Fernando Júdice. O baixo e os projetos musicais.

Fernando Júdice«(...) sinto e vejo que há muita gente a tocar e a dedicar-se a projetos originais, alguns de grande qualidade, cada vez mais jovens músicos de qualidade com ótima formação, mais escolas para os formarem, gente mais velha de grande qualidade que é excelente referência e modelo para os mais novos... Parece-me no entanto que se estacionou num modelo de grande economia de meios que pode ter aspetos negativos. Parece-me que se privilegiam os grupos pequenos, trios e quartetos com pouca instrumentação. Sinto que as ideias de arranjos são pouco desenvolvidas e que falta um pouco esse lado de criação de texturas diferentes dentro do mesmo grupo, um pouco como nós fazíamos no Trovante em que quase cada música tinha ambientes diferentes. Havia uma maior variedade de cores. Mas não posso deixar de reconhecer que há muita coisa interessante a acontecer e a música talvez esteja a viver um dos seus momentos de maior criatividade».

Obrigado por conceder um pouco do seu tempo aos leitores da nossa publicação. Embora tenha começado a sua aprendizagem pelo jazz, rapidamente muda o sentido da sua opção ingressando no ensino clássico do Conservatório Nacional. O que o fez mudar o sentido das suas opções iniciais?
Não foi assim tão rapidamente. Na verdade comecei por aprender guitarra. Primeiro com amigos e sozinho e depois guitarra clássica já com preocupações académicas a querer saber mais de música e da teoria musical. Cheguei mesmo a ser monitor do instrumento na Escola Duarte Costa. O que veio de certa maneira fazer-me "cortar" com o instrumento foi o contrabaixo que comecei a estudar no Conservatório Nacional e que segui tocando.

Fernando JúdiceQuando trocou a flauta pelo contrabaixo? Houve alguma razão especial para tal decisão?
A flauta foi um acidente de percurso. Era a vontade de conhecer outros instrumentos e de tocar um instrumento que eu julgava que poderia ter uma utilização profissional mais alargada e imediata. Mas durou pouco tempo. Muito menos que a guitarra clássica que estudei durante vários anos.

Quais os músicos que mais o marcaram? Qual a música que ouvia?
Naquela altura eu ouvia principalmente Jazz que era a música que me desafiava. As referências primordiais eram as do rock que se juntou aos locais em que o Jazz e o Rock se cruzavam e que de início eram os que mais me interessavam. Herbie Hancock e o disco Head Hunters, o Miles Davis da fase Bitches Brew, Chic Corea, John McLaughlin e a Mahavishnu Orchestra, Soft Machine... Esse era o universo que se cruzava com os Genesis, Yes, Gentle Giant e todo o rock progressivo e alguns blues. Mas gradualmente fui descobrindo a história do Jazz. Vim da frente para trás à descoberta de Charlie Parker, Lester Young, Dizzie Gillespie e todo o Jazz Bebop que daí derivou. Não vou ser exaustivo nos nomes mas eram muitos os que eu ouvia sem privilégios de géneros. Ao mesmo tempo comecei a frequentar o Hot Clube e a ouvir os músicos que por lá passavam. O Zé Eduardo era o contrabaixista de referência e era a pessoa que mais sabia e a quem recorríamos para aprender e tirar dúvidas, fazer perguntas, ver e ouvir como se tocava (aliás para além de um excelente músico e criador seguiu até hoje uma carreira de formador com grande impacto em várias gerações de músicos). Aí ouvi o Araripa, o trio do Zé Eduardo, com o Emílio Robalo e o João Heitor com quem tocavam ocasionalmente outros músicos. O Rui Cardoso, um saxofonista de uma geração um pouco mais velha mas muito talentoso e o Rão Kyao que na altura regressou de Paris onde vivia e que trazia uma bagagem musical invejável. Por esses anos (à roda de 1978/1983) vi excelentes músicos passar pelo Hot Clube. A escassez de informação era tão grande que "íamos a todas" com grande sede de aprender.

