António Saiote. Clarinete e batuta numa só carreira.
“(...) há 10 anos, na televisão, em rodapé, aparecia “Cultura” e eram anunciadas exposições, palestras, conferências, concertos... Depois aparecia “Espetáculo” e eram anunciados fado, música pimba, e outros eventos do género. De há uns anos para cá aparece “Cultura” e são anunciados espetáculos pimba, palestras, livros... Tudo aparece no mesmo saco. A televisão fez pior pela cultura do que todos os vereadores da cultura sem formação, presidentes de câmara sem formação... A televisão veio adensar um problema porque um vereador da cultura que olhe para aquilo diz: «Eu faço cultura». Há uma grande confusão na cabeça das pessoas relativamente ao que é concretamente cultura. Há uma nova tendência na História da Música, havendo muita gente que diz que isto é tudo cultura... e algumas dessas pessoas que dizem isto estão nas Universidades... alguns são musicólogos. Apareceram as chamadas «músicas do mundo» abrindo a «caixa de pandora» e ela agora nunca mais se fecha. Qualquer dia somos todos entertainers, somos todos animadores. Deixaremos então de ser artistas e pessoas de arte. Passamos todos a ser animadores. Passa tudo a ser uma animação”.
Muito obrigado por nos ter recebido aqui em Espinho em vésperas de partir para Itália. Partindo do facto de ter começado a sua aprendizagem musical numa banda filarmónica, gostávamos que nos dissesse se considera que, com a proliferação de conservatórios e academias por todo o país, estas bandas perderam um pouco do seu protagonismo no âmbito do ensino musical.
Em alguns casos sim. O ensino tornou-se mais completo e mais variado.
Houve vantagens ou desvantagens em ter começado a sua aprendizagem numa banda filarmónica?
Eu na altura tive sorte. Estava perto de Lisboa e o maestro da minha banda era o subchefe da Banda da Força Aérea. Ele tocava muito bem clarinete. O professor de solfejo também era músico militar e muito bom músico. Eu podia ter ido para uma banda que tivesse à sua frente alguém que tocasse outro instrumento ou que fosse muito fraco, pois como sabe ainda hoje há bandas muito fracas, como também há muito boas, ou seja, há de tudo. É por isso que digo que tive a sorte de começar a aprender com pessoas muito especializadas e de um nível acima da média. Depois há ainda outra situação. É que na banda em que eu tocava havia muitos músicos militares, logo eu mantinha um contacto próximo com o que de melhor se estava a fazer.
Quando entrou para a banda já levava uma ideia bem clara de que seria o clarinete o seu instrumento?
Eu comecei a cantar em público, em cima de uma cadeira, aos 3 anos de idade pois o meu pai organizava variedades. Logo, tive uma formação musical fora do normal que outros não tiveram. No entanto eu não queria ir para a banda porque, para mim, ir para lá significava ter que ir tocar ao ar livre, à chuva e ao vento. O meu pai convenceu-me a ir para a banda por causa da Guerra do Ultramar. Lembro-me de ir esperar colegas e filhos de amigos e alguns vinham num caixão, outros estropiados, outros vinham sem ferimentos mas com a cabeça “avariada”... Aquilo impressionava-me imenso. Assim, como havia a possibilidade de uma pessoa ir para a banda e depois seguir para a banda militar e não ir à tropa, vi ali a minha grande chance. Foi tudo isto que me convenceu a ir para a banda. Depois de entrar, comecei a gostar bastante. Mas, respondendo à questão... o meu avô foi fundador da Banda da Carris. Dizem que era fraquinho mas fez parte da fundação da Banda da Carris. O meu pai teve o mesmo professor que teve o Marcos Romão que veio depois a ser meu professor. No entanto o meu pai tinha uma voz muito boa, idêntica à do Francisco José e deixou então o clarinete. Aliás, aquela coisa do meu pai querer que eu fosse para a banda prendia-se um pouco com a vontade que ele tinha que eu fizesse o que ele não teve juízo para fazer.
A história de ir para o clarinete, tal como hoje ainda vai acontecendo, prendeu-se com o facto de que os que tinham mais aptidão iam normalmente para o clarinete. Depois vem por aí abaixo... O clarinete é o instrumento mais importante na banda.
O ensino da música em Portugal é hoje muito diferente daquele do qual usufruiu no seu tempo. Houve uma grande evolução. Mesmo assim ainda encoraja os seus alunos a irem estudar para o estrangeiro?
Há normalmente uma confusão muito grande. Por exemplo, neste momento é mais fácil entrar em dezenas de escolas superiores no estrangeiro do que na ESMAE. Este ano tivemos 32 candidatos de clarinete para 4 vagas porque o estado obrigou o politécnico a reduzir o número de vagas. Entre muito bons e excelentes tínhamos, pelo menos, 8 candidatos portugueses e só pudemos aprovar 4 e, nesses, ainda entra o contingente dos “Maiores de 23 Anos” que antigamente era à parte. Portanto este corte vem completamente em contraciclo.
Houve 35 candidatos para flauta... Já há dois anos que a nossa escola era a mais procurada e tínhamos em média 7 candidatos por vaga e agora estão a fazer estes cortes. São os tais cortes cegos. Não sei se são os governos porque às vezes são os próprios politécnicos e as próprias escolas... isto pega-se.
