Gileno Santana. O trompetista em entrevista
Gileno Santana recebeu-nos na Casa da Música, no Porto, para uma conversa onde passámos por várias fases da sua vida. A aprendizagem e a sorte que diz ter tido sempre ao encontrar pessoas que apostaram nele sem exigir nada em troca são aspetos marcantes na personalidade deste trompetista que nasceu em Salvador da Bahia e que começou a aprender música no interior do Ceará. Ao longo da entrevista não largou o seu trompete Schagerl como se este fosse um prolongamento do seu corpo. Não deixámos de falar obviamente do seu último trabalho discográfico "Metamorphosis" que será apresentado no dia 28 de março, pelas 18:20, no Teatro Estúdio Mário Viegas.
O Gileno nasceu em Salvador da Bahia, no Brasil e aos 13 anos começou a estudar trompete numa Banda de Música do interior do Ceará. Nessa altura a Banda de Música era o único sítio onde se podia estudar um instrumento de sopro como o trompete?
Sim. Embora eu seja baiano, a minha mãe é cearense. Numa determinada fase das nossas vidas fomos viver para a cidade da minha mãe no interior do Ceará. O Ceará é mais no nordeste do Brasil e naquela altura não havia mesmo nada, muito menos conservatórios de música onde pudéssemos fazer os nossos estudos... o sonho de qualquer garoto no Brasil é ser jogador de futebol, o que é normal. Eu próprio cheguei a sonhar com isso. A oportunidade de ser músico surgiu a partir de um convite do meu melhor amigo naquela altura. Ele, que também é trompetista, falou-me de uma novidade na cidade. Eu, curioso como ainda hoje sou, fui então ver qual era a novidade. É bonito estar agora a lembrar-me disto. Quando já somos profissionais há por vezes uma tendência para esquecermos estas coisas que se relacionam com as nossas origens. Lembro-me de todos aqueles sons que me fascinaram. Muitos sons, um pandemónio que, quando não se sabe tocar um instrumento ainda é maior. Vi então pela primeira vez o que era uma banda de música. Eu nunca tinha tido contacto com nenhum instrumento musical. Sou, aliás, o único músico da família. O meu amigo Sávio mostrou-me então o que era um trompete dizendo que aquele era o instrumento que estava a tocar. Foi amor à primeira vista. O trompete cativou-me e nem sequer tive interesse por outros instrumentos.
Sabemos que o maestro dessa banda onde começou a aprender era saxofonista, o que implicou que o Gileno fosse praticamente autodidata no trompete...
Sim. Inclusivamente, ao ensinar-me as posições, ensinou-me ao contrário (risos). Tudo estava a começar, era novidade para todos. Eu tocava e aquilo soava mal. Eu próprio começava a ter a perceção de que as coisas não estavam bem. Acabou por ser bom para eu desenvolver o meu ouvido. Depois fui tendo colegas que me diziam como se deveriam tocar as notas.
O percurso foi rápido pois num instante chega a solista de bandas lá no Brasil...
Sim. Foi muito rápido. Essa situação acabou por despertar "ciúmes" inclusivamente ao meu amigo. É engraçada esta história porque o Sávio, que foi a pessoa que me levou para a banda, quando deu conta estava a tocar o papel de 2º trompete e eu, o de 1º trompete e quando somos crianças não sabemos gerir bem estas coisas... Penso que ele mais tarde se apercebeu de que aquilo era uma coisa natural minha e foi inteligente ao ponto de não se chatear e não levar aquilo a mal. Graças à minha curiosidade, a evolução foi muito rápida. Sempre quis saber mais.
Em Fortaleza as coisas ficaram mais sérias começando aí uma carreira profissional. Começou logo a gravar com grandes artistas?
Sim. Gravei com Sandra de Sá, Ivete Sangalo, Alexandre Pires, entre muitos outros...
Depois há em si uma ânsia de evoluir cada vez mais que o levou a aprofundar o estudo do instrumento. Há alguns mestres que ainda hoje estejam muito presentes na sua memória?