O facto de ter passado por projetos como Jazzette Trio e Sintagma e de ter tocado com Rão Kyao, Steve Potts, Sérgio Godinho, Fausto, Júlio Pereira e Janita Salomé mostram no entanto que a música ligeira, a música popular portuguesa e o jazz seriam o caminho a seguir enquanto músico profissional. Concorda?
Essa era a expressão de um certo ecletismo musical, mas principalmente a de uma grande vontade de tocar e de conhecer pessoas e ter experiências que me pudessem enriquecer. Naquela altura o meio musical era bem mais pequeno e era mais fácil conseguir estar em várias frentes. Eu tive a sorte de viver essa realidade e de poder privar com essa pessoas e com essas realidades musicais que menciona. Ainda hoje acho incrível ter passado por isso.

Fernando JúdiceTer estado mais de uma década com o Trovante deixou-lhe marcas profundas enquanto músico?
O Trovante foi "a escola"! Foi no Trovante que desenvolvemos a nossa capacidade de trabalhar em conjunto tanto no plano musical como no plano da indústria. Ali aprendemos praticamente tudo. Tivemos grandes alegrias, conhecemos o sucesso, tivemos um percurso de grupo, desde os pequenos aos grandes palcos, conseguimos produzir os nossos espetáculos, aprendemos a construí-los de maneira a serem eficazes e impactantes. E aprendemos igualmente a lidar com o reverso da medalha e a tomar decisões difíceis. Ao longo desse tempo criámos entre nós uma linguagem musical e uma cumplicidade tal que perdurou até aos dias de hoje. Foi no Trovante que as nossas influências e o resultado das nossas experiências musicais se materializou de uma maneira totalmente original. Apesar de ter de certa maneira ficado "cristalizado" no tempo, a música do Trovante sobrevive até hoje sem se ter a sensação de uma música que ficou naquele tempo ligada a modas passageiras. Nunca tivemos a preocupação de seguir atrás de tendências e as nossas breves e esparsas reuniões mostram-nos sempre como ela é tão atual hoje, na qualidade das canções e dos arranjos, como foi na altura.

Foi diretor e fundador da revista MIT - Música Instrumentos e Tecnologia. Como foi na altura recebido este projeto editorial? O que vos levou a terminar este projeto tão inovador e pertinente?
A MIT foi super bem recebida pelos músicos e pelas pessoas ligadas à prática musical. Na altura não havia nada em Portugal dedicado à música que fizesse a ponte entre a parte musical e tecnológica e mostrasse a maneira como elas se podem relacionar e potenciar a criatividade da produção musical. Foi essa constatação e a perceção de que havia apetência de um certo público para uma publicação desse género que me fez convencer um grupo de pessoas a avançarem comigo nessa aventura. Devo dizer que o fizemos com muita generosidade e não menos ingenuidade porque com o tempo constatámos que era um pouco mais difícil conseguir da parte da indústria (lojas de instrumentos e seus distribuidores em Portugal, editoras discográficas e produtoras de espetáculos) um entusiasmo tão ingenuamente interessado como o nosso. A ideia - que hoje classifico de romântica mas ainda assim válida - de que os vários agentes do mercado musical podem contribuir em conjunto e paralelamente para o seu desenvolvimento e ao mesmo tempo para o desenvolvimento da criação e produção musical, melhorando o meio musical através de uma troca e divulgação privilegiadas de informação, não foi acolhida pela "indústria" com o mesmo desprendimento material e o mesmo ideal que acalentávamos. A MIT não tinha nenhum capital próprio para além da dedicação dos seus colaboradores. Publicou 25 exemplares todos feitos com material escrito por músicos e técnicos portugueses, nunca recorreu a material "importado" de revistas estrangeiras e foi pioneira de um certo jornalismo musical que nunca mais teve paralelo entre nós. Não resistiu à realidade que a circundava e deixou uma semente que não estou certo de ter chegado a germinar.

Fernando Júdice

A “Resistência”, projeto com o qual editou 3 discos, foi também algo arrojado na altura? Como foi trabalhar com músicos oriundos de outros projetos? O fio condutor era a música portuguesa?
A Resistência foi outro projeto completamente original. Apesar de eu não ter estado na sua origem, fui chamado a colaborar muito pouco tempo depois. Participei logo no primeiro disco e abracei esse projeto com muita força e dedicação. De repente vi-me a trabalhar com músicos oriundos de outras áreas, que eu não conhecia pessoalmente mas que admirava. A empatia foi imediata e foi um relacionamento muito fácil, quer musical, quer pessoal, logo desde os primeiros momentos. Mais uma vez havia várias sensibilidades e experiências que se cruzaram de uma tal maneira que se completaram e multiplicaram. Descobrimos que apesar de termos vivido realidades paralelas, as nossas experiências eram semelhantes e possuíamos os mesmos anseios e a mesma dedicação ao que fazíamos. Foram uns tempos fantásticos de concertos e trabalho em estúdio para os outros discos que criaram laços profundos. Era de facto uma ideia arrojada cujo fio condutor era a música portuguesa e a ideia de que havia um património musical que era preciso dar a conhecer, que era a prova que a língua portuguesa e a mensagem dessas canções era importante, que havia uma maneira de fazer música em Portugal que era preciso celebrar. A Resistência era essa celebração.