O que se passa noutros países? Por exemplo na Alemanha o ensino é gratuito, sendo mais barato estudar lá do que cá. Na Holanda o ensino é gratuito... No outro dia ouvi dizer que uma escola de lá veio fazer provas à Covilhã... O problema destes cortes cegos é a política estúpida. Quer dizer, nós agora estamos a formar miúdos até aos 18 anos para eles irem engordar os outros países. O que está a acontecer é isso, e também deve estar a acontecer noutras áreas. A história do estrangeiro é uma história mal contada porque hoje, infelizmente, está criada a ideia de que no estrangeiro eles estão acima. Para as pessoas como eu que têm uma certa idade e que têm memória, isso é uma coisa tão estúpida... Era assim que se pensava há 42 anos, antes do 25 de Abril. É muito estúpido ter essa ideia. Eu, até aos 18 anos, só pude conhecer dois professores de clarinete. Um só esteve cá 3 horas e era de Munique, o outro foi um italiano que vinha cá muitas vezes porque acabou por casar com uma portuguesa. Se hoje em dia for ao FaceBook ou outros sites, não faltam cursos com estrangeiros a vir. Hoje estamos em contacto com todo o mundo. O estrangeiro continua a ser interessante porque qualquer pessoa, até um francês, deve ir ao estrangeiro para ter mundo. Agora aquela ideia de que “só o que vem do estrangeiro é que é bom”, é a coisa mais aberrante que existe. Dá até uma certa vontade de rir pois ainda há um mês a minha aluna Diana Sampaio ganhou um prémio no concurso Louis Cahuzacem em França e ficou à frente de uma aluna de mestrado do Conservatório de Paris. Portanto essa história de que têm que ir... também não vou dizer que não é preciso. Agora, o que digo aos meus alunos, pelo menos a alguns, é: “façam a licenciatura e se virem que há dificuldade de trabalho vão para o estrangeiro mas até pensem mais em ir para conquistar”. Eles que vão para um sítio onde possam trabalhar porque clarinete eles já sabem tocar. Quem diz clarinete, pode dizer flauta, oboé, fagote... Ainda há aqueles que dizem aos pais que vão para o estrangeiro e estes ficam todos contentes dizendo: “O meu filho está aqui, o meu filho está ali...”. Outros ainda não se aperceberam, e é a grande maioria, que a pirâmide se virou ao contrário. Hoje em dia há mais escolas do que alunos. As escolas andam à procura de alunos. Eu já dizia há dez anos que qualquer dia ainda iam oferecer uma bicicleta ou um presunto para conquistar alunos. No estrangeiro é um pouco isto que está a acontecer. Há professores que há 10 anos eram os mais procurados a nível mundial e hoje têm dificuldades para formar as suas classes.
Com Bolonha, os diplomas são iguais em todo lado. Isto foi muito mau neste aspeto. Ainda antes de Bolonha, você dizia: “Para onde é que eu vou?”. Havia 3 ou 4 professores. Hoje os jovens não têm referência nenhuma. Muitos andam enganados por causa disso. Vão e vêm. Depois criam assim umas coisas que até parecem algo especiais como “Orquestras XXI”... Se for à Orquestra XXI veja lá quantos deles é que estão a trabalhar lá fora. Eles estão a estudar lá fora mas,... e os lugares? São muito poucos. Depois ainda há outro fenómeno... O Horácio Ferreira, que foi meu aluno, foi nomeado ECHO Rising Star mas ele ainda não ganhou nenhum grande concurso internacional. O Tiago Bento, que acabou este ano a licenciatura, já tem dois primeiros prémios e um segundo prémio internacional. Ganhou o prémio Helena Sá e Costa...
Quando hoje vê tantos alunos seus seguirem carreiras de sucesso, toma a plena consciência de que foi fundador de uma verdadeira “escola de clarinete” em Portugal? Há claramente o “antes de António Saiote” e o “depois de António Saiote”?
Sim. Eu digo sempre que já havia gente em Portugal a tocar clarinete muito bem. Sempre houve... Mesmo noutros instrumentos como o piano e o violino. O nosso problema é que só havia um ou dois. Maria João Pires já existe há cinquenta anos, não é? Sequeira Costa... Nós sempre tivemos individualidades. A diferença do nosso país para os outros é o nível médio. O nosso nível médio era muito baixo. É difícil de acreditar mas, há 40 anos, havia o Conservatório de Lisboa, o do Porto, e depois havia o resto. O Conservatório de Lisboa é que dizia quem é que ia ser professor aqui e ali. Nas outras escolas, quando havia exames, lá iam os professores do Conservatório de Lisboa e do Porto fazer parte do júri. Para o bem ou para o mal havia uma pirâmide. Para algumas coisas era bom. Mas havia pessoas que tocavam bem, o nível médio é que era muito fraco. Lembro-me de ir a escolas e de dizer: “Isto é para chumbar!”.
