António Chainho, 50 anos a reescrever a história da guitarra portuguesa.

António Chainho

Os 50 anos de carreira de António Chainho são revisitados nesta entrevista onde falámos do tanto que fez e faz pela guitarra portuguesa. «A partir de determinada altura, recusei [muitos convites]. Recusei porque tinha uma meta a atingir. Não tinha tempo e defini a minha carreira assim. Tenho pena de não ter gravado com muitos artistas de fado, de quem eu gostava muito, mas a minha meta era outra. Estabeleci assim a minha carreira: eu queria divulgar a guitarra portuguesa, passando por outras áreas que não fosse só o fado. A guitarra não teria que ficar subjugada ao fado: A guitarra não é só para o fado. A guitarra tem que entrar noutros caminhos: os da música brasileira, da música africana, da música indiana etc. Hoje há jovens que já estão a fazer um percurso admirável, a cantar com outros instrumentos, a fazer as tais permutas musicais que, na minha opinião, é muito significativo em relação a este instrumento que é a guitarra portuguesa».

Como foi o percurso de aprendizagem até ter decidido, por volta dos 20 anos, que o seu destino passava pela guitarra portuguesa?
Comecei por aprender a tocar guitarra muito miúdo, ainda. O meu pai tinha um café na minha aldeia e havia um bilhar. A guitarra estava sempre em cima desse bilhar. Havia muitos conterrâneos meus que tocavam um pouco de fado corrido e cantavam à desgarrada para se entreterem durante a noite. O meu pai era realmente aquele que tocava melhor, que tinha a melhor execução. Foi por influência dele que eu aprendi a tocar a base do fado: o Mouraria, o Fado Corrido e o menor. Fui evoluindo, e aprendendo o restante através da rádio, mas nunca pensei ser um profissional da guitarra. A primeira atuação que fiz, tinha 13 anos. As pessoas ficaram surpreendidas.

Passava de vez em quando pela minha aldeia um guitarrista de Lisboa que fazia digressões pela província e que acompanhou a minha evolução. Nunca acreditou que eu tivesse aprendido sozinho. Era um guitarrista profissional, chamava-se José Rosa, e eu já tocava coisas que ele não conseguia tocar. Nunca chegou acreditar que eu aprendi de ouvido.

Foi pelos meus 20 anos a primeira vez que vim a Lisboa. Foi através dum senhor de Mora que me tinha ouvido tocar e ficou entusiasmado. Queria apresentar-me aos fadistas, e levou-me ao Faia, onde estava a Lucília do Carmo e o Alfredo Marceneiro. Toquei guitarra para eles me ouvirem e foi aí que percebi que podia ter condições para seguir uma carreira profissional. Até então, nunca tinha pensado em ser guitarrista profissional.

António ChainhoQuais foram os seus principais inspiradores? Quem eram os seus ídolos da guitarra na altura?
Eu tinha vários ídolos de guitarra portuguesa, que ouvia através da rádio: a Emissora Nacional e a Rádio Clube Português, em programas transmitidos a partir da meia-noite. Havia uns que eu gostava mais pela maneira como tocavam. O José Nunes tinha um som muito bonito e também o Raúl Nery. Havia mais uns dois ou três com mais virtuosismo. Esses guitarristas tocavam em casas de fado. Recordo-me de ouvir o Jaime Santos tocar na Adega Machado, em programas transmitidos na rádio. Como o meu pai tinha o café que encerrava à meia-noite, eu ficava a ouvir as guitarradas do Jaime Santos, que era a grande vedeta das casas de fado e que evoluiu muito por intermédio de outro grande guitarrista, o Armandinho, que eu não conheci. Só comprei o primeiro disco do Armandinho no Japão, mas percebi e verifiquei que os grandes guitarristas da minha época foram todos beber a esse grande génio que todos consideramos o pai da guitarra de Lisboa.

Também admirava o Francisco Carvalhinho, tinha uma técnica muito diferente. Havia ainda um guitarrista que compôs um dos grandes discos de guitarra portuguesa, gravado em Paris. Chamava-se Domingos Camarinha, e gravou esse disco juntamente com o Santos Moreira. Foi através desse disco que eu evoluí bastante a minha técnica.

Mais tarde veio a acompanhar Maria Teresa de Noronha, Lucília do Carmo, Carlos do Carmo, Francisco José, Tony de Matos, António Mourão, Frei Hermano da Câmara ou Hermínia Silva. Como surgiram estas oportunidades que contribuíram certamente para que o seu nome ganhasse uma dimensão considerável no panorama musical português e até internacional?
Há 50 anos, quando vim para Lisboa, tive a sorte de conhecer grandes fadistas porque estive seis meses na Severa. Conheci o Alfredo Marceneiro, a Lucília do Carmo, o Carlos do Carmo, que entretanto, se tinha formado e estava a gerir o Faia. Naturalmente formei o meu conjunto de guitarras. Era muito solicitado para acompanhar as grandes vozes do fado da época. Foi assim que acabei por acompanhar praticamente todos os fadistas em Portugal. Costumo dizer que, atualmente, estou na terceira fase da minha carreira. A primeira fase foi quando acompanhava toda a gente. A segunda fase foi aquela em que eu pensei abrir uma escola de ensino de guitarra portuguesa. Esta fase, a terceira, é a que estou agora, a tentar promover e divulgar a guitarra portuguesa.

