guitarra clássica, que abandonei passado um ano porque o meu professor não encontrou maneira de sustentar a minha motivação. Aos 12 anos resolvi estudar saxofone, com o professor Andrea Coppini, de Florença. Paralelamente, depois do ensino médio inferior (aos 14 anos) resolvi, em conjunto com os meus pais, continuar a minha formação no liceu clássico, não sendo esta uma escola musical, continuando a estudar saxofone e música particularmente. Foram os anos dos primeiros grupos e bandas, das primeiras “jam sessions” e em que pude ampliar os meus conhecimentos sobre a música.
O desejo de trabalhar com a música e a educação começou a surgir em mim muito cedo, acho que já a partir dos 18 anos. Penso que outra coisa que condicionou este desejo foi a minha experiência como escuteiro.
Estudei “Disciplinas da Arte, da Música e do Espetáculo” durante dois anos, na Universidade de Bolonha, faculdade que depois deixei para me dedicar ao estudo de instituições especialmente dedicadas à difusão das metodologias de educação musical. Foi durante esses anos que conheci, através do Andrea Apostoli (que depois fundou a AIGAM), a Music Learning Theory, de Edwin E. Gordon.
Desde 1998/99 estudei com Andrea Apostoli, Edwin E. Gordon e Silvia Biferale, em cursos de curta duração e, mais tarde, na AIGAM, que foi criada em 2000.
Em 2002 terminei a minha formação como professor associado e, em 2005, a minha formação como professor formador.
Em Itália, trabalho com educação musical desde 1998 e, em particular, com educação musical para recém-nascidos e crianças em idade pré-escolar desde 1999/2000.
Hoje os meus alunos cresceram e dedico-me também aos programas de educação para crianças com mais de 5 anos, trabalhando com atividades sequenciais de aprendizagem da Music Learning Theory (MLT) e com a educação instrumental. (Nunca vou deixar, porém, de trabalhar com aquela idade maravilhosa das crianças dos 0 a 5 anos!!)
Em 2009, com outras pessoas, ganhei o reconhecimento da Região Toscana “Boas práticas para a infância”.
Paralelamente, ocupo-me da formação de professores, sendo um dos docentes do Curso Nacional AIGAM para músicos e educadores musicais, da formação permanente dos nossos professores associados, dos cursos de atualização para educadores e professores que não possuem competências musicais específicas, da organização e da implementação das atividades formativas e de pesquisa (ao lado da Diretora Silvia Biferale, como Vice Diretor).
As minhas atividades de divulgação da MLT no Brasil começaram em 2000 e levaram, em 2010/2011, à criação, junto com o meu colega Wlad Mattos (professor da Unesp, músico e cantor) do IEGAM, Instituto Edwin E. Gordon de Aprendizagem Musical, através do qual, graças também ao reconhecimento do GIML (Gordon Institute for Music Learning -EUA) e da AIGAM, estamos a conseguir divulgar a MLT no Brasil de uma forma oficial e institucionalizada.
Em breve teremos a possibilidade de organizar as primeiras atividades de formação de longa duração no Brasil.
A sua entrega à educação musical é total neste momento, ou ainda sobra um tempinho para o Arnolfo Borsacchi instrumentista/performer?
Gostei muito desta pergunta. Estou quase completamente dedicado à educação musical e à formação mas continuo a trabalhar com o meu trio de saxofones “tritticotrio” e, vocalmente, atuo como músico-educador no quarteto vocal “Quarteto Gordon”, que criei junto com Wlad Mattos e Aline Romeiro, brasileiros, e Pier Elisa Campus, italiana.
Nestes últimos anos reforçou-se em mim a ideia de que não há separação entre as duas atividades: muito pelo contrário, nas atividades de educação musical baseadas na MLT (mas em todas as outras também) o gesto e a postura do educador deveriam ter sempre presente nos seus objetivos principais a procura da qualidade, da expressividade, da partilha emotiva que normalmente as pessoas atribuem ao artista.
