Ana Cláudia Serrão. A violoncelista da Metropolitana em entrevista.
O violoncelo, a carreira e a vida de Ana Cláudia Serrão são revisitados nesta entrevista. A música sempre fez parte da sua vida pois nasceu numa casa onde se cantava e tocava no dia-a-dia. A violoncelista diz-nos que, à semelhança dos sopros portugueses, «existem já músicos de cordas com carreiras reconhecidas no estrangeiro. No caso dos violoncelistas falo por exemplo do Bruno Borralhinho, que é membro da Orquestra Filarmónica de Dresden, e do Filipe Quaresma, que tem visto o seu excelente trabalho também reconhecido no estrangeiro». Relativamente às competências que considera obrigatórias num violoncelista, não hesita em enumerar: «qualidade sonora, capacidade de manter e conduzir uma frase e honestidade». No que concerne à realidade musical portuguesa refere: «É triste que não saibam reconhecer a magnitude do que por cá se faz».
Agradecemos desde já o facto de ter aceitado este nosso desafio. O que leva uma menina do Fundão a querer aprender música aos sete anos de idade? Havia tradição musical na sua família?
Eu é que agradeço o convite. A música sempre foi parte integrante da minha vida. O meu pai foi durante vários anos baixista e vocalista dos “Parágrafo 5”, uma banda que tinha o seu berço na Barroca Grande, uma das aldeias pertencentes às Minas da Panasqueira, onde cresci. Em casa, a música esteve sempre presente. Recordo com ternura o meu pai a tocar guitarra e a cantar fado, juntamente com a minha mãe. Eu e a minha irmã, também ela violinista, assistíamos aos ensaios dos “Parágrafo 5” com regularidade e esses momentos eram de grande entusiasmo para nós. Queria ir assistir a todos os espectáculos deles e lembro-me de ficar embevecida a olhar para o meu pai no palco e pensar que um dia também eu queria estar ali. Ainda hoje uma das minhas maiores inspirações é ouvir o meu pai cantar fado. Devo-lhe a ele e à minha mãe o gosto pela música e todos os sacrifícios que fizeram para que eu e a minha irmã pudéssemos aprender.
Os professores Carlos Gama e Dália de Lacerda amplificaram o seu desejo de querer chegar mais longe?
Sim, sem dúvida. Foi com eles que aprendi a ler a primeira nota de música, a solfejar, a tocar as primeiras notas no piano. Entregavam-se de forma incondicional aos seus alunos e isso deu-me grande motivação para continuar. Penso que os primeiros professores que encontramos são fundamentais no delinear do nosso percurso.
Quando inicia os seus estudos de violoncelo com o professor Rogério Peixinho, no Conservatório Regional de Música da Beira Interior, já tinha feito a opção de enveredar por uma carreira musical?
Ainda não. Quando fui estudar para o Conservatório da Covilhã entrei também para o Coro Misto da Covilhã, sob a direcção do maestro Luís Cipriano. Trabalhar com ele e fazer parte do coro foi muito importante para o meu desenvolvimento musical. Os concertos do coro envolviam também a Orquestra da E.P.A.B.I. e foi aí que o meu interesse pelos instrumentos de orquestra despertou. Um dia fui ouvir um recital do violoncelista Filipe Quaresma, também ele aluno do professor Rogério na E.P.A.B.I. , e fiquei absolutamente maravilhada. A escolha do violoncelo pareceu-me óbvia. Comecei então a estudar com o professor Rogério Peixinho, o meu primeiro professor de violoncelo, e só depois de um ano decidi que era aquele o caminho que queria seguir.
O professor Luís Sá Pessoa também foi uma influência relevante para si?
O Luís Sá Pessoa foi fundamental. Como já disse atrás, penso que os primeiros professores que encontramos têm um papel determinante no nosso percurso e quando decidi seguir o violoncelo como vertente profissional, ingressei na E.P.A.B.I. na classe dele. Como já tinha começado a tocar violoncelo um pouco tarde, era muito importante solidificar as bases técnicas do instrumento e o Luís soube ensinar-me de forma generosa, compreensiva e eficaz tudo aquilo que eu precisava para poder continuar. Devo-lhe muito. Hoje em dia somos amigos e continuo a pedir-lhe imensos conselhos que aplico nas minhas aulas.
Paulo Gaio Lima, Márcio Carneiro, Jeroen Reuling, Jed Barahal, Luís Claret, Jian Wang, Xavier Gagnepain, Miguel Rocha e Hans Jorgen Jensen são outros nomes que fazem parte do seu percurso formativo. Aconselha os jovens músicos que hoje iniciam as suas aprendizagens a “beber” do maior número de “fontes” e a vivenciar o maior número de experiências formativas?
