Organs in Dialogue
Os órgãos da Igreja dos Clérigos voltaram a tocar

04/10/2017, Pedro Crisóstomo

Organs in Dialogue

Organs in Dialogue: Oporto - Clérigos Church

São Boaventura; M. Portugal; R. Ferreñac; Pedrosa Gil; J. Lidón; D. Bondaczuk

Javier Artigas; João Vaz.

Arkhé Music
2016002

2016 / CD


Foi recentemente trazido a público um disco com música para dois órgãos gravado pela primeira vez na emblemática Igreja dos Clérigos, na Invicta cidade do Porto. Tal facto se deve ao recente restauro dos órgãos, em 2014, do conjunto dos instrumentos barrocos posicionados na capela-mor.

A presente gravação a dois órgãos é o testemunho documental do re-início de uma tradição musical organística que começou na Península Ibérica nos princípios do séc. XVI, com a música de António de Cabezón (1510-1566), de Heliodoro de Paiva (ca. 1500-1552) e António Carreira, o Velho (ca. 1530- ca. 1594/97), e que se diluiu no início do séc. XIX, em compositores como Fr. José Marques e Silva (1782-1837), Marcos Portugal (1762-1830), José Lidón (1748-1827) e Ramón Ferreñac (1763-1832). Em Portugal sabemos que essa tradição foi de facto interrompida com a Extinção das Ordens Religiosas, em 1834, em pleno Liberalismo, no momento histórico designado por Secularização.
Após cerca de 100 a 120 anos em que a tradição organística esteve adormecida, o processo de re-iniciar esta actividade musical tão antiga deveu-se em particular a dois factores: por um lado o interesse a nível europeu de voltar a interpretar música barroca com instrumentos da época, a chamada “música antiga”, iniciada nos anos 30 do séc. XX, na Schola Cantorum em Basileia, na Suiça, por outro lado, o efectivo empenho no restauro dos órgãos históricos em Portugal, a partir sensivelmente dos anos 60 até à década de 80, através do financiamento por parte da Fundação Gulbenkian, a um conjunto de instrumentos musicais espalhados pelas igrejas e catedrais do nosso país.
No caso da presença de duplos instrumentos num mesmo espaço, podemos dizer que, em Portugal, até finais dos anos 80, início dos anos 90 do séc. XX, apenas era possível ouvir dois órgãos a tocar em simultâneo: na Sé Catedral de Braga e na Basílica do Palácio de Mafra. Os demais instrumentos que coabitavam uma mesma Catedral ou igreja estavam inoperacionais, ou então a funcionar numa situação parcial e em condições muito deficitárias.
Neste momento, para além da Sé de Braga e de Mafra, estão já restaurados o conjunto dos órgãos barrocos da Sé Catedral do Porto (em 2017, por Dinarte Machado), e da Igreja dos Clérigos (em 2014, por Federico Acitores). De futuro, faltará realizar-se o restauro dos dois órgãos da Sé de Lamego, apesar de ser necessário atender ao estado de completa ruína do órgão do lado da Epístola.

Na Igreja dos Clérigos é possível falar de uma prática musical que remonta ao século XVIII, e do qual permanecem testemunho o conjunto dos órgãos da presente gravação mandados construir pela respectiva irmandade no ano de 1773. Os trabalhos decorreram entre 1774 e 1779 sendo responsável o mestre organeiro espanhol Sebastián Ciais Ferraz de Acuña. Em 1864 o organeiro António José dos Santos realizou uma intervenção em ambos os instrumentos, na larga medida em que também o fez, em 1869, no órgão da Epístola da Sé do Porto. Em 1874, Pinho Leal na sua corografia Portugal Antigo e Moderno diz-nos sobre os Clérigos que “o culto divino é desempenhado por sacerdotes aprovados em cantochão e cerimónias eclesiásticas. Para esse fim possui a igreja preciosos ornamentos e dois órgãos”.
No contexto da presente gravação destacam-se por um lado as peças para dois órgãos e, por outro, as peças a solo. Este disco tem, à partida, a particularidade e o mérito de registar reportório que nunca foi gravado. No que diz respeito ao reportório e aos compositores representados, eles incidem sobre o período que dista entre a 2ª metade do séc. XVIII e a 1ª metade do séc. XIX, com excepção da última faixa do disco, um autor contemporâneo.
As peças a dois órgãos gravadas no disco são em número de quatro: uma sonata portuguesa anónima em três andamentos, escrita certamente entre finais do séc. XVIII e inícios do séc. XIX, uma sonata de clarins para quatro mãos do compositor aragonês Ramón Ferreñac (1763-1832), sete versos de Joaquín Pedrosa Gil (17_?-1835), compositor burgalês e organista na catedral de Ourense, e por último uma peça contemporânea, escrita em 2015, por um compositor e organista brasileiro, natural de São Paulo, Daniel Bondaczuk (n. 1984), Cantate Domino Canticum Novum, ou, na sua tradução portuguesa, Cantai ao Senhor um Cantico Novo, peça esta que faz uso das trombetas em chamada, mas num idioma musical a que não será alheia a influência de um Jean Alain ou um Jean Langlais. A peça de Bondaczuk foi escrita para o 1º Concurso Internacional de Composição Festival In Spiritum, em 2015, onde foi a vencedora do Prémio Joaquim Simões da Hora.
Quanto às peças para órgão solo, são em número de três: uma Tocata em Sol Maior de Fr. Francisco de São Boaventura (fl. 1773-1802), uma Sonata em Ré Maior do célebre Marcos Portugal (1762-1830) e três peças do conhecido compositor espanhol José Lidón (1748-1827).
De todo este reportório atrás citado e apresentado no presente disco destacam-se quatro peças, em primeira gravação mundial: a sonata portuguesa anónima em três andamentos (faixa 1), a Sonata em Ré Maior de Marcos Portugal (faixa 3), os sete versos de Joaquín Pedrosa Gil (faixas 5 a 11) e a peça contemporânea de autor brasileiro (faixa 15).
A Tocata em Sol Maior de Fr. Francisco de São Boaventura (fl. 1773-1802), bem como a Sonata em Ré Maior de Marcos Portugal (1762-1830) têm a particularidade de terem sido editadas em partitura pelo organista João Vaz, em 2013, na Institución Fernando el Católico (Sección de Música Antigua). A Tocata de São Boaventura foi transcrita a partir de um manuscrito da Biblioteca Nacional de Portugal, ao passo que a Sonata de Marcos Portugal foi transcrita a partir de um manuscrito do musicólogo Gerhard Doderer.