Mais tarde começaram a pedir-me para indicar professores de clarinete e eu comecei a colocar alunos. Alguns ainda estavam a acabar a formação. A vantagem que eu tive foi estar num país atrasado nesta área. Se eu tivesse ido para Paris, pessoalmente tinha muito mais coisas. Se eu lá tivesse ficado ou se tivesse ido para os Estados Unidos usufruía de vantagens pessoais e profissionais mas nunca faria a “escola” como fiz aqui em Portugal. Eu pude começar a colocar os meus alunos. Fui eu que coloquei o César Ramos na Figueira da Foz, depois colocava o Carlos Alves a dar aulas ali e o Jaime Carriço a dar aulas ali... Às vezes eles ainda não podiam mas o meu nome ia à frente e eu ia lá de 15 em 15 dias e acompanhava o trabalho. Pude assim fazer uma coisa de raiz. Noutro lado seria impossível. Em Espanha... isso é que era bom. Eles lá desesperam para mudar seja o que for. Ainda agora lá fui ao congresso e constatei isso mesmo. O nosso país teve essa vantagem. Depois apanhou-se o 25 de Abril e com alguns incrementos no poder local começou a haver mais investimento nas escolas. A realidade era pobre mas tinha pernas para andar. Pude influenciar diretamente as coisas.
Eu podia estar aqui a dizer que fui eu que fiz isto e aquilo mas há sempre mais do que uma razão. A primeira tem que ser a nossa vontade. Eu vim para Portugal e o meu pai dizia-me: “Tens que fazer uma escola de nível mundial”. Eu vinha mesmo com esse sonho. Ainda agora o Luís Ruvina me disse em Espanha: “Pouca gente pode dizer que antes de morrer consegue ver as coisas a funcionar!” Eu tinha essa ideia, o meu tinha-a também. Ele fez tudo para que eu voltasse para Portugal. Eu cheguei a pensar em não voltar e ficar lá fora pois eu estava no círculo do Celibidache. Ainda por cima tinha-me casado com uma senhora polaca. Eu tinha tudo para ficar lá fora e perdi muita coisa. Quando eu estava no São Carlos, era Lucas Pires o ministro da cultura, eles aumentaram-nos quase para o dobro para 80 contos e eu deixei o São Carlos para ganhar 40 contos no conservatório e para equilibrar as contas comecei a ir dar aulas para Castelo Branco de 15 em 15 dias e para Évora de 15 em 15 dias. Foi mesmo uma opção de vida.
A escola cresce com o trabalho dos meus ex-alunos que também fazem o trabalho deles. Até lhes acho piada porque às vezes eu mexo uma sobrancelha e eles já sabem o que vou dizer. A coisa chegou a um ponto que o professor do Conservatório de Paris e o novo assistente dele que eu conheço muito bem já me perguntam qual é a receita. O presidente do Conservatório de Paris deu o meu nome há três anos para eu fazer parte dos júris de admissão e de saída. Eles, há dois anos que não convidam um professor estrangeiro, isto para dizer que os franceses também precisam de ir ao estrangeiro. Por isso é que eles levaram esta “lambada” em Versalhes? Sim, porque é um escândalo que uma portuguesa chegue lá e ganhe aquilo, e olhe que a Diana Sampaio não é daquelas que todos dizem que vai ganhar isto e que vai ganhar aquilo... foi uma aposta minha. Ganhou por unanimidade com 10 membros do júri, dos quais, 8 eram franceses. De repente eles olham para o lado e constatam que o isolamento é nisto que dá. Se olhar para o que se está a fazer em Portugal, verifica que há estágios e cursos por todo o lado. Convida-se toda a gente. Bons, maus, às vezes também acontece. Devemos ser provavelmente um dos 10 países do mundo que convida mais gente do estrangeiro. Nós, no Porto vamos reativar a associação que, por razões familiares, teve que parar um bocadinho.
Repare que o primeiro congresso mundial que se fez em Portugal foi de clarinete em 2009 e na península ibérica também foi o primeiro. Só este ano é que foi em Madrid e eles têm muito mais dinheiro do que nós. Toda a gente estava a comentar isto em Madrid. Eles adoram o nosso país. Dizem que os nossos alunos são dos mais humildes que eles encontraram. Não temos só qualidade e vontade, temos um bom lado pessoal e isso é muito importante.
Então também houve essa preocupação na formação deles? Não é necessário formar só bons performers...
Da minha parte sempre houve essa preocupação. Se os alunos não forem minimamente corretos, eu afasto-os e com a maior das facilidades até porque hoje em dia o que não faltam aí são escolas de música. Um pai confia-nos um filho (às vezes há colegas que se esquecem disso). Na música o ensino é muito pessoal. Sendo individual, há uma maior responsabilidade por um lado, por outro, e digo isto por causa da Orquestra da ESMAE porque quando há problemas, costumo dizer: “Há hábitos que se adquirem aqui na escola”. Assim, um dia quando forem para uma orquestra, se forem maus colegas, vão denunciar os colegas e defraudar os colegas e isso é muito mau.
Tem visto gratidão e reconhecimento por parte dos alunos que têm passado pela sua mão? Há reconhecimento perante o mestre?
