Joana Gama. A pianista fala dos seus projetos em entrevista.

Joana Gama, Pianista

Joana Gama aceitou o nosso desafio para uma entrevista sobre a sua carreira e sobre os primeiros tempos da sua aprendizagem. «O facto de ter começado a estudar música e ballet ao mesmo tempo revelou-se decisivo na minha abordagem ao instrumento. Para mim tocar piano é sentir com o corpo o que estou a tocar, há uma abordagem sensível e emotiva da qual não me consigo dissociar». Também outras abordagens musicais e as colaborações com outros artistas estiveram em destaque. «As colaborações que tenho feito com outros artistas revelam os meus múltiplos interesses e têm sido extremamente enriquecedoras para o meu trabalho a solo, pois acrescentam outras dimensões ao ato de tocar piano. O facto de ter começado a compor com o Luís Fernandes foi algo inesperado - porque até à altura me dedicava apenas a interpretar obras de outros compositores - mas que de certa forma modificou a minha postura ao piano porque fiquei a saber a sensação de tocar algo da minha autoria».

Joana Gama, muito obrigado por ter aceitado o nosso convite para esta entrevista. Aos cinco anos, quando entrou para o Conservatório, já sonhava com uma carreira enquanto pianista?
Julgo que nessa altura nem fazia ideia do que era uma pianista! Entrei no Conservatório de Braga porque os meus pais acharam que me faria bem ter formação musical na minha vida.

Ema Pais Martins, Ana Rita Lima e João Paulo Teixeira foram certamente alguns dos pilares da sua aprendizagem musical. Ainda hoje sente na música que interpreta as influências dos primeiros ensinamentos?
Sem dúvida! Os professores foram importantes por motivos diferentes. A professora Ema Pais Martins incutiu-me o gosto por estar em palco: quando era a aluna mais nova e abria as audições de classe, a professora dizia-me “Não te esqueças de abrir a audição com chave de ouro!” Isso incutiu-me gosto e responsabilidade pelo ato de tocar em público. Fui aluna do professor João Paulo Teixeira nos últimos anos do conservatório, uma altura decisiva, quando há mais consciência do todo que é ser músico. Foi um professor inexcedível no tempo que dedicou à minha formação.

Posteriormente rumou até à Royal Academy of Music em Londres. Houve alguma razão especial para ter tomado esta opção? O desejo de trabalhar com Vanessa Latarche falou mais alto?
Quando estava prestes a acabar o Conservatório pensei que seria importante ir para uma boa escola, para um ambiente que puxasse por mim. Foi um ano importante porque me abriu horizontes e fez com que, quando voltei para Portugal, viesse com uma energia e uma perspetiva arejada face ao mundo da música.

Tania Achot, António Rosado e Benoît Gibson foram as cerejas no topo do bolo numa carreira académica povoada de grandes mestres?
Como disse anteriormente, os professores são importantes por motivos diferentes. Da professora Tania Achot retive a paixão incondicional pela música, pelo piano. O professor António Rosado foi sempre muito generoso e construtivo: dele retenho também o pragmatismo e a sua postura construtiva face ao estudo - foi um período de trabalho muito agradável e inspirador. O professor Benoît Gibson, meu orientador das teses de Mestrado e Doutoramento, foi uma influência muito positiva em todos os períodos da investigação, redação e revisão do trabalho.

Entregou recentemente a sua tese de doutoramento. A música contemporânea portuguesa está no cerne do seu estudo. O que nos traz com o seu trabalho doutoral?
A minha tese de doutoramento tem o título “Estudos Interpretativos sobre música portuguesa contemporânea para piano: o caso particular da música evocativa de elementos culturais portugueses”. Este trabalho consiste no confronto entre as referências extramusicais e a interpretação de 10 peças de 10 compositores portugueses: Amílcar Vasques-Dias, Carlos Marecos, Eurico Carrapatoso, Fernando Lapa, Fernando Lopes-Graça, João Madureira, João Godinho, Pedro Faria Gomes, Vasco Mendonça e Tiago Cutileiro.