Do mesmo modo o artista, mesmo sem o saber, desenvolve sempre um papel de educador informal.
Infelizmente é muito comum ver educadores musicais que se esquecem da necessidade de manterem um alto nível de musicalidade e qualidade artística enquanto atuam como educadores, formal o informalmente.
O facto de ter viajado por vários países, e de ainda o fazer, ajuda-o certamente a construir um pensamento consolidado e fundamentado sobre o estado da Educação Musical no mundo. Tem notado alguma evolução relativamente à forma como a Educação Musical é tratada pelos atores das nossas sociedades? Políticos, público em geral, músicos, professores de música apresentam visões muito distintas, ou até convergem em alguns pontos quando opinam sobre esta área da educação?
Esta pergunta é muito difícil. Aliás, é difícil responder de uma forma completa, porque seriam necessários tempos e espaços muito grandes. Vou tentar responder com algumas considerações gerais, portanto incompletas…
Geralmente não consigo encontrar uma única corrente de pensamento em relação à educação musical nas minhas experiências: isso acontece não só de país em país, mas especialmente dentro de cada país.
Esta diversidade toda depende, eu acho, das diferentes visões que as pessoas têm em relação à música em si, das diferentes funções que as pessoas acham que o processo de aprendizagem musical deveria ter, das diferentes maneiras em que as teorias de aprendizagem explicam o processo de aprendizagem musical e das ações que o mercado fez e faz para orientar o público em relação à ideia do que é a música.
Não vi uma diversidade de abordagens tão grande nos países em que viajei para trabalhar. Posso, porém, dizer que nos Estados Unidos (particularmente nos lugares que visitei) percebi claramente que o papel da música nas escolas é muito mais importante do que acontece, por exemplo, na Itália, onde a música é a “grande ausência” do currículo escolar.
O que consigo ver é que existe uma tendência muito grande nas pessoas para atribuírem à música a importância que pessoalmente desejam, em relação à vida, à profissão, à situação particular de cada um, às convicções filosóficas, ao roteiro de formação, aos universos simbólicos aos quais se entregam. É a partir destas ideias que as pessoas constroem, geralmente, as suas ideias sobre a educação musical também.
Os políticos, geralmente, têm um conhecimento técnico muito pequeno em relação à educação musical e precisam de confiar na ajuda de técnicos, caso queiram atribuir a este aspeto da educação uma qualquer importância: o problema é que a escolha dos “técnicos” já opera um recorte importante e uma seleção de rumo que afasta, simbolicamente, outros tipos de abordagem: os técnicos também têm as suas convicções e acabam por orientar as escolhas políticas de forma que as ações educativas prossigam em diferentes direções.
Muitas pessoas atribuem à música um papel muito importante no desenvolvimento do ser-humano e, aos poucos, estamos a conseguir fazer com que as pessoas tenham consciência de que a música, como objeto cultural difundido no mundo inteiro, com as devidas diferenças culturais, é algo que nasceu com o ser humano e que responde a uma necessidade.
Quase dois séculos, porém, de história, têm transformado a educação musical, desvalorizando o importantíssimo e necessário papel da aprendizagem informal e subordinando os conhecimentos musicais ao estudo das regras da teoria. Esta corrente ainda é muito difundida.
Geralmente este processo, junto com a excessiva exposição passiva à música por meio dos equipamentos de reprodução mecânica e eletrónica, contribuiu e ainda contribui para fazer com que o nível de competências musicais informais (afinação, sentido rítmico, ouvido etc.) médias das pessoas ficasse e fique a cada dia inferior: estas competências são geralmente aprendidas de uma forma sintética na primeira infância e na idade pré-escolar e, como é fácil observar, não podem ser desenvolvidas facilmente através de um estudo teórico.