Sim... Há aquela coisa da psicanálise que diz que todos matam o pai alguma vez (sorriso). Com o tempo precisam de “matar o pai” de se separarem. Isso passa-se com todos e às vezes há colegas que lidam mal com isto ou com aquilo. Mas a idade ajuda-nos a lidar com as coisas de outra maneira. Os meus alunos têm que crescer. Eu próprio também cresci e há muitas coisas que eles eventualmente fazem que eu também fiz. Isto vai-se repetindo. Por vezes dizemos que isto ou aquilo não se faz, mas depois pensamos e refletimos: “Será que eu também não fiz isto desta ou daquela maneira?”.
E o país? Portugal tem sido um país grato por tudo o que por cá desenvolveu?
Se eu pensar nas pessoas em geral não me queixo. Governo já é outra coisa, presidente da República já é outra coisa... Mas há muito tempo que já “arrumei” isso e já não sofro com isso também. Não vale a pena pensar muito nessas coisas... Se você olhar para as condecorações do último 10 de junho... (sorriso)
Ainda há dias estava a falar com o Agostinho Vieira de Castelo de Paiva... a mulher dele é enfermeira. Falávamos porque durante um ano passei todos os dias pelo hospital e vi lá grandes heróis. Às vezes parece que temos falta de exemplos mas o nosso país tem grandes exemplos, basta querer vê-los. Agora se nunca estiveram numa neurocirurgia ou numas urgências... Eu acredito que haja no governo pessoas que nunca souberam o que é isso. Acredito até que muitos nunca fizeram compras. Alguns nunca foram sócios dos bombeiros.
Alguns nunca viram uma banda por dentro. Hoje temos muita gente que governa que se fez nas “juventudes” dos partidos, não se fizeram na sociedade. A partir daí as asneiras que fazem são normais. Se não fizessem asneiras é que não era normal. Há uma coisa que costumo dizer aos meus alunos: “Se uma pessoa está à espera de algum reconhecimento...” (às vezes há algum exagero nisso). O melhor reconhecimento é o trabalho que eles fazem. Se formos espreitar as visitas e os comentários da Orquestra da ESMAE no YouTube... Sim, porque as pessoas não acreditam que há uma orquestra de jovens a tocar daquela maneira, e muito menos em Portugal. Fazer isto a partir do Porto e não de Lisboa dá-nos um certo gozo! E eu sou de Loures e conheço muito bem o que se passa neste país... Tudo isto para dizer que há pessoas que têm satisfação por terem um BMW ou por serem ricos. O trabalho que desenvolvo com os meus alunos dá-me uma enorme satisfação... e, como dizia o ex-presidente da Câmara do Porto, fora do principado (risos). Esse é o melhor reconhecimento.
Ao longo desta sua vasta carreira tem contactado com os grandes nomes da música mundial. Há alguns que o tenham marcado ou impressionado de forma mais evidente?
Ao nível do clarinete, uma personalidade que me marcou muito foi o Karl Leister. Já estive com ele em júris, já tive aulas com ele e até já nos chateámos. Ele é uma figura da Filarmónica de Berlim e não só. Dos atuais, eu sou muito amigo do Ricardo Morales que é um clarinetista espetacular e é uma pessoa excelente. Stanley Drucker também é alguém que admiro e que toca na filarmónica de Nova Iorque. Nunca esperei tornar-me amigo dele que é uma força da natureza. Isto falando do clarinete. Mas se falarmos de outros instrumentos posso dizer que sempre fiquei impressionado com o Sequeira Costa porque convivi com ele, e também com a Natalia Gutman... Estes e outros que conheci. Também há os que não conheci pessoalmente. Uma vez cruzei-me com o Carlo Maria Giulini, de quem já ninguém fala hoje porque já morreu. Cruzei-me com ele no aeroporto e fiquei tão aparvalhado que quando me virei para trás ele já tinha passado no controle. Outros grandes maestros?... o Toscanini, o Bernstein...
Quanto ao Bernstein, falhei um encontro com ele por duas vezes: fui à Orquestra Mundial em 1977 e ele dirigiu a Orquestra Mundial em 1976. A segunda vez foi em 1981, quando morreu o Karl Richter que dirigia o Coro Bach. Eu tinha ido à Polónia com os maus pais para oficializar o meu casamento. Ligam-me a dizer “Olha, morreu o Karl Richter e depois de amanhã vai haver uma cerimónia fúnebre. O Bernstein vem de Nova Iorque e vai dirigir o coro Bach e o ensaio é na escola às 11:00 da manhã”. Eu fiz tudo para ir e não me deixaram. Na altura, com a “Cortina de Ferro” não se podiam fazer as viagens à vontade. Cheguei no dia seguinte. Ele deixou-me meia garrafa de Jack Daniel’s para eu beber (sorriso). Falhei então mais este encontro com ele e isso custou-me bastante porque era uma personagem que eu gostava de ter conhecido.
Para além da carreira como instrumentista e como docente abraçou também a direção...