Joana Gama, PianoFalámos aqui de grandes nomes da música com os quais se cruzou ao longo do seu percurso formativo. Há outros nomes que a tenham marcado e que não tenham sido mencionados até esta fase da entrevista?
Todas as pessoas com quem nos cruzamos marcam-nos, de uma forma ou de outra. Julgo que tenho tido muita sorte com as pessoas que tenho conhecido e às vezes o contacto pode até ser breve mas intenso. Há, por exemplo, três músicos que muito admiro, que tive a sorte de conhecer, e que são uma fonte de inspiração: a Margaret Leng Tan, pianista dedicada ao toy piano, uma mulher curiosa e com uma energia contagiante, o Laraaji, músico americano ligado à meditação e à música ambiental, com uma postura contemplativa que é simultaneamente cómica e serena e o Llorenç Barber, compositor espanhol ligado à música para sinos, com uma atitude inventiva, generosa e uma curiosidade e entusiasmo contagiantes. Penso também no impacto que os concertos da Lula Pena e da Sílvia Pérez Cruz, que vi no Theatro Circo, tiveram em mim: mulheres com um talento imenso e que me inspiram a prosseguir o meu caminho.

Elege algum repertório ou período da história da música como preferido?
Relaciono-me emotivamente com o que oiço e com o que toco. Daí que não afunile os meus interesses em determinados períodos ou compositores. Em geral o que me faz tocar determinadas peças é o impacto que estas têm em mim, o que me faz sentir que preciso de as tocar. De qualquer das formas, naturalmente centro-me em repertório mais recente, do século XX em diante, o que não quer dizer que não tenha obras do século XIX que gostasse de tocar (e que talvez ainda venha a tocar em público).

A música contemporânea portuguesa tem sido uma constante nas suas apresentações públicas?
Comecei a interessar-me verdadeiramente pela nossa música quando estudava na ESMl e era amiga de vários compositores meu colegas. Através dos concertos Peças Frescas estreei algumas peças e ganhei gosto no trabalho com os compositores, algo que continuo a fazer (e a gostar de fazer) nos dias de hoje. Tenho também interesse em incluir nos meus concertos música portuguesa, como é o caso do recital Viagens na Minha Terra, com dois ciclos para piano de Lopes-Graça e Amílcar Vasques-Dias ou ter incluído uma peça de Carlos Marecos no recital que estou a fazer este ano à volta de Erik Satie. Por outro lado, nos projetos que fiz com os coreógrafos Luís Guerra, Tânia Carvalho e Miguel Moreira, trabalhei com música original dos compositores João Godinho, Diogo Alvim e Pedro Carneiro, respetivamente.

Quais os compositores portugueses que mais admira?
Nas escolhas que fiz para o doutoramento é evidente que admiro uma série de compositores onde impera a diversidade de estilos. Este conjunto de dez compositores representa apenas alguns dos que admiro da atualidade, ao qual não posso deixar de juntar o nome de Carlos Seixas, autor de várias pérolas em forma de Sonata para teclado, que revisito com regularidade.

De tantos prémios, e reconhecimentos públicos ao seu valor, realça algum ou alguns?
Vencer o Prémio Jovens Músicos na categoria de piano em 2008 foi importante porque foi o culminar de um ano de trabalho muito bom com António Rosado. Por outro lado, foi talvez a última situação em que toquei repertório canónico imposto, já que a partir dos anos que se seguiram comecei a adaptar, de forma mais livre, as minhas escolhas de repertório ao meu gosto.

O facto de ter integrado entre 2005 e 2009 a Orquestra Metropolitana de Lisboa deu-lhe a oportunidade de trabalhar com vários e prestigiados maestros. Recorda alguns com especial admiração?
Durante o tempo em que integrei regularmente a Orquestra Metropolitana, trabalhei várias vezes com o maestro Michael Zilm. Com ele toquei repertório tão diverso como Villa-Lobos, Ravel, Schoenberg ou Webern e, sendo um maestro tão rigoroso, era sempre uma grande tensão pré-ensaios, no sentido de ter tudo na ponta da língua. Lembro-me de uma situação engraçada: quando estávamos a tocar a obra “Ma mère l’oye” de Ravel, e eu estava a tocar celesta, o maestro interrompeu o ensaio e disse que não estava a ouvir a celesta. (a celesta que costumávamos usar era bastante velhinha) Eu disse que estava a tocar e ele disse que só acreditava em mim porque me via a mexer a cabeça, já que não conseguia ouvir nada. Rimo-nos da situação e continuámos o ensaio.