Em certos países, os políticos, orientados por técnicos que acham que a música é fundamentalmente uma disciplina teórica e técnica apoiam ações educativas que caminham na direção que acabo de descrever. Assim, é comum, portanto, encontrar conservatórios, faculdades, escolas de alto aperfeiçoamento que criam músicos ótimos...porém o nível geral de competências musicais informais do povo fica sempre mais baixo, porque o valor atribuído às práticas educativas direcionadas a aumentar o nível de musicalidade dos demais é um valor “desvalorizado”.
Outras correntes, igualmente difundidas, acham que a linguagem musical, da maneira que a maioria das pessoas a vivencia, é algo obsoleto e ultrapassado: por isso os defensores destas ideias gostariam que as crianças lidassem com os conceitos e os parâmetros estéticos, harmónicos, rítmicos surgidos nas experimentações do século XX, sendo que estas inovações não foram ainda assimiladas culturalmente.
Isso gera práticas educativas interessantes, mas que fazem com que as crianças não encontrem facilmente conexões entre o que o professor ou educador propõe como experiência musical e o que o mundo de fora lhes fornece como experiência análoga.
Outras correntes, banalizando de uma forma extrema este último pensamento, misturam a educação do som com a educação da música, como se o nosso ouvido reconhecesse qualquer som como música. Deste modo é frequente ver educadores musicais que lecionam programas de educação musical dentro dos quais a música nunca está presente de uma forma consistente.
Os efeitos são análogos aos acima descritos.
Para concluir posso dizer que, para que algo mude, talvez seja necessário trabalhar para garantir às novas gerações o desenvolvimento de competências musicais informais de forma que continuem a atribuir à música um sentido e um valor grande e possam orientar, quando crescerem, as próprias escolhas políticas de forma que a música possa ser colocada de novo no lugar que merece dentro das culturas.
Ser professor e formador da AIGAM em Itália e, ao mesmo tempo, diretor de Estudos e Formação no IEGAM no Brasil coloca-o em contacto com duas realidades. São muito distintas? O trabalho que faz no Brasil é muito diferente daquele que faz em Itália?
A Music Learning Theory foi introduzida na Itália por Andrea Apostoli em 1998. Desde então a AIGAM desenvolveu-se muito e hoje chegamos a ter mais de 10.000 alunos em toda a Itália, muitos dos quais participam nas nossas atividades desde os 0 meses de idade (ou até mais cedo...) estando agora com 14 ou 15 anos.
Em Itália, como formador e vice diretor da área de pesquisa e formação da AIGAM, o meu trabalho principal (além das minhas 27 aulas semanais com as crianças, pois considero que nunca se deve perder o contato com a prática educativa direta!), junto com a diretora Silvia Biferale, consiste em organizar a formação dos nossos novos professores associados AIGAM e a formação permanente dos que já são professores AIGAM (quase 200 na Itália). Além disso, cuido da organização dos conteúdos das atividades formativas direcionadas aos educadores que não possuem competências musicais mas que pretendem propor boas práticas musicais nas escolas maternais, nos berçários e nas escolas elementares ou de outro grau.
A realidade da educação musical na Itália não é tão feliz como a visão de um estrangeiro, que na sua fantasia, vê a Itália como o país do Bel Canto. Temos grandes dificuldades e os governos têm-se esquecido há décadas do papel da educação musical.
A trabalhar desde 2000 na difusão da MLT no Brasil não encontrei dificuldades tão diferentes: no Brasil, porém, o desejo de crescer, de aprender, de conhecer coisas novas foi e é, na minha opinião, sempre muito grande e o entusiasmo gerado pelas recentes pesquisas e resultados tem, no Brasil, o poder de gerar um grande interesse e uma grande vontade de desenvolver boas práticas de educação e ensino.
Antes das nossas ações que levaram à fundação do IEGAM, hoje reconhecido oficialmente pela AIGAM e pelo GIML, a MLT já tinha chegado ao Brasil, mas ninguém teve formação adequada para a entender e desenvolver práticas educativas relacionadas diretamente com ela.