A maior parte das pessoas pensa que eu comecei a dirigir porque já era um grande clarinetista. Outros acham que foi algo que veio depois... Eu sempre disse que foi ao contrário. Sempre que lá passo lembro-me... Em 1974, com 14 anos eu dirigi pela primeira vez a Banda do Samouco em Vouzela com o filho do Maestro da Banda que era o Taneco, grande trompetista. Na impossibilidade do maestro chegar a tempo de uma viagem, ele olhou para mim e disse: “Olha, vais tu”. Fiquei sempre com aquele “bichinho”, com a vontade de dirigir. Eu dirigia muito em casa com colegas. Dirigíamos sinfonias de Mahler, de Bruckner... Com o Ricardo de oboé e com o Virgílio de Melo, o compositor. Passávamos muitas tardes de domingo a fazer isso. Depois vim a dirigir o Grupo de Música Contemporânea, a Sinfónica Juvenil no Porto...
Em 1982, em Munique, eu estava no círculo do Celibidache. Havia muitos que queriam estar onde eu estava e, como lhe disse, acabei por dar um chuto naquilo para vir começar uma escola de clarinete em Portugal. Eu sempre coloquei a direção de lado por causa do clarinete. Cheguei aos 33 ou 34 anos, quando fui presidente da Escola Superior e disse assim: “Acabou! Não vou morrer sem fazer isto”. Disse então a vários colegas para me avisarem quando soubessem da vinda de algum maestro. Foi então que a Irene Lima do violoncelo me disse: “Está cá o George Hurst. É capaz de ser interessante para ti”. O Philippe Cuper, solista da Ópera de Paris também já me tinha falado do George Hurst. Eu falei com ele e lá fui até Canford. Eu já dirigia a Orquestra do Porto, já tinha dirigido várias vezes e levei assim uma “lambada”... Foi então que eu disse: “Maestro, há aqui um problema. Eu não preciso da direção para viver”. Ele disse-me: “Eu compreendo perfeitamente, mas tu tens que estudar isto a sério! Tu és um grande músico, portanto serás um grande maestro de certeza. Tens que te convencer de que é preciso trabalhar a técnica”. Eu achava que a técnica não era importante. Foi então que comecei a mandá-lo vir uma vez por mês e - é que foi mesmo assim - eu pagava do meu bolso. Depois houve mais colegas interessados e comecei a organizar cursos com ele. Por exemplo o Luís Carvalho e o Rui Pinheiro são desse tempo. Depois, passados 3 anos, voltei a Canford e em dois anos consecutivos fui eu que dirigi o concerto final. Depois tentei voltar lá mas já não tinha idade porque os cursos de direção eram só até aos 34 anos. Ele escreveu-me uma carta onde dizia que eu tinha sido dos melhores que tinha passado por Canford em 40 anos e um deles foi o Simon Rattle (risos).
Sente que acabou por ter tanto reconhecimento na direção como no clarinete?
De alguns anos para cá isso já acontece. Há muita gente que me conhece como clarinetista e há sempre aqui um problema. Os que me conhecem como clarinetista não acreditam que eu seja um maestro a este nível. Os que me veem dirigir também ficam a olhar porque pensam que eu já não toco, ou que não sou “aquele” clarinetista. Em Portugal não há lugar para quem toque a um certo nível e dirija ao mesmo nível. Nós cá não concebemos isso. Mas não é só cá. Isto também acontece porque há colegas que dirigem porque são músicos mas nunca trabalharam direção a sério e criam aquela imagem de que são um maestro “mais ou menos”.
Cada vez tenho mais convites para dirigir também por causa disso. Porque leva tempo e é um preço que se tem de pagar. Por outro lado, há uns anos para cá eu já podia ter a minha orquestra profissional... Não dou um passo para isso! Às vezes as pessoas dizem: “isso é conversa!” Mas há uma razão muito simples para isso: No dia em que eu for titular de uma orquestra terei que pendurar o clarinete. É claro que, se desse esse passo, concertos não me iriam faltar. Mas pago esse preço. Gostava de fazer um bocadinho mais do que faço mas não troco nada por isto. E há outra razão. Num país como Portugal (pequenino), se você só dirigir, tem que se sujeitar a tudo porque não tem mais nada para fazer. Quanto mais não fosse por isso, jamais deixaria o meu lugar de professor de clarinete.
Nunca gostei tanto de tocar como agora. Gosto muito de dar aulas. Tenho uma satisfação enorme. Não sei se sabe mas a Cândida entrou agora para o São Carlos. Há dois anos tinha ganho o concurso da Associação Internacional de Clarinete no Japão e em segundo ficou o João Moreira. Agora no São Carlos aconteceu a mesma coisa. A Cândida ficou em primeiro e ele em segundo. Também foi à final um espanhol. A Cândida foi a mais esperta deles todos... veio cá na terça-feira ter aula comigo (sorriso).
Nós somos um país muito pequeno e depois andamos aqui a tropeçar uns nos outros. Há dias falava com uma amiga brasileira que me dizia: “Saiote, essa sua escola chegava para o Brasil inteiro e sobrava!”. No outro dia o Nuno Silva, que foi dos meus primeiros alunos em Lisboa, estava a falar-me de uma ex-aluna que também tinha ganho na Associação Internacional e eu não estava a conseguir lembrar-me de quem me falava. Já são muitos. Ele pensava que eu estava a gozar com ele mas de facto eu não estava a ver quem era. Já são bastantes.
Recorda-se de alguns pontos altos da sua carreira enquanto maestro? Há pouco falávamos da Gulbenkian mas há certamente outros momentos inesquecíveis...