Fernando Judice em San Sebastian com María BerasarteComo surgiu a possibilidade de integrar os Madredeus? Antevia-se uma participação tão duradoura como a que teve com o Trovante?
Antevia-se uma participação ainda mais duradoura, mas na verdade foi praticamente tão duradoura quanto o Trovante. Quase 10 anos. Fui convidado para o Madredeus em 1997 pelo Pedro Ayres. Tínhamos trabalhado na Resistência e ele tinha uma boa memória de mim desses tempos. Eu também tinha dele. Quando o Gabriel Gomes e o Francisco Ribeiro deixaram o grupo, o Pedro não quis repetir a fórmula e pensou fazer um grupo novo mais baseado nas guitarras do que o anterior que tinha o acordeão e o violoncelo como elementos distintivos. Como já estava o José Peixoto na outra guitarra e havia os teclados do Carlos Maria o que lhe fez mais sentido foi a inclusão de um baixo acústico. Foi o que aconteceu. Quando o Pedro me convidou para o grupo, imediatamente abandonei o que estava a fazer e fui.

O que o levou a abandonar os Madredeus?
Na verdade o Madredeus tinha, por acordo entre todos, encerrado a sua atividade no final de 2006. Várias conversações internas levaram a que isso acontecesse e não tinha ficado nenhum plano ou ideia para o seu recomeço. Era um assunto encerrado. A Teresa tinha projetos a solo e estava a continuar com eles e eu não sabia o que iria fazer depois de quase 10 anos por assim dizer "desaparecido em combate". Juntamente com o José Peixoto tinha começado a desenvolver um repertório original que mais tarde deu origem ao CD SAL que gravámos com o Vicky nas percussões e a Ana Sofia Varela a cantar. A meio de 2007, estando nós completamente imersos na divulgação do SAL, o Pedro Ayres pede para colocarmos a hipótese de voltar a reunir o grupo antes do fim do ano. Nessa altura pesei longamente a minha resposta e decidi-me por não aceitar voltar ao projeto. O José Peixoto fez o mesmo. Uns meses mais tarde a Teresa Salgueiro anuncia a sua saída definitiva do grupo. Na verdade, para mim o grupo tinha deixado de existir no final de 2006 e apesar do convite para a sua continuação achei que era altura de partir para outras aventuras.

Fernando Júdice na gravação de Claud -  Ministério do AmorPode falar-nos um pouco do projeto “Carinhoso”?
O Carinhoso foi um projeto improvável. Surgiu de uma brincadeira de viagem que eu e o José Peixoto decidimos a certa altura fazer. Durante as viagens do Madredeus nós trabalhávamos muito a sós nos nossos quartos. Ele preparou vários discos que foi gravando durante esses anos. A certa altura pensámos que podíamos tentar tocar qualquer coisa juntos e começámos a procurar repertório que pudéssemos fazer em conjunto. De início pensámos em repertório clássico, mas nunca encontrámos nada que verdadeiramente nos agradasse. Um dia, em S. Paulo, o José Peixoto aparece com um livro de choros que tinha comprado numa livraria. Começámos a folheá-lo e dou com o Carinhoso do Pixinguinha. Eu já conhecia a música e começámos a tocá-la. Ficámos logo "agarrados" a ela. No outro dia voltámos os dois à livraria e comprámos dois volumes de choros do Pixinguinha. A partir daí esses livros passaram a fazer parte das nossas viagens e do nosso dia-a-dia cada vez que tínhamos tempo livre. Mas só ao fim de vários meses é que percebemos que tínhamos ali uma coisa que era original em termos de abordagem e nos decidimos por construir um repertório instrumental, fazer um CD e convidar cantores para alguns dos temas. O Carinhoso foi o excelente resultado de um hobby de estrada.