Ao contrário, alguns preconceitos e visões que prosseguiam numa direção paralela, e algumas vezes contrária ao pensamento do Gordon, fizeram com que as observações, as pesquisas e os resultados conseguidos por ele na sua pesquisa fossem trancados numa gaveta ou simplesmente colocados de lado ou esquecidos.
Isso aconteceu porque ninguém, ou quase ninguém, tinha tido uma formação ou contacto com o Edwin Gordon ou com alunos dele.
Atualmente o recém-nascido IEGAM ocupa-se cuidadosamente de gerar um interesse consciente em torno dos conteúdos teóricos e das práticas educativas da MLT dando apoio a cursos para crianças, realizados por professores formados, ações de “info-formação” para músicos e de formação para educadores, além de eventos para pais e famílias como os Primeiros Concertos, realizados pelo Quarteto Gordon.
Em breve lançaremos o Iº Curso Nacional Brasileiro de formação “A aprendizagem musical da criança dos 0 aos 6 anos na ótica da MLT de E.E.Gordon”, que será ministrado por professores formadores da AIGAM e do IEGAM e será realmente o primeiro evento oficial de longa duração tendo por finalidade a divulgação da MLT no Brasil.
Para responder definitivamente à sua pergunta, posso dizer que o trabalho no Brasil é, por enquanto, preparatório à realização de uma estrutura formativa que vai ter muitos pontos de contacto, especialmente em função da manutenção de um elevado nível de qualidade, com a estrutura da AIGAM.
Deseja destacar alguns dos nomes que o apoiam no trabalho realizado entre estes dois países?
Com muito prazer!
Antes de tudo tenho que agradecer ao Prof. Gordon que sempre apoiou as minhas ações no Brasil.
Em Itália sempre recebi o apoio total dos meus colegas e professores da AIGAM: o Presidente Andrea Apostoli e a Diretora da formação Silvia Biferale.
No Brasil recebi o maior apoio dos meus colegas Wlad Mattos, Professor da Unesp, músico e cantor e Aline Romeiro, pianista, música e educadora musical.
Preciso agradecer também à Diretora do GIML, Jennifer McDonel, que nos ajudou na criação do protocolo de reconhecimento do IEGAM no GIML.
Nos meus primeiros anos de atuação no Brasil, em São Paulo, tive também o apoio de muitas escolas de música que confiaram no meu trabalho (como a Sociedade Kodály do Brasil, a Escola Forte das Artes, a Profª e pianista Laura Longo), de berçários e escolas maternais (entre outras a Escola Sigma de São Paulo). Tive também a possibilidade de dar algumas aulas de informação sobre a MLT aos alunos do Instituto de Artes da Unesp, graças à Profª Marisa Fonterrada.
Acho muito importante também lembrar e agradecer à Prof.ª Helena Rodrigues, que tratou da tradução e publicação de dois textos fundamentais de Edwin Gordon para português e que atualmente coordena, na Universidade Nova de Lisboa, um importante centro de pesquisa sobre a música e comunicação na infância. O seu trabalho com a Companhia de Música Teatral tem feito uma importante divulgação de propostas relacionadas com a MLT em Portugal.
Agradeço também ao Paulo Lameiro, autor dos “concertos para bebés” em Portugal, que desempenhou um papel inspirador importante para o nosso trabalho no Brasil, embora quem tenha uma ligação direta com ele seja especialmente o meu colega Wlad Mattos.
Edwin E.Gordon e Dina Alexander são nomes que estão sempre presentes naquilo que faz na sua vida profissional?
Com certeza. Mas preciso colocar os nomes do Andrea Apostoli e da Silvia Biferale ao lado dos dois que mencionou. A MLT foi introduzida na Itália por Andrea que, junto com a Silvia, aprofundou nos primeiros anos as possibilidades de atuação prática do modelo teórico e das indicações de realização que até então tinham acontecido nos EUA. Foram o Andrea e a Silvia que cuidaram da minha formação e que agora são meus colegas.