Por acaso a Gulbenkian era a única orquestra que eu ainda não tinha dirigido e correu muito bem lá no Festival de Alcobaça. Além da primeira vez que dirigi na Orquestra Juvenil, posso dizer que um ponto alto foi um célebre concerto no meio dos anos 1990 num Festival de Coimbra. O Monde de la Musique fez uma crítica muito boa sobre a nossa interpretação da Petrushka. Foi uma revolução na altura. Houve outros dois pontos altos mais recentes. A Sagração da Primavera que pode ser vista no YouTube, o Dom Juan de Strauss... Outro ponto alto foi quando fizemos a ópera “Amor de Perdição” com música do João Arroyo. Fizemos esta ópera cem anos depois da sua estreia. Durante cem anos ela não tinha sido apresentada. É uma ópera espetacular. Houve pessoas que até puseram melodias desta ópera no telemóvel. Penso que é mesmo a nossa única ópera que tem influência de Wagner e de Massenet. É uma tristeza que no nosso país só a tenhamos feito em Bragança, Lamego, Vila Real de Santo António, Guimarães, Vila Nova de Famalicão e no Porto. É uma ópera espetacular. Francisco Bernardo escreveu o libreto original baseado no romance de Camilo de Castelo Branco em italiano e em alemão. A tradução do libreto foi de Maria João Braga Santos no caso do primeiro e do segundo ato e o terceiro ato foi traduzido pelo Alexandre Delgado. Quando falávamos há pouco de reconhecimento, podemos olhar para este outros tantos exemplos em vez de andarmos a dizer “Ai eu devia ser isto ou aquilo...”. O nosso país é como é, e as pessoas são como são. Somos um país com menos tradição musical e funciona muito em circuito fechado. Uma vez o Maestro Donato Renzetti disse-me assim: “Tenho tanta pena de si. Você gosta tanto de ópera e o seu país só tem um teatro”. Em Itália, mesmo com a crise, eles ainda têm 5 teatros nacionais, 9 provinciais, 25 comunais fora as associações. No nosso país é complicado...
E formamos tantas sopranos com reconhecimento internacional... Depois não há onde apresentar o trabalho...
Os solistas e os maestros precisam de treino. Lembro que a minha escola é a ópera. Recordo-me de quando tocava no São Carlos e de conversar com alguns cantores dizendo-lhes: “Se eu tocasse em público uma ou duas vezes por ano como vocês, deixava de tocar como solista, pois cada vez que fosse tocar tremeria!”
Já falámos de toda a evolução que se tem vislumbrado no mundo musical. No entanto ainda haverá muito a mudar. Concorda?
Há várias questões no meio disto tudo. Repare, há 10 anos, na televisão, em rodapé aparecia “Cultura” e eram anunciadas exposições, palestras, conferências, concertos... Depois aparecia “Espetáculo” e era anunciado fado, música pimba, e outros eventos do género. De há uns anos para cá aparece “Cultura” e são anunciados espetáculos pimba, palestras, livros... Tudo aparece no mesmo saco. A televisão fez pior pela cultura do que todos os vereadores da cultura sem formação, presidentes de câmara sem formação... A televisão veio adensar um problema porque um vereador da cultura que olhe para aquilo diz: “Eu faço cultura”. Há uma grande confusão na cabeça das pessoas relativamente ao que é concretamente cultura. Há uma nova tendência na História da Música, havendo muita gente que diz que isto é tudo cultura... e algumas dessas pessoas que dizem isto estão nas Universidades... alguns são musicólogos. Apareceram as chamadas “músicas do mundo” abrindo a “caixa de pandora” e ela agora nunca mais se fecha. Qualquer dia somos todos entertainers, somos todos animadores. Deixaremos então de ser artistas e pessoas de arte. Passamos todos a ser animadores. Passa tudo a ser uma animação. Deixa de haver concertos para haver eventos. É tudo uma festa. Eu comparo isto com as animações do MFA da 5ª divisão em que se dizia: “Querem ir tanto ao encontro do povo, que ainda se metem abaixo do próprio povo!”. É isto que se está a fazer hoje e a arte é uma coisa muito séria porque a arte é aquilo que eleva. A arte e a religião são aquilo que nos distingue dos animais. A partir do momento em que desaparece a arte, desaparecem muitos valores ao mesmo tempo. Isso é uma das coisas que está a acontecer. Por outro lado, a maior parte dos programadores não tem independência artística, política e económica para decidir porque têm que prestar contas aos vereadores das câmaras, aos presidentes que querem lá público e o importante é ter muita gente... Há pessoas que começam a ceder porque começam a facilitar nos programas. Eu costumo dar o exemplo do Grupo de Metais de Lisboa. Este grupo foi o primeiro, que eu me lembre, que fazia a segunda parte do programa com música ligeira. Eu só fazia música ligeira no encore. Isto começa a generalizar-se.
Isso revela algum desespero por parte dos músicos?