O meu primeiro mestre foi o maestro Costa Holanda. Embora tocasse clarinete, a sua grande vocação era a de educador. Portanto, Costa Holanda foi uma das pessoas mais importantes na minha vida. Foi ele que me alertou para não ser só trompetista, mas para ser um homem com caráter, responsável... Mostrou-me que o trompete sozinho não era importante. Depois houve também trompetistas que foram muito importantes para mim porque os admirava muito. Lembro-me do Joatan Nascimento que foi o meu primeiro professor. Em Salvador tive a oportunidade de voltar a ter aulas com ele, já com 16 anos. Neste sentido, Costa Holanda e Joatan Nascimento foram as duas pessoas mais importantes. Não posso, no entanto, deixar de falar do Sergio Benutti. A minha história de vida foi um pouco complexa. Quando fui para Salvador, fui para casa da minha madrinha e esta, numa determinada altura tomou a decisão de me mandar de volta para a casa da minha mãe. O problema é que naquela altura eu já tinha compromissos para cumprir. Tinha concertos agendados, ainda estava a meio da minha formação escolar e esse Senhor Sergio Benutti disse-me para informar a minha mãe de que eu iria ficar em casa dele pois ainda tinha muitas coisas para fazer ali. Ainda vivi durante 3 meses em casa dele. Tenho tido ao longo da minha vida a sorte de ter muitas pessoas que me ajudaram. Pessoas que acreditaram em mim sem que tivesse que lhes dar nada em troca. A única coisa que lhes tenho oferecido é a minha própria evolução enquanto músico e enquanto pessoa.
Aos 18 anos, Gileno Santana vem para Portugal. Foi uma decisão sua, foi aconselhado por alguém?...
Foi um "mix". Nessa altura estava a trabalhar com uma banda no Brasil que era a Harmonia do Samba. Com essa banda fiz uma tour pela Europa. Tocámos na Suíça, Itália e, por último, em Portugal. Foi cá em Portugal que eu conheci a minha segunda madrinha e ela é a pessoa responsável por eu estar aqui hoje. Naquela altura eu já ganhava bastante dinheiro tendo em conta a idade que tinha, mas não era aquilo que eu queria para mim. Eu sempre quis estudar, formar-me, ter uma carreira e não tocar em bandas porque as pessoas estão-se a borrifar para quem é o trompetista da banda x ou y. Sempre pensei assim. Expliquei isto à Natália, que é a minha segunda madrinha e ficou registado. Regressei então ao Brasil depois da tour e, passados alguns meses, estávamos na altura do "Messenger", ela diz-me "Gileninho, tenho uma novidade para ti. Consegui matricular-te no Conservatório Nacional de Lisboa. Não te preocupes com nada. Recebo-te em minha casa. Só tens que te preocupar com a passagem de avião". Foi o que fiz. Não disse a ninguém, exceto à minha mãe.
Entretanto também já estudou aqui no Porto na ESMAE...
Sim. Estive um ano e meio em Lisboa e depois vim para o Porto. Isto porque nessa altura, lá em Lisboa, fiz as provas para entrar no conservatório e - nunca disse isto a ninguém - não fui admitido. Mas, como tem sido uma constante na minha vida, aconteceu logo depois algo de muito bom. Encontrei o João Moreira que para mim é a maior referência do trompete hoje em dia em Portugal. Ele ouviu-me e eu disse-lhe que gostava muito de ter aulas com ele. Foi muito recetivo dizendo imediatamente que sim. Na verdade era aquilo que eu queria. Eu queria estudar jazz, algo que no conservatório seria impossível. Então o João Moreira começou a dar-me assim umas aulas "clandestinas" no Hot Club... Até hoje mantenho uma relação muito especial com o João Moreira.
A ESMAE (Escola Superior de Música e Artes do Espetáculo) vem depois dessas aulas com o João Moreira...
Sim. Houve muita gente lá em Lisboa que me disse: "Eh pá, não vás para o Porto. Lá não se passa nada...". Mas era mesmo aquilo que eu queria. Queria concretizar o meu sonho. Formar-me, estudar jazz... Cheguei ao Porto em 2008. Tinha chegado a Portugal em 2006.
Antes de vir para o Porto ainda chegou a tocar com a Banda do Herman José...
Sim. Em Lisboa eu já tinha muito trabalho.
Agora toca regularmente com a Orquestra Jazz Matosinhos...
