Sérgio Godinho em entrevista ao XpressingMusic…
Sérgio Godinho movimenta-se pela(s) arte(s) de forma singular. Já transformou livros em espetáculos, assim como já transformou temas compostos para bandas sonoras em músicas autónomas do seu vasto reportório. Igual a si mesmo, aceitou falar com o XpressingMusic dando mais uma vez um significado ímpar ao conceito de partilha que lhe é tão caro. Igualmente caro para Sérgio Godinho é o conceito de "liberdade" que está sempre presente na obra e na vida deste artista e que tem vindo a ser reavivado nos espetáculos que está a apresentar de norte a sul do país no ano que se comemoram os 40 anos do 25 de abril.
XpressingMusic (XM) – Muito obrigado por nos dedicar um pouco do seu tempo. A sua música é considerada por muitos como algo inimitável pois tem um grau de originalidade elevadíssimo. Considera que o facto de, desde muito cedo, ter viajado pela Europa lhe permitiu absorver influências que contribuíram para esta originalidade que tantos lhe apontam?
Sérgio Godinho (SG) – Bem, eu não andei só pela Europa, aliás quando se deu o 25 de abril eu até estava no Canadá e estive no Brasil também... Estive lá com um grupo de teatro e até estivemos presos em 1971... enfim há muitas outras influências que não somente as europeias. Mesmo assim, nós sempre tivemos acesso a música de outros países embora o viver de perto a cultura de outros povos e ouvir de perto as suas músicas influencia-nos evidentemente e eu sou muito permeável a tudo o que se possa constituir como estímulos ou influências. Muitas vezes isso pode não ser tão patente... Posso ser influenciado por um autor, por um músico e não o imitar, ficando só a vontade de fazer algo meu. Eu escolhi sair de Portugal precisamente para ter outras vivências, outras influências e para conhecer mundo. É claro que muitas vezes paguei o preço disso passando por dificuldades mas todas essas experiências davam-me a oportunidade de poder "ousar".
XM – As suas canções passam mensagens muito fortes e precisas. No processo de composição das suas canções, o que surge primeiro? A letra? A melodia?
SG – Nas minhas canções considero importante, tudo aquilo que é dito, não sei se se pode resumir na palavra mensagem pois estamos a transmitir emoções, ideias... Curiosamente, primeiro vem a música e esta constitui-se como a base de sustentação das minhas palavras. É a música que me dita como se ordenam as frases, como se organiza a métrica, como surgem as ideias de uma canção ou de outra e é este processo que origina a minha musicalidade e aquilo que canto. Tudo isto é curioso porque vem de uma matéria mais abstrata que gradualmente vai tomando sentido com as palavras. É evidente que no processo de feitura de uma canção também poderei alterar um bocadinho quando sinto que esta ou aquela frase podem influenciar a música. Mesmo quando faço música para outros isto pode acontecer. Vou dar um exemplo... No disco dos Clã há três canções com letra minha e música do Hélder, como já tinha acontecido antes com o "Sopro do Coração". Neste caso eu escolhi de entre as músicas que estavam feitas e que ainda não tinham letra quais as que poderiam ser habitadas pelas minhas palavras. Portanto, também aqui veio primeiro a música.
XM – 1971 foi um ano de muita produção musical para o Sérgio... participou no álbum de estreia a solo de José Mário Branco, "Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades", e faz a sua estreia discográfica com a edição do EP "Romance de Um Dia na Estrada" e do seu primeiro longa-duração, "Os Sobreviventes", sendo este último eleito "Melhor Disco do Ano" recebendo ainda o prémio da Imprensa para "Melhor Autor do Ano". Fazendo uma retrospetiva, pode dizer-nos quais as principais diferenças que vislumbra no meio musical de hoje comparando com esses primeiros anos de carreira?
SG – Nessa altura a palavra "carreira" ainda não estava muito presente naquilo que eu fazia, aliás, nunca esteve. Eu tenho um ímpeto criativo e, não só gosto de criar, que é um ato solitário, como gosto de partilhar as músicas com os meus músicos e depois com as pessoas nos palcos... Nos meus dois primeiros álbuns eu não pude atuar no meu país e também não atuei muito lá fora porque não era conhecido. Portanto, quando cheguei cá, depois do 25 de abril, com dois discos já feitos, o "Sobreviventes" e o "Pré-histórias", havia já uma série de canções que as pessoas cantavam aqui como o "Maré alta" ou como "O Charlatão", ou até a "Noite Passada" que é de outro teor ou "Homem dos sete instrumentos"... Foi muito importante voltar ao meu país e poder cantar livremente e sabe, certamente, o quão importante é essa palavra para mim... Para mim e para muita gente... Foi muito bom poder partilhar as canções no palco, o que para mim é a essência da canção ou da música, ou seja, poder ser praticada e ser reinventada em palcos com versões diferentes e, muitas vezes, com arranjos diferentes.
XM – São muitos os seus discos e sucessos ao longo de uma carreira onde sempre manteve uma linha que não se rendeu aos apelos fáceis do mercado. Há algum, ou alguns, disco ou discos que eleja como preferido ou mais paternalmente acarinhado?