É uma pressão muito grande. Isto não é indissociável da vida. Hoje, tomara você ter emprego, quanto mais discutir as condições de emprego. Logo, o que acontece hoje é que muitos músicos já estão numa plataforma do género: “Tomara nós que nos paguem, quanto mais ainda nos estarmos a armar em espertos com programas...”. Eu compreendo isto de alguma forma. Não alinhar nisto tem um preço mas eu estou disposto a pagá-lo. Mas eu posso fazê-lo de alguma maneira. Não sendo rico, tenho as minhas coisas no estrangeiro e tenho o meu trabalho mas compreendo que os jovens comecem a sofrer uma pressão enorme porque precisam de ter onde tocar. As Bandas Filarmónicas também embarcaram nisto e fazem programas completos de música ligeira. Ainda há dias me diziam que achavam bem porque as bandas tinham que tocar reportórios mais direcionados para os jovens... Essa conversa é recorrente. Eu já ouvia isto há 40 anos. Mas isto está a adensar-se cada vez mais. Repare que até no norte isto já acontece. A única expressão que conheço para isto é que há um “avacalhamento” geral das coisas. Até na escola. As coisas estão de tal maneira que até os alunos de 15 / 16 anos se vêm queixar. Já não sabem falar inglês... Por isso é que tenho medo de falar da palavra evolução. Ontem falava com uns amigos do “saber falar em público”. Eles até ficaram admirados quando lhes disse que o meu professor de português foi o Virgílio Ferreira. Em 1973/74 nós tínhamos que ler um livro e dar uma aula sobre o livro em português. Em Inglês também tínhamos que ler um livro e dar aulas sobre esse livro. As nossas redações tinham que ser lidas. São coisas simples que hoje em dia não se fazem. Sei que não são obrigados a dar uma aula sobre um livro. Sei que não dão poesia, logo não recitam. Falta este treino. O futuro deste país vai ser muito complicado.
O ensino superior da música em Portugal está no bom caminho ou, como falávamos há pouco, também se notam cedências?
Está a ceder em muitos aspetos. O solfejo está a desaparecer. Há para aí umas correntes que defendem que já nem é preciso fazer solfejo – grandes teorias que vêm da universidade.
Há muita gente a dissertar. Cada vez mais querem que os alunos saibam dissertar. Passando isto para a linguagem futebolística, eu costumo dizer que, qualquer dia, há mais comentadores do que jogadores. Nós estamos aqui para fazer música! Eu estou à vontade para falar porque, “puxando dos meus galões”, costumo dizer que estudei no Liceu Camões, um dos melhores do país, falo seis línguas, pedem-me várias vezes para falar em público, sou maestro, logo não posso ter complexos de só tocar. Saber tocar muito bem não implica não ter conhecimentos sobre outras coisas. Agora o que digo é que, se antigamente havia muito instrumento à frente, hoje há demasiada teoria à frente. Há uma falta de respeito enorme por parte das pessoas que foram para as teóricas em relação aos que tocam. Essa falta de respeito é mais grave porque são eles que estão a ter o poder. É preciso dizer claramente que, quando fui estudar para o conservatório: aqueles que não tinham tanta aptidão, ou iam para a Música Antiga ou para a Música Ligeira ou para aquilo que eles achavam que era Música Contemporânea. Isto porque a maior parte das pessoas que estão nas teóricas, se tocassem clarinete como eu, ou piano como o Jorge Moyano, não tinham ido para a teoria. Esta é a realidade. Há pessoas que têm um determinado talento. Eu não estou a por em causa o trabalho dos outros. Eu sou dos que luto para que haja esse equilíbrio. As pessoas que convivem comigo sabem que, às vezes aqui em casa, eu chego ao fim de uma noite em que estivemos todos a jantar e dou um livro a cada pessoa e digo “daqui a uma semana devolve e falamos sobre o livro”. Agora não podemos de um momento para o outro inverter as coisas com mais teoria, mais disciplinas teóricas e retirar toda a parte que é prática. Nunca faltou gente para fazer a teoria. Nós precisamos de gente que saiba tocar.
Dou o exemplo das Catedrais. Costuma dizer-se que foram feitas no período negro da história, na idade média. Mas fizeram-se e hoje estão cá. Quem fez as catedrais não foram os arquitetos nem os doutores. Quem fez as catedrais foram os mestres. O mestre sabia fazer, sabia como se fazia e sabia explicar como se fazia. Isto é o mestre, uma figura que nunca pode desaparecer. Agora imagine depois de passarmos pela banda, onde as pessoas tocavam e não sabiam explicar nada, depois vieram os conservatórios onde muitos músicos só puderam entrar depois de passar pela Banda Militar pois só depois disso é que tinham tempo e dinheiro para lá entrar... Portanto, muitos só tinham a verdadeira formação musical depois dos 18 anos. Passámos por isto tudo - antigamente tínhamos professores que não sabiam tocar. Agora não me digam que, depois de termos passado por isto tudo, vamos voltar a ter professores que sabem falar muito bem mas que não sabem tocar! Não acha que era um bocadinho estúpido? Não pode haver um compromisso aí pelo meio? Mas nós somos muito atrasados nestas coisas. A moda agora é essa. Pode ser que daqui a algum tempo venha alguém que mude tudo outra vez. Sim, porque quem decide estas coisas não sou eu!
Muito obrigado por este tempo que nos dedicou. Para terminarmos, gostaríamos que nos dissesse, em sua opinião, qual a principal marca que deixa António Saiote às gerações de clarinetistas que ainda por aí virão.