Com o meu grupo de guitarras, que referi anteriormente, tive oportunidade de acompanhar todas as grandes vozes de fado em Portugal, uma coisa para mim muito importante. Desde que nasci, que comecei a ouvir essas grandes vozes, e havia duas ou três que eram, de facto, as grandes vedetas: a Hermínia Silva, e a Amália. Costumo falar sobre isto porque a minha mãe era “Amalista” e as vizinhas “Hermínias” e como o único rádio que havia na aldeia era o do meu pai, no café, as pessoas juntavam-se para ouvir essas grandes vozes, e criava-se um ambiente muito agradável. Quem havia de dizer que eu iria acompanhar os últimos discos dessas grandes cantoras, que sempre admirei, como Hermínia Silva, Lucília do Carmo e Maria Teresa de Noronha? Foi muito bom ter acompanhado essas grandes vozes e tantas, tantas outras.

Recorda-se das suas primeiras atuações fora do país? Sentia que a guitarra portuguesa era um instrumento muito admirado no estrangeiro?
Recordo perfeitamente. A primeira vez que saí de Portugal foi para a Dinamarca. Eu cheguei a Lisboa há cinquenta anos, e quase dois anos depois, fui à Dinamarca onde estive mais de um mês. Foi através do restaurante Folclore (que é hoje, a maior sala da Cervejaria da Trindade) e que tinha um espetáculo para turistas, com um apontamento de guitarra portuguesa e fado. Essa foi a primeira vez que toquei fora do país, numa grande sala de espetáculos em Copenhaga. Pouco tempo depois, fiz parte duma digressão que percorreu os Estados Unidos e Canadá.

Quando gravou “Solos de Chainho” sentiu que este teve o merecido reconhecimento por parte do público?
A primeira gravação que fiz foi para a Rapsódia, porque estava no restaurante Folclore e vendiam-se muitos discos para turistas. Os “Solos de Chainho” faz parte duma trajetória que eu tinha que compor para ter um programa quinzenal na Emissora Nacional. Na altura a rádio passava muitos temas instrumentais, e antes de gravar o meu primeiro LP, gravei 4 discos para esse efeito, entre os quais os “Solos de Chainho”.

Alguma vez sentiu que o facto de considerar que a guitarra não tem que “gemer sempre baixinho” poderia ser um fator menos apreciado por alguns setores do mundo artístico?
A guitarra, até certo ponto, esteve sempre em segundo plano. Quem cantava, era sempre o artista em referência. As coisas estão diferentes hoje, as pessoas já estão mais atentas ao acompanhamento. Antigamente, até nas atuações em televisão, as câmaras focavam apenas os cantores. Era raro focar o guitarrista ou o viola, quando o grande trabalho, por vezes, até era feito por eles.

António Chainho

Dividiu o palco com grandes nomes como Paco de Lucia e John Williams? Conviveu de perto com eles? Como sentia que era visto por estes músicos?
Nunca mais me esqueço que o Paco de Lucia, quando lhe emprestei a guitarra, esteve uns minutos a tentar tocar e não conseguiu. Chamou-me “louco”, “Tu és louco, esta guitarra é muito complicada”!

O John Williams era considerado o melhor guitarrista clássico, aluno do grande André Segóvia.

Com o Paco de Lucia estive duas vezes e com o John Williams só estive uma vez. Este chegou também a pegar na guitarra, mas não tocou. Com o John Williams nunca cheguei a tocar em espetáculos.

Como surgiu a possibilidade de gravar com a Orquestra Sinfónica de Londres? Foi um dos maiores desafios da sua carreira?
Talvez. A Movieplay queria que eu gravasse com a Orquestra Sinfónica de Londres e eu tinha, na altura, composto dezoito temas para gravar mas as editoras nem queriam ouvir esses temas. Queriam que eu gravasse outras coisas. O diretor da Sony Music queria que eu gravasse um playback de guitarra portuguesa para os temas de sucesso do Júlio Iglésias: tirava-se a voz e entrava a guitarra portuguesa. Não aceitei e quem sabe pode ter sido um erro meu... Mas em relação à Movieplay, e estou a falar duma época em que as rádios já não passavam temas instrumentais, foi-me sugerido gravar temas de música portuguesa, muito conhecidos, com guitarra portuguesa e com a Orquestra de Londres. Mas eu queria gravar os temas que tinha composto. Entreguei uma cassete ao José Calvário com os 18 temas e ele só ouviu os primeiros 14 e já não ouviu os outros 4. Assim acabei por gravar com a Orquestra Sinfónica de Londres e guardo momentos inesquecíveis. Todos os músicos da Orquestra não acreditavam que o que estavam a ouvir era só uma guitarra.