SG – Cada disco é feito de um conjunto de canções... Fala-me de um sentimento paternal... Nós quando temos filhos não gostamos mais de uns do que dos outros, pelo menos comigo isso não acontece relativamente aos meus filhos nem aconteceu comigo e com os meus pais relativamente aos meus irmãos (risos) ... Nós amamos os nossos filhos embora todos eles sejam diferentes, portanto eu não posso estar a dizer que este ou aquele álbum é bom e que o outro não é. Eu, pelo menos, não o sinto assim. Há sempre canções mais conseguidas e menos conseguidas. Mesmo assim, tenho um reportório tão vasto que me permite, por vezes, repousar uma canção, deixá-la descansar e pegar noutras que também merecem ser reavivadas.
XM – As bandas sonoras de filmes e séries são um trabalho com o qual muitos o identificam. É um trabalho que faz apaixonadamente ou acaba por ser algo inerente à sua profissão e sustentabilidade da mesma?
SG – Não é, de forma alguma, um frete. Eu gosto muito de fazer esse tipo de trabalho, aliás, também já realizei... Eu gosto muito das outras artes. Gosto do teatro e do cinema. Quando existe essa "encomenda", esta não é algo que me constrange, pelo contrário, abre-me perspetivas porque me faz compor de maneira diferente para uma personagem, para um elemento e isso para mim é muito interessante e é parte do meu trabalho. Eu tenho algumas canções que começaram por ser compostas para filmes ou para peças de teatro. Por exemplo a "Balada da Rita" foi feita para o filme "Kilas" (Kilas | O mau da fita...) mas depois tornou-se uma canção autónoma, minha...
XM – Clã Camané, Da Weasel, Jorge Palma, Teresa Salgueiro, Tito Paris, Xutos e Pontapés, entre outros, são projetos e artistas que já pisaram o palco com o Sérgio. Considera que a música é uma arte que vive destas e de outras partilhas?
SG – Quase todos esses nomes já pisaram o palco comigo mas estes artistas de que agora me fala participaram todos no disco "Irmão do Meio". Mas por acaso é verdade que já pisei o palco com quase todos eles. As partilhas? Sim, são sempre necessárias. Eu prezo-as muito e tenho muito boa relação com esta teia musical e cultural em que estou envolvido necessariamente. São momentos de aprendizagem mútua. Isso acontece aliás com os meus músicos com quem já partilho esta experiência de palco há catorze anos. Há uma aprendizagem mútua pois eu aprendo com eles e eles aprendem comigo. Não tenho e nem me interessa ter aquela consciência de idade ou de geração. A nossa relação é muito natural.
XM – O que pretende trazer ao público com "Caríssimas Canções"?
SG – "Caríssimas Canções" foi um espetáculo à parte que agora já não estou a fazer e em que cantei canções dos outros. Só a primeira canção do disco é que é minha. Passei por Zeca Afonso, Bob Dylan, Caetano Veloso, Beatles, Doors, Cico Buarque, etc, etc. Portanto, eu quis partilhar o prazer que sempre tive nas canções dos outros. Esse espetáculo que depois se tornou disco teve origem nas 40 crónicas que eu escrevi para o Expresso e que deram origem ao livro "Caríssimas 40 Canções". O espetáculo e o disco foi o completar deste ciclo.
XM – Passados 40 anos do 25 de abril considera que o tema "liberdade" continua atual?
SG – Absolutamente. A canção "Liberdade" é um dos temas que sempre cantei e continuarei a cantar e que diz que só há liberdade a sério quando houver paz, pão, habitação, saúde e educação... Estes são conceitos essenciais, assim como, a justiça, etc. Estes estarão sempre agarrados a outros conceitos, e têm mesmo que estar. No país que temos, vivemos em liberdade mas, com o desemprego que temos, com as desigualdades sociais, com a perda de direitos essenciais... É por tudo isto que temos que nos agarrar a este conceito e celebrá-lo também. É também por isso que este ano foi muito importante celebrar o 25 de abril. Os espetáculos que tenho feito, que começaram no São Luiz e que correm todo o país, são espetáculos que têm sido recebidos com um grande sentimento de partilha e com igual entusiasmo e as salas têm estado cheias felizmente. É bom poder vir agitar as águas...
XM – Como vê a música portuguesa e os músicos portugueses da atualidade? Estamos no bom caminho?
SG – Temos muita música que vem de setores diferentes. Temos ótimos valores que vêm do fado, da música tradicional, do pop, do pop-rock, do jazz... Temos muita criatividade em Portugal, difícil é praticá-la... são as contingências de um pequeno país onde há um cada vez um maior estrangulamento por parte dos teatros municipais e das restantes salas de espetáculos com cortes atrás de cortes. Realmente, por vezes torna-se muito difícil levar um espetáculo com uma equipa, com músicos, com técnicos para todos os lugares onde gostaríamos de levar.
XM – Quais os seus projetos para 2014/2015? Há algum novo disco na calha?
SG – O meu novo espetáculo, para já, é este de que acabámos de falar. Também não haverá nenhum disco este ano. Estou neste momento a escrever contos que vão ser publicados ainda este ano e isso está a dar-me um grande prazer criativo. Eu tenho muitas vezes necessidade de "guinar" para outros tipos de criação e de ser também livre nessa escolha. Estou a encontrar uma voz que me está a ser exigente e que me está a agradar nestes contos.
XM – Obrigado por nos ter recebido para esta entrevista e continuação de muito sucesso nos seus trabalhos.
SG – Muito obrigado.
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