Em sua opinião, a música portuguesa segue no bom caminho? Gostaria que algumas coisas mudassem?
Na verdade não sei bem o que dizer a esse respeito. Falta-me alguma perspetiva para ter uma ideia formada sobre esse assunto. Mas sinto e vejo que há muita gente a tocar e a dedicar-se a projetos originais, alguns de grande qualidade, cada vez mais jovens músicos de qualidade com ótima formação, mais escolas para os formarem, gente mais velha de grande qualidade que é excelente referência e modelo para os mais novos... Parece-me no entanto que se estacionou num modelo de grande economia de meios que pode ter aspetos negativos. Parece-me que se privilegiam os grupos pequenos, trios e quartetos com pouca instrumentação. Sinto que as ideias de arranjos são pouco desenvolvidas e que falta um pouco esse lado de criação de texturas diferentes dentro do mesmo grupo, um pouco como nós fazíamos no Trovante em que quase cada música tinha ambientes diferentes. Havia uma maior variedade de cores. Mas não posso deixar de reconhecer que há muita coisa interessante a acontecer e a música talvez esteja a viver um dos seus momentos de maior criatividade.

Fernando Júdice no seu posto de trabalho durante a celebração de 20 anos do Circo de FerasHoje há mais auditórios e, consequentemente, isso aumentou a possibilidade de se fazerem tournées mais regulares. Sente que hoje os músicos portugueses têm mais oportunidades de mostrar o seu trabalho ao público?
A internet é uma excelente forma de divulgação e de dar a conhecer coisas. Mas não estou ainda seguro que suplante a divulgação radiofónica que foi tão importante noutros tempos. A rádio de grande audiência demitiu-se da divulgação do que é novo com prejuízo óbvio no chegar ao grande público. É quase como se a rádio de grande audiência fosse uma espécie de grande Rádio Nostalgia onde os novos só entram quando já forem velhos e mesmo estes dificilmente conseguem fazer ouvir o que de mais novo fazem, já que as play lists preferem sempre o que já é conhecido. Paralelamente a rede de auditórios que existe no país é hoje bastante grande e está bem equipada técnica e humanamente. Mas tem muitos auditórios de pequena dimensão, 300 lugares, por vezes menos, que invalidam ou tornam extremamente difícil uma exploração comercial. Por seu lado os programadores não têm meios financeiros quer do estado quer de patrocinadores locais, que lhes permitam levar projetos menos conhecidos e não há capacidade de produção própria da parte dos artistas para poderem apresentar-se "à bilheteira". Isto provoca uma situação de uma certa indigência cultural que se vive em muitas zonas do país onde se voltou à festa popular de características mais ou menos pimba, com a participação exclusiva de artistas de grande cartaz, como a grande oferta cultural do ano. Há algumas valorosas exceções mas que não fazem com que a regra deixe de o ser.

Em que projetos musicais se encontra a trabalhar neste momento?
Neste momento, para além da Resistência que editou um novo disco fez alguns concertos neste Verão e aspira continuar a ter uma existência em concertos e até em disco, continuo a colaborar com o Tim no seu projeto a solo e acompanho a fadista Katia Guerreiro como músico substituto no seu grupo. Faço parte do Quinteto Lisboa, um projeto do João Gil e do João Monge, com o José Peixoto e a cantora basca María Berasarte e o Paulo de Carvalho. Temos o primeiro CD gravado e que aguarda edição no início de 2016. Igualmente tenho acompanhado a mesma María Berasarte no seu projeto pessoal, onde faço conjunto mais uma vez com o José Peixoto e o guitarrista de flamenco José Luis Montón.

Mais uma vez, muito obrigado pela partilha que proporcionou. Pode dizer aos nossos leitores quais serão os próximos espetáculos onde o poderão ver e ouvir?
Depois dos espetáculos de agosto com a reunião do Trovante nas Festas do Mar em Cascais, onde também estive com a Resistência, e da Resistência se ter apresentado em S. Miguel e na Terceira nos Açores, e de ter tocado com o Tim no Festival Sol da Caparica, vou estar parado em Setembro só dedicado à produção da cantora Inês Santos. Em outubro há concerto da Resistência em Viana do Castelo no dia 31. Depois logo se verá.

Fernando Júdice. O baixo e os projetos musicais.

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