Sim. Sou o lead trompetist que é um papel muito específico e de muita responsabilidade numa Big Band.
Com a Orquestra Jazz Matosinhos tem tido a oportunidade de acompanhar grandes nomes mundiais tais como Jim McNeely, JohRiley, Ohad Talmor, Nicky Marchione, Kurt Rosenwinkel, André Fernandes, entre outros...
A Orquestra Jazz Matosinhos, é o projeto musicalmente mais sólido em Portugal e não só em Portugal pois também toco em Big Band na Suíça e não se vislumbram quaisquer diferenças. Portanto estou muito bem. Tive propostas para viver fora de Portugal mas estou bem. Aqui tenho todas as condições de trabalho.
Para além de tudo isto também é professor na Escola de Jazz do Porto.
Foi na Escola de Jazz do Porto que comecei a desenvolver o meu lado mais pedagógico. Dar aulas é algo muito diferente de tocar.
O facto de ter tido, como disse, tanta sorte e tantas pessoas que o ajudaram, faz com que seja um professor mais dócil, compreensivo e tolerante?
Nas minhas entrevistas com os meus alunos, deixo muito claro que quero fazer parte da vida deles, não só como professor. Quero participar no crescimento deles como pessoas. Todos os alunos que passaram por mim, ainda hoje mantêm contacto comigo. Sei que isso vem das minhas vivências anteriores.
Fale-nos um pouco do GS Quartet.
O GS Quartet nasce um ou dois anos depois de eu ter entrado para a ESMAE. O GS Quartet eram os meus amigos da altura. Não tive a presunção de ir convidar os melhores músicos para tocarem comigo para o projeto ter maior impacto mediático. Optei por tocar o que sentia na altura. Convidei os meus colegas de escola que agora são referências como é o caso do Mário Costa que é o baterista da Ana Moura, ou como o José Carlos Barbosa que é um contrabaixista muito conhecido no Porto e que trabalha com imensa gente. Por isso foi um projeto muito sincero onde queríamos fazer música. Tive a sorte de não tocar só em Portugal. Tive a sorte de tocar em alguns festivais como o Festival de Jazz de Matosinhos, em Gaia no Jazz Festival. Ainda com o GS Quartet tive a sorte de tocar com o Hermeto Pascoal quando ele veio cá. O GS Quartet é o meu começo. O primeiro disco chama-se "Início". Foi um disco muito transparente. Eu sou assim na minha vida. Sou aquilo que sou.
O disco Metamorphosis é o disco do Gileno Santana, ou seja, é ainda mais pessoal. Concorda?
Sim. É um disco editado pela Caligola records, uma editora italiana. O disco foi gravado em 2012 pela mesma formação do GS Quartet mas com a inclusão do guitarrista Miguel Moreira. Foi gravado na mesma base do "Início", ou seja, tocando o que sentíamos sem grandes modas. «Real!».
O disco será apresentado a 28 de março. A partir daí haverá uma tournée para apresentar o disco em mais sítios?
As datas que temos para já confirmadas são em Itália (risos). Em Portugal terei que fazer um trabalho maior para vender o projeto porque infelizmente estamos a atravessar uma fase muito crítica, principalmente na área da cultura que é sempre a mais afetada. Voltando ao facto de este disco ter uma editora italiana, posso dizer que ele foi oferecido basicamente a todas as editoras em Portugal. Não sei qual a razão, mas nenhuma aceitou. Decidi na altura que o disco ficaria em casa. Depois chegou a oportunidade. Tendo em conta que eu trabalho muito fora de Portugal, numa das minhas tournées, ao passar por Itália, falei deste projeto a um colega meu italiano que ouviu e gostou e disse-me que tinha um amigo que era bem capaz de gostar. Assim que ouviram, quiseram logo registar. Foi algo muito fácil. Atualmente o disco está em formato físico mas também pode ser obtido nas plataformas digitais.
Muito obrigado por nos ter proporcionado esta conversa aqui na Casa da Música antes de um ensaio. Há mais projetos para breve?
Sim. Já estou a pensar no projeto seguinte com o meu trio com o Carlos Barreto no contrabaixo e com o José Marrucho na bateria. É um disco sem harmonia... Estou com muitas ideias. Espero conseguir concretizá-las todas.
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