Claro, o mais que puderem. Todas as pessoas têm algo de novo a acrescentar e todos nos ouvem com uma perspetiva diferente. É natural que digam coisas que já nos foram ditas, mas de uma outra forma que pode revelar-se mais eficaz para nós. Apesar das bases inerentes a cada instrumento, cada músico tem o seu próprio mecanismo para alcançar resultados, tanto no contexto técnico como musical. E “beber” da experiência individual de cada um traz imensos benefícios e enriquece-nos a todos os níveis. Enquanto músico é muito importante saber ouvir e absorver informação. E esse conhecimento traz maturidade que permite a cada um seguir o seu próprio caminho e fazer as suas escolhas performativas.
Quais as principais orquestras em que tocou até hoje?
A Orquestra de Jovens da União Europeia, a Orquestra Gulbenkian e claro, a Orquestra Metropolitana de Lisboa.
Tocar com várias orquestras também acaba por ser importante no sentido de lhe conferir uma maior maturidade musical?
Sem dúvida. Tocar com diferentes orquestras implica conhecer novos espaços artísticos, tocar com novos músicos, diferentes solistas e maestros, para além da possibilidade de ampliar o conhecimento do repertório orquestral. Na minha opinião a oportunidade de integrar diferentes agrupamentos traduz-se numa experiência positiva, de enriquecimento musical e pessoal. No entanto, há imensos músicos que seguem outras vertentes na área da performance ou do ensino e essas experiências são igualmente enriquecedoras musicalmente.
Esse facto também lhe dá a oportunidade de ser dirigida por diversos maestros. Pode mencionar alguns dos maiores nomes da direção de orquestra com os quais já trabalhou?
Trabalhar com Bernard Haitink e Vladimir Ashkenazy foi uma experiência muito marcante para mim. Na OML também tive oportunidade de trabalhar com Michael Zilm, Garry Walker, Emilio Pomarico, Pedro Neves e Christopher Hogwood, entre outros.
Podemos dizer que o facto de ter feito a licenciatura de Instrumentista de Orquestra na Academia Superior de Orquestra da Metropolitana foi um grande marco na sua vida? Muita coisa mudou a partir daí?
Fazer parte de um projecto como a Metropolitana é muito gratificante. É uma casa onde se respira música e na qual cresci a nível musical e pessoal. Está assente numa estrutura bem oleada que permite uma continuidade nos estudos e, eventualmente, no percurso profissional. Enquanto aluna da A.N.S.O. pude trabalhar com diversos e brilhantes professores e músicos que integravam a OML, assistir a imensos ensaios onde podia ouvir os meus professores e integrar a Orquestra nos chamados “programas sinfónicos”. A Metropolitana permitiu-me consolidar a minha personalidade artística e abriu-me portas que definiram o rumo da minha vida. Afinal, é na Orquestra Metropolitana que estou desde 2006.
Jeremy Lake e Pedro Neves foram nomes que a marcaram nesse percurso?
O Jeremy Lake foi meu professor durante o 1º ano do curso e foi com ele que trabalhei o Concerto para Violoncelo e Orquestra em Dó M de Joseph Haydn. A cadência que toquei tinha sido escrita pelo pai dele, que era pianista, e foi ele que me acompanhou ao piano no meu exame de 1º ano. Existia um grande dinamismo nas aulas e recordo frequentemente aspetos que trabalhei com ele, que aplico ainda hoje.
O Pedro Neves foi o meu professor do 2º ao 4º ano do curso superior, e foi com ele que me licenciei. Estou segura de que ter tido o Pedro Neves como professor foi das melhores coisas que aconteceram no meu percurso e tenho por ele enorme carinho e admiração. Ensinou-me grande parte daquilo que sei hoje enquanto violoncelista e sobre a relação com os pares através de uma simbiose saudável e equilibrada entre o ser músico e o ser indivíduo. É um músico brilhante, de uma generosidade comovente e com o qual continuo a ter a imensa sorte de poder trabalhar enquanto maestro.
Não posso deixar de mencionar também o professor Paulo Gaio Lima, com quem estudei um ano após a minha licenciatura e durante o mestrado, que me encontro a finalizar. É um professor e violoncelista excepcional que me ensinou a querer melhorar cada pormenor da minha interpretação, técnica e musicalmente... A estar atenta a cada detalhe e a desafiar-me constantemente para melhorar. O seu gosto pelo instrumento e pelo ensino é notório e a sua entrega aos alunos é constante. Tive de facto a sorte de encontrar professores absolutamente extraordinários no meu percurso.
O Conservatório de Amesterdão foi outro ponto de viragem na sua carreira? Como surgiu esta oportunidade e quais os nomes com os quais teve oportunidade de trabalhar?
