Camané. Uma clarificação sobre o que é o fado…
Fomos a Lisboa ao encontro do fadista português Camané. A entrevista versava a vida e a carreira deste nome incontornável do fado português mas acabámos por embarcar numa conversa que nos levou para reflexões mais profundas sobre o fado e o aproveitamento que muitos fazem deste. Camané disse-nos que atualmente «há mais gente a cantar fado e há mesmo um maior interesse comercial porque as pessoas se aperceberam de que o fado pode significar lucro, expansão, exportação... Muitas vezes as pessoas não estão interessadas em perceber o fado e entrar mais profundamente no assunto... Não percebem que o fado cresce de dentro para fora e não de fora para dentro. Criou-se muito a ideia, principalmente nas mulheres, de que o fado é cantar como a Amália... temos portanto muitas "Amálias(inhas)"»...
Qual foi o seu percurso até à vitória da "Grande Noite do Fado" em 1979? Com que idade se começou a apaixonar pelo fado e pelos seus intérpretes?
Em 1977 já tinha participado e ganho também... O meu interesse pelo fado surgiu, não só por acaso, pois tinha um bisavô que cantava fado e o meu pai tinha muitos conhecimentos sobre fado. Tinha inúmeros discos de fado. O meu pai trauteava sempre fados lá por casa, o que me irritava bastante pois aos 7 anos de idade eu achava aquilo muito esquisito. Entretanto fiquei doente em casa e tinha três discos. Um dos discos era do Frank Sinatra e tinha o "Strangers In The Night" e, no lado B, o "My Way". Outro disco era do Charles Aznavour que tinha o "Mourir d'aimer" e o "Non Je N'ai Rien Oublié" e, por fim, tinha um disco dos Beatles que tinha os temas "Don't Let Me Down" e "Oh! Darling". Ouvi tantas vezes aqueles três discos que me comecei a fartar. Foi nessa altura que me iniciei a ouvir os discos que tínhamos por lá e que eram de fado. Ouvia-os num gira-discos pequenino. Depois comecei a perceber a lógica do fado e a conhecer os fados tradicionais. Às vezes o meu pai começava a trautear o início de um fado tradicional e eu cantava logo o resto. Eu, com dez anos, sabia os fados tradicionais todos. Sabia mais cantá-los de memória do que sei hoje. Hoje posso não associar logo o nome do fado à melodia que estou a ouvir mas se começarem a trautear, identifico-o e consigo movimentar-me dentro dele. Consigo até construir canções dentro de outras canções como acontece no Blues. Faço-o com outras palavras dentro daquela estrutura tendo em conta as quintilhas, os decassílabos...
Entre os 10 e os 14 anos ainda gravei quatro singles e um LP. Talvez me tenha exposto um bocadinho mas tinha a ver com o facto de os meus pais me levarem a casas de fado... Depois parei durante algum tempo por causa da transição de voz. Continuei a estudar e fui ouvindo outras músicas. Ouvia a música que se fazia na altura mais a música que ouvia em casa às escondidas e que era o fado. Ouvíamos em casa de alguns colegas discos dos Beatles, dos Doors, ou seja, bandas que já tinham acabado mas que ainda faziam parte do nosso imaginário.
E profissionalmente? Quando deu início a uma carreira profissional?
Aos 17 anos fui convidado para ir cantar aos fins de semana para um restaurante que tinha fados que ficava na Cruz Quebrada. Aí tive logo a sorte de ter grandes músicos a acompanhar-me. Eram eles o Martinho d' Assunção e o António Bessa. Eram já "velhotes" mas muito jovens musicalmente. Foi portanto um começo fantástico com aquelas pessoas tão experientes a acompanhar-me. Por essa altura, nos meus 17/18 anos, estava a trabalhar e a estudar à noite e ia cantar somente aos fins de semana pois ainda não sabia bem o que fazer. Mas, passado pouco tempo tudo se clarificou com um convite que surgiu para que fosse cantar para uma casa de fados em Lisboa. Aí começou um percurso que assentou em conhecer muita gente, e aprender muita coisa. Cantar em casas de fado dá-nos uma grande experiência e constitui-se como uma forma privilegiada de aprender no terreno. Contactei com os melhores nomes do fado. Muitas dessas pessoas já morreram pois todas eram mais velhas do que eu. Quando há pouco te dizia que ouvia fado, o fazia às escondidas, era porque da minha geração ninguém ouvia fado. O meu reencontro, no fado, com a minha geração deu-se muitos anos mais tarde. Logo, naquela altura, todas as pessoas com quem eu trabalhava, já tinham 40 ou 50 anos no mínimo. Só muito mais tarde começaram a aparecer novos músicos e alguns fadistas novos também.
