J. S. Bach - Markus Passion, BWV 247 (1744)
Reconstruindo a história
J. S. Bach - Markus Passion, BWV 247 (1744)
M. Mathéu, R. Pé, D. Szigetvári, R v. Mechelen, K. Wolff, Veus - Cor Infantil Amics de la Unió, La Capella Reial de Catalunya, Le Concert des Nations, J. Savall
Alia Vox
AVSA9931
2019 / 2 CD
Entre as cantatas, os corais e as paixões, no seio da monumental produção de música para a igreja luterana de Johann Sebastian Bach, as últimas são um ex-libris monumental insuperável até aos nossos dias. Às duas grandes paixões de Bach (São João e São Mateus), as principais referências no seio deste tipo de composições, escritas originalmente para a Páscoa de 1724 e 1727, respectivamente, juntou-se recentemente a confirmação reiterada de uma terceira, segundo o evangelho de São Marcos. Essa confirmação sedimentou-se à cerca de uma década, no ano de 2009, com a descoberta de um libreto correspondente em São Petersburgo, que estimulou esta nova gravação em concerto no Château de Versailles (em 2018), sob a direção de Jordi Savall, que a Alia Vox lançou poucas semanas antes da Páscoa de 2019.
Trata-se de uma reconstrução a partir das fontes textuais que sobreviveram até aos nossos dias e que se tornou possível a partir da investigação e adaptação levada a cabo por Alexander Grychtolik, complementada pela revisão atenta de Jordi Savall. Um trabalho de grande profundidade onde são muitas as questões históricas que se levantam, de ordem musicológica e puramente musical. E nesse sentido, perante um disco com o aparato deste, seria expectável uma maior quantidade de informação do ponto de vista das notas à margem que são relativamente reduzidas.
A «paixão perdida», como serve de título ao texto de Josep Maria Vilar que acompanha esta edição, consiste na última das paixões compostas por Bach, a partir de libreto de Picander – nome pelo qual ficou conhecido Christian Friedrich Henrici (1700-1764), autor de outros libretos para obras de Bach, como é o caso da Paixão segundo São Mateus. A primeira versão de uma paixão de Bach em torno do evangelho de São Marcos será datável de 1731. No entanto, este libreto descoberto e estudado ao longo da última década remonta a uma execução posterior, em 1744, pelo que não corresponde exatamente à primeira versão, como é possível verificar pela comparação entre os respectivos libretos. As principais diferenças prendem-se com o número de partes corais, e a organização entre árias e outros números cantados, e a inclusão de outros novos.
Mas, apesar da existência dos libretos, faltam as partes musicais (sejam elas partituras autografas ou cópias), o que numa obra destas dimensões é um caso inquietante. Não se conhecem quaisquer vestígios musicais que possam servir de ponto de partida estritamente musical. Para tal, Grychtolik e Savall, apoiados num conjunto de fontes científicas levadas a cabo através da investigação de conceituados musicólogos, sugerem que esta paixão se terá tratado de um pastiche, em que Bach terá utilizado música de outras composições, nomeadamente partes solísticas e coraisextraídas de Ode Fúnebre BWV 198, das outras duas paixões, bem como de outras obras de produção musical luterana de sua lavra. Nesse sentido, esta reconstrução assenta na adaptação do texto do libreto de 1744, música das fontes acima referidas, juntando-se-lhes música retirada de um coro pertencente à Oratória de Natal BWV 248 e uma grande dose de conhecimento prático da escrita de Bach para este tipo de composições e neste período final da sua vida. O resultado é, pelo menos, verosímil, para o que miuto contribui a interpretação de La Capella Reial de Catalunya, Le Concert des Nations, do coro infantil Veus – Cor Infantil Amies de la Unió e de um conjunto de solistas entre os quais destaco as excelentes interpretações de David Szigetvári (evangelista), Konstantin Wolff (Jesus) e o contratenor Raffaele Pé – um exemplo capital é a ária “Mein Heiland, dich vergeß ich nicht”.
Na vasta produção de Johann Sebastian Bach não se conta qualquer exemplo de repertório operático. No entanto, uma grande parte da sua obra religiosa (sobretudo as paixões) está impregnada de um intenso pendor dramático que consegue, muitas vezes, prender o ouvinte tanto, ou mais que as grandes óperas de outros autores. Esse atributo que o mestre alemão explorou neste domínio como nenhum outro é tão evidente desde os primeiros compassos das paixões segundo São João e São Mateus, bem como desta nova reconstrução que, pelo sua própria natureza não se fecha em si mesma e lança um conjunto de questões que acabam, também elas, por resultar num argumento extra para o interesse em adquirir esta nova edição.
Performance:
Qualidade Sonora / Recording:
Aparato Editorial / Artwork & Texts:
Tiago Manuel da Hora
Produtor e Musicólogo, autor de várias publicações, rubricas e argumentos para espetáculos musicais. Com uma intensa actividade no ramo da produção discográfica, assinando edições nacionais e internacionais, tem sido também responsável pela criação, direcção artística e produção de diversos concertos e espetáculos. É investigador do INET-MD da Universidade Nova de Lisboa, onde dedica as suas atenções ao estudo da produção discográfica.