Após terminar a licenciatura senti vontade de continuar a estudar e o Luís Sá Pessoa falou-me de um professor que dava aulas no Conservatório de Amesterdão, Dmitri Ferschtman. Ouvi algumas gravações dele e de alunos dele e identifiquei-me muito com a forma de tocar a nível estilístico e sonoro. Fui então estudar com ele em Setembro de 2005, inicialmente por dois anos. Entretanto em Março de 2006 abriram as audições para a OML, para as quais ele me preparou, e ganhei o lugar. Integrei a OML em maio de 2006 mas continuei a ir a Amesterdão até julho. Era um professor muito exigente, oriundo da chamada “escola russa”, que me fez procurar outro conceito sonoro no violoncelo. Consolidei com ele vários aspectos técnicos do instrumento e essa aprendizagem foi claramente importante.
Em julho de 2004, venceu o 3.º Prémio (nível superior) de Violoncelo do Prémio Jovens Músicos da RDP. Foi muito importante, para a Ana Cláudia Serrão, esta conquista?
Não penso que o resultado em si tenha sido relevante, mas foi importante na medida em que desenvolvi um trabalho de preparação intenso muito benéfico.
Podemos encarar a sua entrada, em 2006, para a Orquestra Metropolitana de Lisboa como a cereja no topo do bolo? É o, merecido, culminar de uma vida de estudo, esforço e dedicação?
Cereja no topo do bolo é uma expressão que ilustra bem o que senti ao entrar na OML. De facto um músico dedica-se ao instrumento de forma incondicional. Ver o seu trabalho reconhecido é emocionante. Tocar em orquestra sempre foi das coisas que mais me realizou enquanto músico e quando entrei para a OML posso dizer que vi um sonho realizado.
Mas um músico nunca para de estudar, não é?
Nunca, de forma alguma. E ainda bem. É um constante desafio preparar obras diferentes e testar os nossos limites no instrumento. Tocar um instrumento é algo de muito físico também. Assemelha-se de certa forma a um desporto e é necessário manter constantemente a forma. Para mim estudar é uma necessidade. Porque é aquilo que amo fazer, que me emociona e que me dá adrenalina. Na realidade não me imagino a fazer mais nada. É uma sorte poder fazer aquilo que nos faz feliz.
Quais os projetos que ainda gostaria de concretizar?
Existe um projecto na calha que envolve outras artes performativas e com o qual estou muito motivada e feliz. Outra coisa que vejo lá ao longe é a abertura de uma escola só de violoncelo. Quem sabe...
Como é o dia-a-dia de uma pessoa como a Ana Cláudia Serrão? O estudo do instrumento e os ensaios absorvem a maior parte do tempo?
Depende dos dias, mas de facto o trabalho de músico e professor é muito absorvente. Ainda assim, gosto de guardar tempo para outras coisas que também me ajudam no processo criativo, coisas pequenas mas da maior importância. Por isso não deixa de ser um dia-a-dia como o da maioria das pessoas. O tempo que passo com quem gosto é fundamental para o meu equilíbrio enquanto músico e pessoa.
Sente-se uma privilegiada por ter tido a oportunidade de absorver conhecimento de tantos “grandes nomes da música” e por ter chegado à Orquestra Metropolitana?
Todos os dias. E continuo a ter o privilégio de privar e aprender com muitos dos meus antigos professores e de trabalhar e partilhar o palco com os excelentes músicos da OML.
Portugal é reconhecido lá fora pela boa escola de sopros que protagoniza. Relativamente às cordas, pensa que caminhamos no mesmo sentido?
Sem dúvida. Aliás, existem já músicos de cordas com carreiras reconhecidas no estrangeiro. No caso dos violoncelistas falo por exemplo do Bruno Borralhinho, que é membro da Orquestra Filarmónica de Dresden, e do Filipe Quaresma, que tem visto o seu excelente trabalho também reconhecido no estrangeiro. Cada vez mais alunos de cordas escolhem deslocar-se para fora depois de obter a licenciatura em Portugal. Entendo que o ensino artístico nacional é de grande qualidade e apesar de considerar que é uma mais-valia ir para o estrangeiro conhecer outros contextos musicais que serão seguramente enriquecedores, tenho muita esperança que Portugal possa vir a oferecer outras condições e a criar incentivos para que estes brilhantes músicos, na sua maioria formados cá, possam regressar.
Se tivesse que enumerar três competências obrigatórias num violoncelista, quais enumeraria?
As mesmas que são para mim importantes em qualquer músico instrumentista: qualidade sonora, capacidade de manter e conduzir uma frase e honestidade.
Muito obrigado por ter brindado os nossos leitores com as suas partilhas. Sonha ver Portugal e os portugueses a abraçar a música e os músicos cada vez mais?
Mais uma vez eu é que agradeço. Entendo que o público tem vindo a abraçar e a reconhecer cada vez mais a qualidade da música que por cá acontece. O mesmo não se pode dizer dos órgãos competentes. A cultura e o ensino artístico têm sido sucessivamente mal tratados em Portugal e os apoios são cada vez mais escassos. É triste que não saibam reconhecer a magnitude do que por cá se faz. E por isso sonho muito que um dia a história possa tomar outro rumo.
Sistema de comentários desenvolvido por CComment