Aprendi muito com o Prof Gordon na Itália e com a Profª Alexander nos EUA, mas pude aproveitar a enorme sabedoria deles, especialmente porque a minha formação tinha acontecido de uma forma valiosa graças aos meus colegas italianos.
Por vezes ficamos com a noção de que se torna difícil justificar a pertinência da educação musical estar acessível a todas as crianças. Quais as razões que pensa estarem na origem desta falta de compreensão dos pais, dos políticos, e da população em geral?
Acho que esta pergunta tem uma ligação muito grande à terceira questão desta entrevista.
Acho que a falta de compreensão da importância de cuidarmos da educação musical das crianças depende de uma visão que considera a música como uma disciplina destinada a poucas pessoas.
Não é assim. A música é uma linguagem expressiva que os antropólogos têm colocado dentro dos “humania universalis” - existe em todas as culturas e nasceu com o ser humano. Por isso podemos dizer que a música é algo que responde a uma necessidade expressiva, que é uma necessidade de todos.
Desenvolver a capacidade de se expressar musicalmente a nível informal é algo que deveria acontecer naturalmente, graças a mecanismos de transmissão cultural baseados na relação e na intersubjetividade.
As crianças podem aprender música informalmente se crescerem num sistema de relações em que os modelos educativos delas atribuem valor à música e sejam modelos ativos de linguagem musical.
Devemos interrogar-nos sobre o porquê deste processo, que antigamente funcionava de uma forma “automática” através dos mecanismos da cultura oral, agora se encontrar numa crise muito grande, e isso não só a respeito da música mas também de outras formas de conhecimento.
É importante, portanto, trabalhar para que os pais e os educadores tomem consciência da grande importância do trabalho que eles fazem informalmente, de forma mais ou menos estruturada, para contribuírem para a absorção do valor da música sendo modelos, para as crianças, de pessoas que gostam de música, que apreciam a escuta, que gostam de cantar, de tocar, de assobiar, que se emocionam com a música, que conseguem evocar sentimentos, imagens, ideias graças à música e que, claramente, conseguem dominar os conteúdos informais da música num certo nível de sabedoria, sempre informal.
Se conseguirmos fazer com que também as pessoas que têm o poder de decisão sobre a educação tomem consciência de que a parte mais importante da aprendizagem musical acontece informalmente e constitui a base para o acesso aos programas específicos de ensino musical, o nível médio de competências musicais das pessoas voltará a subir.
Pode explicar aos nossos leitores e seguidores a importância dos concertos para a infância? Que mais-valias poderão advir destas experiências?
Preciso, antes de tudo, de dizer que a ideia de realizar concertos para a primeira infância não nasce com as atividades do IEGAM. Em Portugal, a partir de 1998 e em Itália alguns anos depois, Paulo Lameiro (“concertos para bebés”) e Andrea Apostoli (“Che orecchie grandi che ho!”), alunos de Gordon, desenvolveram maravilhosos momentos musicais para pais e crianças, inspirados nos conteúdos e nas modalidades relacionais próprias das práticas educativas da MLT.
As do Paulo Lameiro, em Portugal, e do Andrea Apostoli e da AIGAM em Itália, são propostas maravilhosas que sugiro que cada pessoa que esteja a vivenciar a felicidade de ter uma criança pequena conheça e desfrute.
Junto com Wlad Mattos, Aline Romeiro e Pier Elisa Campus, no Brasil, desenvolvemos e propomos, originando um interesse do público e das instituições bastante grande, os Primeiros Concertos, dedicados, por enquanto, às crianças dos 0 aos 3 anos e aos seus pais.
Estes concertos têm ingredientes fundamentais: o silêncio e a suspensão da fala; a possibilidade do público estar sentado no palco com os músicos que partilham a sua experiência musical e que deixam os adultos e as crianças explorarem a escuta com a livre movimentação corporal; a escolha das músicas com base nos princípios da MLT; a busca de uma relação acolhedora em que, tanto os músicos, como os pais consideram válidas as diferentes posturas de escuta adotadas pelas crianças bem como as suas reações.