Joana Gama, PianoA carreira docente é outra faceta que a ocupou. Em Portugal é mesmo impossível ser-se somente performer ou, por outro lado, considera que a docência lhe confere alguma reflexividade à sua práxis?
A minha atividade docente foi muito curta, não estou ligada ao ensino desde 2010. Apenas posso falar da minha experiência: nos últimos anos tenho estado tão dedicada aos vários trabalhos em curso que não houve espaço para pensar em voltar ao ensino. Sinto-me muito preenchida e realizada com as colaborações que tenho feito (e com as que estão previstas), o que me ocupa muito tempo. Se me dedicasse ao ensino teria de abdicar de uma série de coisas pois considero que ser professor, ser um bom professor, é muito mais do que dar aulas. Há um trabalho de investigação de metodologia e repertório, de investimento no aluno, que julgo necessário fazer. E para isso é preciso tempo (e cabeça) livre.

Pode agora falar-nos um pouco do projeto SATIE.150? Em que é que consiste?
Quando, a meio de 2015, me apercebi que em 2016 se celebrariam os 150 anos do nascimento de Erik Satie, pela enorme admiração que tenho pelo compositor, senti que deveria assinalar a data em Portugal criando o evento SATIE.150 - Uma celebração em forma de guarda-chuva. O cerne das celebrações é a realização de um recital de piano onde a música de Satie é intercalada com a de compositores que relacionei com ele. A ideia inicial era realizar este recital uma vez por mês em doze localidades portuguesas de forma a tornar a celebração bastante abrangente em termos geográficos. Contudo acabaram por confirmar-se mais datas e a digressão conta com dezassete datas, incluindo concertos em Paris, Utrecht e Amesterdão. Ao recital tenho associado uma palestra sobre Erik Satie no contexto escolar, de forma a divulgar aspetos da vida e obra do compositor. No âmbito da celebração, no dia de aniversário do compositor - 17 de maio - foi lançada uma edição especial da partitura de “Embryons dessechés”, coordenada por mim e editada pela Pianola Editores e foi projetada a curta-metragem “Entr’acte” de René Clair (que conta com música e a participação especial de Satie) na Cinemateca Portuguesa. Por fim, em julho, no âmbito do festival Jardins Efémeros, fiz uma performance ininterrupta de quinze horas da obra “Vexations” de Erik Satie.

O facto de ter iniciado a música e o ballet ao mesmo tempo e de já ter estado ligada a diversos projetos no âmbito da imagem como o cinema, por exemplo, confere-lhe uma abordagem singular ao piano? Sente que as suas interpretações são muito permeáveis às suas diferentes vivências?
O facto de ter começado a estudar música e ballet ao mesmo tempo revelou-se decisivo na minha abordagem ao instrumento. Para mim tocar piano é sentir com o corpo o que estou a tocar, há uma abordagem sensível e emotiva da qual não me consigo dissociar. As colaborações que tenho feito com outros artistas revelam os meus múltiplos interesses e têm sido extremamente enriquecedoras para o meu trabalho a solo, pois acrescentam outras dimensões ao ato de tocar piano. O facto de ter começado a compor com o Luís Fernandes foi algo inesperado - porque até à altura me dedicava apenas a interpretar obras de outros compositores - mas que de certa forma modificou a minha postura ao piano porque fiquei a saber a sensação de tocar algo da minha autoria.

Já realizou diversas gravações. Ambiciona gravar um CD a solo em breve?
Durante muito tempo não tive vontade de lançar um disco, pois estava à espera de encontrar o repertório e o contexto certos para o fazer. Com o SATIE.150 julgo que estão criadas as condições e, tendo em conta que recebi recentemente um apoio da GDA para a edição deste disco, o lançamento deve acontecer em meados de 2017.

Muito obrigado pelo tempo que dedicou aos nossos leitores. Há novidades para breve? Onde poderemos vê-la e ouvi-la nos próximos tempos?
Até ao final do ano farei os últimos quatro concertos da tournée SATIE.150: 11 de novembro - Cine-Teatro Avenida em Castelo Branco, 12 de novembro no Teatro Municipal da Guarda; 3 de dezembro no Theatro Circo em Braga e 14 de dezembro na Maison du Portugal em Paris. No dia 7 de dezembro estreia o projeto HARMONIES, que partilho com o Luís Fernandes (eletrónica) e Ricardo Jacinto (violoncelo e eletrónica). Este projeto surgiu de um desafio do Teatro Maria Matos para a criação do algo novo a partir da música de Erik Satie. Estou muito feliz com o resultado e em pulgas para o partilhar. Em 2017, apresentaremos HARMONIES também no Convento São Francisco em Coimbra, 20 de janeiro, no Teatro Municipal do Porto – Rivoli, 21 de janeiro e no Theatro Circo em Braga, 18 de Fevereiro, os outros coprodutores do projeto.

Joana Gama. A pianista fala dos seus projetos em entrevista.

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