Das inúmeras digressões que tem feito pelo mundo, houve alguma, ou algumas que o tenham marcado de forma mais vincada?
Não sou pessoa de ficar agarrado a nada. Nem gosto de me agarrar ao passado. Para mim, o que está para vir é que interessa. Realmente já fiz muita coisa mas o que me move é o que esta ainda por fazer.
Quando canta lá fora sente o peso de representar um país e a sua cultura?
Para mim é igual cantar aqui em Portugal, ou noutro país qualquer. Em todos os palcos me entrego com profissionalismo, responsabilidade... Esta minha entrega tem-se refletido na forma como tenho sido recebido pelo público.
De todos os discos que gravou até hoje, há algum que tenha um significado mais especial para o Camané?
Há discos que têm uma grande importância no meu crescimento, na minha forma de estar no palco, na minha maneira de interpretar. Todos os meus discos refletem uma fase de crescimento da minha vida artística. Tenho discos mais introspetivos... Quando interpretamos trabalhos mais introspetivos, refletimos mais o nosso interior mas depois há trabalhos mais descritivos e outros mais irónicos... Isto aconteceu de uma forma mais vincada no meu último disco de originais, o "Do amor e dos dias". Aconteceu porque tive que ultrapassar algumas coisas bastante importantes e isso refletiu-se depois também no palco. Consegui ir buscar um lado mais irónico, mais sarcástico, muito mais descritivo e isso mudou a minha forma de interpretar as coisas. Este foi um disco muito importante para mim porque revela uma grande mudança. Não a mudança por si só foi importante mas também o que essa mudança significou para mim.
Por vezes faz algumas incursões por áreas que se desviam do fado. A título de exemplo poderemos lembrar a sua participação no CD "Humanos", em homenagem ao António Variações ou, com os Dead Combo, no disco "Lisboa Mulata", ou com o Rui Veloso no disco "Rui Veloso & Amigos ", ou com Paulo de Carvalho no disco "Duetos de Lisboa", ou ainda com Pedro Abrunhosa. Sente que, nos dias que correm, este tipo de participações é encarado com maior naturalidade pelos seus pares? O mundo do fado está hoje mais aberto e menos preconceituoso?
A minha música é o fado. Se sou cantor é porque sou fadista, é porque sou intérprete. No caso dos "Humanos", só fizemos um disco e três concertos. Mais nada. A ideia foi: "não esticar a corda". Não achávamos interessante fazer uma tournée com músicas que não eram nossas. No fundo, os "Humanos" foram uma banda fictícia criada para cantar aqueles temas do António Variações que ele não teve tempo de gravar porque morreu antes. Portanto fizemos esses três concertos e depois acabou por sair também um disco ao vivo mas nada mais do que isso. Fiz também uma colaboração com os Xutos & Pontapés em 1999 e mais tarde também me convidaram para o concerto dos 35 anos no Restelo. Com o Pedro Abrunhosa, já tínhamos feito um dueto em televisão e ele depois pensou em mim para outro dueto e como gostei imenso da canção, decidi participar também na gravação da canção. Mas as pessoas também me escolhem precisamente por eu ter esta forma diferente de cantar e que tem a ver com o fado.
Sempre houve muito preconceito em relação ao fado mas esse preconceito sempre veio mais do outro lado e não tanto do lado dos fadistas. Sempre houve um certo preconceito que se foi desvanecendo embora ainda exista e de uma forma injusta em minha opinião. O fado é uma música de grande qualidade. O fado é muito rico em vários aspetos, desde a poesia aos intérpretes... Se olharmos para a história do fado, é incrível... Poetas populares, letristas... algo que nunca existiu em mais linguagem nenhuma da música que se fez e faz em Portugal...
Ao gravar "O Melhor| 1995-2013" sentiu alguns temas mais antigos de forma diferente da que tinha sentido aquando da primeira gravação?
"O Melhor" é uma coletânea, portanto, a maior parte dos temas que estão ali, fomos buscá-los aos discos que gravei na altura, ou seja, não os regravei. Há sim uns temas que regravei em 2004 quando a EMI francesa editou o álbum The Art of Camané - The Prince of Fado. Nessa altura regravámos dois ou três temas. Nesta coletânea, em 2013, não tive que regravar nada. O que existe são três temas inéditos que foram incluídos nesta coletânea. Foram eles "Ai Margarida" do Mário Laginha com poema de Álvaro de Campos, "Ai Silvininha, Silvininha" que era um inédito de Alain Oulman com poema de António Gedeão e "Gola Alta" de Henrique Segurado e Alfredo Marceneiro.