OrgaosClerigos

Numa parceria luso-espanhola, os organistas que dão sopro ao conjunto dos órgãos dos Clérigos têm já, por um lado, experiência e carreira longas, e por outro, uma larga familiaridade com o reportório do período que diz respeito à 2ª metade do séc. XVIII e à 1ª metade do séc. XIX. São eles João Vaz e Javier Artigas. Aliás, a parceria entre Lisboa e Saragoça remonta ao musicólogo Santiago Kastner (1908-1992), e aos organistas Joaquim Simões da Hora (1941-1996) e José Luís González Uriol (n. 1936).
Javier Artigas, aragonês de origem, formado em órgão e cravo pelo Conservatório Superior de Música de Aragão, professor no Conservatório Superior de Música de Murcia, tem feito ao longo da sua vida concertos pela Europa, Ásia e América, quer a solo quer com vários prestigiados agrupamentos de música antiga. Das inúmeras gravações efectuadas destacam-se o CD de órgão Tañer com Arte (2004), e o CD Invenciones de Glosas: António de Cabezón (2010). No campo da edição musical destacam-se dois livros: a transcrição das peças para tecla do tratado musical (1555) de Juan Bermudo (1510-1565), edição de 2005, e a co-autoria da edição da música para órgão de Jusepe Ximénez (ca. 1600-1672), edição de 2006.
João Vaz é licenciado em órgão pela Escola Superior de Música de Lisboa e pelo Conservatório Superior de Música de Aragão. É professor na Escola Superior de Música de Lisboa. Tem feito inúmeros concertos em Portugal, na Europa e na América do Sul. Realizou uma tese de doutoramento (2009) sobre o compositor Fr. José Marques e Silva (1782-1837), e a música no fim do Antigo Regime.
Da longa lista de discos gravados é possível destacar, a solo, o CD com música de Buxtehude tocado no órgão de Linda-a-Velha (2008), o CD gravado com música portuguesa e italiana nos órgãos de Tavira (2008), ou o CD gravado no órgão de S. Vicente de Fora (2014). Com o agrupamento Capella Patriarchal é possível destacar os CD's com música de Fernando de Almeida (2010) e Fr. José Marques e Silva (2015).
João Vaz tem ainda um conjunto de três edições musicais dedicadas à música portuguesa para órgão: As obras para órgão de Fr. José Marques e Silva (2011), versos para órgão de Fr. Jerónimo da Madre de Deus (2013) e sonatas portuguesas para órgão da 2ª metade do séc. XVIII (2013). É titular do órgão de S. Vicente de Fora e consultor permanente para o restauro do conjunto dos 6 órgãos da Basílica de Mafra.

É importante referir o excelente trabalho de captação sonora, mistura e masterização de Jorge Simões da Hora sob a produção, direcção de gravação e edição de Tiago Manuel da Hora, que permitiram um resultado final extremamente equilibrado numa acústica já de si privilegiada. As notas ao disco são do organista e musicólogo Marco Brescia e dão um enquadramento bastante adequado dos instrumentos e do reportório. As fotografias ficaram ao cuidado de Lauren Maganete ao passo que o design gráfico, bastante cuidado diga-se, ficou a cargo de Cátia Leite. Parabéns pois à Arkhé Music por mais este disco, em tão larga medida pioneiro, quer no que respeita aos instrumentos da Igreja dos Clérigos, quer no que respeita ao reportório apresentado nesta gravação.

Pedro Crisóstomo

Pedro Crisóstomo

Natural da Ericeira, Pedro Crisóstomo é licenciado em Ciências Musicais pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e em Música (órgão) pela Universidade de Évora, onde realizou também o mestrado e Órgão (performance). Concluiu o curso de órgão na Escola de Música do Conservatório Nacional de Lisboa, onde frequentou as classes de órgão de Joaquim Simões da Hora e de Rui Paiva. Além da actividade como organista, tem também dedicado as suas atenções à produção literária e à edição de partituras musicais. É autor de vários artigos de carácter histórico e científico, bem como de dois livros de poesia - Algodío (2005); O Mar é a Tua Voz (2009).

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