Mas por enquanto não respondi à sua pergunta: só descrevi muito brevemente o que acontece sem descrever o seu porquê.
Embora não possam substituir a função (e estou a falar de função, não de valor) de uma participação contínua de atividades de educação musical, os concertos dedicados aos bebés e às crianças, têm uma função paralela muito grande: além de ser uma vivência prazerosa e realmente educativa, porque as crianças podem, nessas ocasiões, entrar em contacto com música de boa qualidade, tocada e cantada por músicos-educadores, as indicações que damos aos pais e as observações que eles partilham connosco no final dos concertos, mostra-nos claramente como a proposta tem um poder educativo muito grande para o adulto também - os pais voltam a refletir sobre a importância de uma escuta musical de qualidade, e da necessidade de partilhar esta experiência com as crianças; refletem sobre as diferenças entre propostas musicais que, geralmente, visam entreter, às vezes de uma forma grosseira, as crianças e propostas que querem fazer com que as crianças possam entrar em contacto, respeitando os tempos e os ritmos de cada uma delas, com o imenso repertório musical criado pelos seres humanos, que contém inúmeras coisas maravilhosas e que vai assumir um valor muito grande para cada criança se ela partilhar este processo de descoberta com as pessoas que estão próximas dela, a começar pelos pais.
Porque referi “músicos-educadores” e não simplesmente músicos ou educadores?
Porque na nossa visão, estes dois termos não são separáveis. Isto não significa simplesmente que o educador deva ser também músico ou vice-versa: significa que as duas ações acontecem contemporaneamente, alimentando-se mutuamente. Assim, o educador só pode atuar de uma forma valiosa, na nossa ótica, se mantiver uma postura artística de alto nível em termos de busca da qualidade musical, da expressividade na realização de ações musicais que, por pequenas que sejam, mantenham a toda hora a mesma qualidade que teriam se fossem realizadas à frente de uma plateia.
Contemporaneamente o artista também não poderá ser educador, especialmente em relação à infância, se não conhecer também os processos de aprendizagem, as dinâmicas grupais, a função da construção de uma relação educativa e afetiva com as crianças.
Para que isso aconteça, além de uma intensa formação musical e pedagógica, é preciso aprendermos a ser grandes observadores de crianças, de adultos, de músicos, para desenvolver a capacidade de leitura dos eventos que permita a realização de ações de educação musical baseadas no diálogo e na relação.
Queremos agradecer-lhe a gentileza em nos dar esta entrevista e desejar-lhe a continuação de muitos sucessos profissionais e pessoais. Para terminar, gostaríamos que nos desse três qualidades indispensáveis para que se seja um bom professor de Educação Musical.
Que responsabilidade!
Espero não me esquecer de algumas que poderiam ser fundamentais, ao dar preferência a outras.
Antes de tudo e tal como referi anteriormente, acho que o educador musical deve ser um bom músico. Isto não significa necessariamente que deva ser um virtuose. Deve ter a capacidade de se expressar musicalmente, gerindo conteúdos melódicos, harmónicos e rítmicos com sabedoria e expressividade.
Outra qualidade é ter consciência de que para ensinar é muito importante, antes de conhecer como é que se ensina, pesquisar e conhecer como é que se aprende: os modelos de ensino devem estar sempre relacionados com os modelos que explicam a aprendizagem. Por isso, o educador musical deve desenvolver um trabalho amparado por uma base teórico-metodológica consistente e deve ser formado e formar-se continuamente no contexto de uma prática de ensino referenciada por essa base metodológica
Por fim, mas com grande importância, deve amar a música e ser modelo do prazer que isso lhe proporciona ao transmiti-la, sem ter medo de o mostrar e sem, porém, tentar, forçadamente, forjar o amor pela música dos seus alunos à sua própria imagem.
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