Apresentar "O Melhor | 1995-2013" tem um sabor especial, pois mesmo não tendo regravado, acaba por "recantar" os temas, o que lhe proporciona uma viagem pela sua carreira. Concorda?
Sim, claro. Entre janeiro e maio fiz 40 concertos... quer dizer dois já foram em junho (risos). Havia muitos temas que já não faziam parte do reportório destes últimos anos e isso deu-me imenso gozo pois nesta fase da carreira já temos mais qualquer coisa que a vida nos dá e nos faz interpretar melhor. É algo que nos faz ir mais fundo. Depois há ainda aquela paixão de cantar esses temas que é aqui renovada. Quando cantamos as coisas durante muito tempo também é bom colocar alguns temas em pausa para que não nos cansemos daquilo que estamos a fazer.
Este disco acabou por ser também lançado em Espanha e o Camané teve ainda honras de encerramento do Noticiário da TVE, em horário nobre, na semana que antecedeu o lançamento deste disco. Sente que os espanhóis estão hoje mais próximos e mais recetivos à música portuguesa?
Julgo que sim embora tenham existido casos pontuais como o da Amália e o próprio Carlos do Carmo que são nomes conhecidos em Espanha.
Sente que o fado é a música portuguesa que mais se ouve em Espanha?
Houve uma certa época em que a música popular portuguesa teve muita aceitação em Espanha. No tempo do Zeca Afonso e de outros nomes do género, a nossa música entrava muito bem... Recordo-me de ir a um festival à Galiza e de ver que toda a gente sabia as músicas... Mas o fado realmente sempre teve uma maior projeção. Nomes como Amália e Carlos do Carmo sempre foram muito acarinhados lá. É certo que agora está a acontecer uma certa abertura, nomeadamente com edições no mercado espanhol. Isso é bom para a música portuguesa. Acaba também por haver alguma música pop que entra..., penso que sim...
Acompanhado de Carlos do Carmo, Aldina Duarte, Mário Laginha e Anna Maria Jopek esgotou um Coliseu, com uma assistência completamente rendida ao seu talento. Por que razão escolheu estes nomes para o acompanharem em mais um ponto alto da sua carreira?
O Carlos do Carmo é indiscutível porque sempre fui um fã e ele sempre me ensinou muito. Com ele aprendi muito daquilo que hoje sei. Para mim, Carlos do Carmo é um dos melhores cantores do mundo. Eu, desde cedo que participava em alguns concertos do Carlos. Em 94 ele convidou-me pela primeira vez para participar no espetáculo dele na "Lisboa 94". Nessa altura eu ainda nem tinha disco gravado. E eu, só agora, passados todos estes anos, é que convidei o Carlos do Carmo para participar num concerto meu... Convidei-o para cantar dois temas. Nós já tínhamos inclusivamente cantado juntos. Já tínhamos dividido o palco no Restelo há uns 5 ou 6 anos... cantámos para 25000 pessoas. Também fizemos algo parecido no Algarve e depois no Montijo. Foram espetáculos em que cruzámos os nossos trabalhos cantando temas um do outro. Mas de facto eu ainda não tinha convidado o Carlos para participar num espetáculo meu... Fizemos um tema que eu gravei no álbum dele que se chama "Por Morrer Uma Andorinha" mas depois fizemos uma coisa muito engraçada tendo em conta que nós os dois temos dois "Bairros Altos"... Ele tem um "Bairro Alto" e eu tenho outro "Bairro Alto" e cruzámos os dois "Bairros Altos". Cruzámos as trovas antigas do Carlos como o meu "Bairro Alto", o que originou uma química fantástica.
A Aldina Duarte foi uma pessoa muito importante na minha carreira e com quem aprendi muita coisa. Para além disso, gosto muito do trabalho que ela faz.
A Anna Maria Jopek é uma cantora que conheci em Lisboa há uns 5 anos atrás. Em 2009 ela veio a Portugal gravar um disco... Eu já tinha conhecido o marido dela num programa de rádio na Polónia há uns anos atrás. Ele tinha um programa que abordava as "Músicas do Mundo". Mais tarde ela quis gravar um tema meu que era o "Sei de um Rio", pedindo-me para fazer um dueto com ela no seu próprio disco. A partir daí, sempre que vou à Polónia, ela participa nos meus concertos todos. Até que houve um dia em que pensei: "Porque não convidá-la para vir a Portugal e cantar num concerto meu?".