José Afonso, Rão Kyao, Gal Costa, Fáfá de Belém, Adriana Calcanhoto, Maria Dolores Pradera, Saki Kubota, kD Langue foram alguns dos nomes que puderam contar com a partilha das suas sonoridades ímpares nos seus discos. Recusou muitos outros convites por falta de tempo e por estes serem em grande número?
A partir de determinada altura, recusei. Recusei porque tinha uma meta a atingir. Não tinha tempo e defini a minha carreira assim. Tenho pena de não ter gravado com muitos artistas de fado, de quem eu gostava muito, mas a minha meta era outra. Estabeleci assim a minha carreira: eu queria divulgar a guitarra portuguesa, passando por outras áreas que não fosse só o fado. A guitarra não teria que ficar subjugada ao fado: A guitarra não é só para o fado. A guitarra tem que entrar noutros caminhos: os da música brasileira, da música africana, da música indiana etc.

Hoje há jovens que já estão a fazer um percurso admirável, a cantar com outros instrumentos, a fazer as tais permutas musicais que, na minha opinião, é muito significativo em relação a este instrumento que é a guitarra portuguesa.

António Chainho“A Guitarra e Outras Mulheres” foi o assumir da guitarra como sua “companheira” de uma vida?
Foi o primeiro CD que aparece com um músico a convidar vozes e ainda bem que o fiz porque era a única maneira das rádios passarem a minha música. Como a grande voz da altura era a Teresa Salgueiro, dos Madredeus, e nunca tinha feito nada fora dos Madredeus, convidei-a para participar. Foi uma aposta ganha pois as vendas do CD atingiram o ouro e platina. Mas de todas as músicas desse disco, o tema com a Marta Dias foi o que teve mais sucesso.

“Lisboa – Rio” foi a prova de que são em maior número os pontos que unem a música portuguesa e a música brasileira do que aqueles que as separam?
Eu tenho uma grande paixão pela música do Brasil. O Brasil foi dos primeiros países que eu conheci. Estive lá cerca de 40 dias, quando estava no restaurante Folclore. Conheci de perto a riqueza da música brasileira e corri o país de lés-a-lés. Ter tido a oportunidade de conhecer artistas como a Fafá de Belém, Maria Bethânea, Gal Costa, Gilberto Gil, Adriana Calcanhoto, artistas que eu tanto admirava, e depois ter tido o prazer de trabalhar com eles, originou uma grande amizade. As diferenças, que eu noto em relação a Portugal e Brasil talvez sejam reflexo de uma questão de diferença na pronúncia. O único artista que fez na verdade grande sucesso no Brasil foi o Francisco José.

Em 50 anos de carreira haverá certamente muitos outros pontos altos que não tenhamos referido. Pode partilhar mais alguns momentos que não se possam dissociar da História do Guitarrista Português António Chainho?
Foram 50 anos, e claro que o trajeto não foi fácil. Costumo dizer que para tudo na vida é preciso sorte, e eu tive sorte. Acompanhei grandes artistas a nível mundial e tive a sorte de ser destacado pela revista Songlines nos seus 50 anos, numa seleção de 50 músicos o que, até certo ponto, conferiu-me reconhecimento internacional. Em relação à guitarra portuguesa, sinto que fiz tudo o que queria fazer. Sobretudo, o que foi mais importante, foi abrir a primeira escola de ensino da guitarra portuguesa em Portugal, um projeto que nasce com uma entrevista minha a um jornal onde disse que a guitarra portuguesa tinha tendência em acabar, e que acabou por dar origem ao museu do fado.

“Cumplicidades” foi uma gravação de celebração destes 50 anos de carreira? Como projetou este disco destinado a marcar um momento tão importante?
O “Cumplicidades” é mais um disco que eu nunca pensei fazer, até o meu agente me dizer que havia vários artistas que me admiravam e que talvez fosse interessante convidá-los a fazer um disco. É um trabalho muito importante, com o qual não poderia sentir-me mais realizado. Inclui vários artistas de outras áreas, como a Sara Tavares, o Pedro Abrunhosa, a Vanessa da Mata, o Rui Veloso a Ana Bacalhau etc. Sei agora, que há muitos artistas que gostariam de ter entrado: a Maria Bethânea, por exemplo. Não pôde porque estava também a gravar o disco dos seus 50 anos de carreira. Quem sabe se não poderá acontecer no disco dos 75 anos de carreira? (risos)

Muito obrigado por este tempo que nos dedicou com tantas e tão interessantes partilhas. Qual é o legado que pensa ter deixado às novas gerações de guitarristas? Há alguns conselhos que deixe aos jovens músicos que agora iniciam o seu percurso artístico?
Não tenho dúvida nenhuma que em termos de guitarra portuguesa, quem decidir aprender é porque gosta. E para ser um bom profissional tem que trabalhar muito, porque é um instrumento muito difícil e muito complicado. O apelo que faço a todos os jovens guitarristas é comporem para a própria guitarra. Hoje já há muito bom trabalho e tudo o que vier em prol da guitarra portuguesa é bem-vindo. Que todos os jovens que apareçam a tocar trabalhem muito. E com o trabalho surgem ideias a bem da guitarra portuguesa.

António Chainho, 50 anos a reescrever a história da guitarra portuguesa.

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