Ainda há dias escrevi isso no FaceBook a propósito do Congresso de Madrid. Seja numa banda, seja numa orquestra, seja num congresso de um instrumento, seja onde for, e não é o instrumento que está em causa, estamos a falar daquilo que a música implica. A música implica comunicação, dedicação, paixão, disciplina, fraternidade porque não se faz música com outra pessoa sem ter em conta uma série de princípios. São 5... provavelmente chegam. Estes princípios têm que estar sempre em causa. Tudo o resto são detalhes. Os concursos, aos quais todos correm, e que acabam por ser uma defesa da pessoa, de nada valerão se não se tiverem presentes estes cinco princípios que acabo de referir. Enquanto tivermos consciência desses valores, o mundo não estará perdido. A música nunca perderá a sua função principal. Quando esquecemos esses valores, para além de os estarmos a pôr em causa, colocamos a própria música em causa.
Hoje já podemos falar daquela reforma do ensino articulado. Eu estava nessa comissão. Era uma comissão muito variada e já lá vão uns 10 anos. No último dia dessa comissão apareceram duas técnicas do ministério para “pôr os músicos na ordem”. Assim, apareceu uma pessoa a dizer que tinha que fazer pate dos currículos a educação cívica e mais umas coisas... Quando chegou a minha vez de falar eu disse-lhe: “Minha senhora, a minha educação cívica foi feita na banda”. Ela começou a olhar para mim e eu continuei: “Na banda, tinha ao meu lado um agricultor que andava com a enxada na mão, vinha com os dedos todos sujos mas foi ele que me ensinou a tocar o hino da banda e a marcha do 1º de Dezembro. Do outro lado tinha um senhor que trabalhava na Lisnave, ou seja havia pessoas de várias faixas etárias e de várias classes sociais. Na banda comecei a ter horários. No primeiro concerto que fiz, havia uma peça que tinha um fugato e eu, pensando que ia a entrar bem, levei uma joelhada do chefe. Já não entrei e também não houve clarinetes até ao fim, mas havia aquela situação de que quando um chefe dizia que não, era não. Havia essa hierarquia. Tínhamos fardamento igual para toda a gente, havia o Hino da Banda, logo o sentimento de pertencermos a uma comunidade. No aniversário da cidade a banda saía e ia cumprimentar todas as instituições da terra, sejam de columbofilia, sejam bombeiros... logo, dávamos conta do que existia na nossa terra. Depois aprendemos que o Hino da Maria da Fonte é para o Primeiro Ministro e o Hino Nacional só se toca para o Presidente da República”. A banda até substituía a tropa. Muitas vezes digo que tiraram a tropa mas, para muita gente que não está no associativismo, não há substituto para a tropa. A banda tem isso tudo. Agora acham que uma grande banda é aquela que não marcha, que só faz concertos... Agora pense comigo... Porque é que há sempre dinheiro para o ciclismo? Porque o ciclismo vai a todo o lado. Lembro-me de, quando era miúdo, estar a mãe a dar peito ao bebé à janela. Não há substituto para esta que é uma das funções da banda e que eu gosto de sublinhar. Enquanto não sairmos do “teatro”, podemos esperar sentados que eles venham. Não caiem os parentes na lama a ninguém por fazer uma arruada. A banda da minha terra fazia um concerto no coreto mas antes dávamos uma volta de propósito e as pessoas vinham atrás da banda até ao coreto. Há uma pedagogia que tem que se fazer porque há pessoas que não querem marchar.
Há dias o Sr. Augusto Flor, doutorado em Antropologia e presidente da Confederação Portuguesa das Coletividades de Cultura, Recreio e Desporto com 32000 associados, pedia-me para que escrevesse o hino deles. Mas falo disto porquê? Eles fizeram um inquérito a todos os sem-abrigo da cidade de Lisboa e a conclusão a que se chega é que não há um único sem-abrigo que tenha passado por uma instituição, seja banda, seja desportiva... Isto é daquelas coisas que deveria ser notícia! Isto deveria ser primeira página porque era excelente para as associações e para o associativismo. É por aqui que passa a verdadeira prevenção.
Os nossos políticos gostam de dizer que vão dar mais meios ou vão lá dar a esmola mas realmente aquele trabalho do dia-a-dia que ninguém vê e que é realizado por estas instituições, não é valorizado. Os pais acham que é uma chatice o menino ir para a banda ou para outras instituições. A banda filarmónica terá sempre o seu lugar. Não deve substituir a orquestra – eu embirro com as bandas sinfónicas e com as orquestras de sopros. A banda não é substituta para a orquestra mas tem uma função que se constitui na nossa ligação com o país profundo. Tenho encontrado grandes valores nas bandas e tento encaminhá-los. Falo inclusivamente com os pais para que estes possam vir a seguir formação superior. Temos que andar com os “radares” ligados porque é nestas idades que eles se começam a encaminhar. Aqui em Portugal, cada um, se puder, esquece logo a banda. Em Espanha isso não acontece. Em Espanha os músicos não renegam o seu passado e mostram orgulho nele insurgindo-se publicamente muitas vezes quando algo não corre bem no seio desta comunidade que engloba músicos, maestros, associações de compositores...
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