Quando canta em países como os Estados Unidos, Holanda, Bélgica, Alemanha, Macedónia e Áustria, tem como público mais portugueses, ou mais cidadãos desses países?
Às vezes são só dois ou três portugueses na plateia. O resto são pessoas desses países. Na França chego a ter 20 ou 30 portugueses e a restante assistência é francesa... varia muito. Também já fiz concertos em França para as comunidades portuguesas mas os locais são outros, o circuito é outro... e, nesses espetáculos também acabam por ir muitos franceses. Mas, regra geral, nos meus concertos em França tenho sempre um pouco mais de portugueses do que nos outros países. Por exemplo, já me aconteceu também nos Estados Unidos, num concerto em Brooklyn ter para aí uns 1000 americanos e uns 700 portugueses. Mas acaba por variar muito. No Canadá, há pouco tempo, tive uma plateia, numa das cidades, que só tinha para aí uns 10% de portugueses e noutra cidade do mesmo país passou-se precisamente o inverso, ou seja, 90% de portugueses.
Estas digressões têm-lhe dado oportunidade de ser acompanhado por algumas das mais prestigiadas orquestras do mundo...
A última orquestra que me acompanhou foi a Macedonian Philharmonic Orchestra dirigida pelo Maestro Borjan Canev, mas também já toquei com a Orquestra Metropolitana de Lisboa, com a Orquestra Sinfónica do Porto Casa da Música... Nesta última, com a Macedonian Philharmonic Orchestra, eles acompanharam-me em 8 temas mas estiveram durante todo o espetáculo no palco. Foram impecáveis. Gostei tanto que fiquei com a ideia de convidar o maestro para vir um dia dirigir qualquer coisa cá a Portugal porque a dedicação dele foi incrível.
Sente que o fado está na moda?
Sim... O fado está na moda. Há mais gente a cantar fado e há mesmo um maior interesse comercial porque as pessoas aperceberam-se de que o fado pode significar lucro, expansão, exportação... Muitas vezes as pessoas não estão interessadas em perceber o fado e entrar mais profundamente no assunto... Não percebem que o fado cresce de dentro para fora e não de fora para dentro. Criou-se muito a ideia, principalmente nas mulheres, de que o fado é cantar como a Amália... temos portanto muitas "Amálias(inhas)" (risos). Conhecem umas coisas da Amália, fazem umas versões mas não conhecem o fado tradicional, ou seja, têm uma abordagem um pouco ligeira do fado. O que elas fazem é música ligeira...
Na sua opinião, as ramificações de que o fado tem sido objeto por alguns músicos, colocam a genuinidade do fado em risco?
Há projetos que, embora eu não me identifique com eles, fazem uma abordagem ao fado bastante interessante. Fazem, portanto, uma abordagem menos ligeira. O fado não são cançonetas! O fado não é uma música feita para divertir. O fado é para fazer pensar. O fado tem muito a ver com reflexão, com sentimentos, com uma abordagem profunda da vida e muitas vezes há uma tendência para aligeirar as coisas como se o fado fossem umas cantiguinhas, ou música ligeira... Falo da música ligeira com menor qualidade pois há música ligeira com muita qualidade. No entanto a música ligeira cada vez tem menos qualidade... Ainda sou do tempo em que os festivais da canção tinham música ligeira extraordinária mas isso também foi só até ao Paulo de Carvalho pois o que veio a seguir, salvo raríssimas exceções, é de muito fraca qualidade. Essa superficialidade na abordagem do fado também é oriunda de muitos músicos vindos da música ligeira que quando já não funcionavam tão bem começaram a cantar uns fados... Isso não é fado. São sim pequenos aproveitamentos do fado. Mas continua a haver gente ligada à música pop a fazer abordagens interessantes ao fado. Isto porque vão pelo lado da maior qualidade do fado. Não estão portanto a tentar ser fadistas. Tentam somente aproveitar a linguagem para construir algo novo.
Onde o poderemos ouvir em breve?
Agora vem aí um novo disco lá para fevereiro ou março de 2015 com novos fados.
Em Lisboa só faremos algo após o lançamento do disco. Vou estar em Madrid e em Barcelona a 3 e 4 de dezembro respetivamente. A partir de março estarei nos Estados Unidos e no Canadá...
Muito obrigado.
Muito obrigado...
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