Luís Cardoso em Entrevista ao XpressingMusic
Compositor, arranjador, maestro, docente, diretor pedagógico, entre muitas outras funções que exerce com brilhantismo e brio profissional assinalável e reconhecido pelos seus pares, Luís Cardoso é o rosto de uma geração de bons músicos que, assumindo o “risco” de ficar em Portugal, segue e soma êxitos em várias frentes.
O XpressingMusic tentará descobrir um pouco mais sobre a vida deste profissional que amavelmente acedeu em responder às nossas questões.
XpressingMusic (XM) – Luís Cardoso, queremos agradecer-lhe a gentileza demonstrada na aceitação do nosso convite para esta entrevista pois, tendo em conta a sua preenchida agenda, faz com que nos sintamos uns privilegiados. Estando presente em tantas frentes profissionais, como se autodefine o Luís Cardoso? Músico? Compositor? Maestro?...
Luís Cardoso (L.C.) – Eu é que agradeço o interesse nas minhas atividades. Quanto à questão colocada, quando há formulários que perguntam a profissão, costumo indicar “músico”. Não penso muito nisso, mas julgo que “músico” é uma boa definição de síntese para as minhas atividades. Há no entanto duas perspetivas que tenho presentes enquanto autodefinição do meu ofício: - se me focar na atividade na qual invisto mais tempo e ao mesmo tempo é o meu sustentáculo financeiro, é a de diretor de escola; -se utilizar um critério de realização pessoal, sinto mais apelo pela atividade de compositor.
XM – Sabemos ter uma ligação ao coro Vox Cordis de Ponta Delgada nos Açores. Em que consiste a sua participação neste projeto?
L.C. – Há vários anos que colaboro com o coro Vox Cordis, essencialmente na realização de arranjos musicais para os espetáculos que promove. Este coro tem uma atividade que tem pouco a ver com os coros mais tradicionais, que preparam um repertório base e depois realizam concertos quando são convidados. A associação Vox Cordis produz os seus próprios espetáculos, normalmente com convidados de renome – maestros, cantores, instrumentistas – e faz dois ou três grandes espetáculos por ano, apostando fortemente numa boa organização e produção. O facto de haver vários intervenientes independentes e sem relação uns com os outros nos espetáculos implica bastante cuidado na parte dos arranjos. Normalmente todas as partes musicais são ensaiadas de maneira independente e depois juntam-se num ou dois ensaios gerais antes do concerto, não havendo portanto margem para ajustes de grande monta. As produções já incluíram trabalhos com Pedro Abrunhosa, António Victorino de Almeida, Jorge Palma, entre outros, e já englobaram, para além do coro, cantores solistas, orquestra de cordas, combo de rock, guitarra portuguesa, big band, etc.
XM – Em 2006 a editora internacional Molenaar Editions BV decide editar as suas obras. O que representou para si este reconhecimento?
L.C. – A Molenaar é uma das mais prestigiadas e antigas editoras de música, principalmente de banda, no mundo. É para mim um orgulho ser editado por eles desde o primeiro momento, pois é uma forma de as minhas obras estarem disponíveis e acessíveis em qualquer ponto do planeta. Somos já vários compositores portugueses a serem editados por eles, tendo sido o Carlos Martins Marques o primeiro. Há aqui um duplo orgulho, na medida em que este interesse da editora na música de compositores portugueses revela que a nossa qualidade está seguramente ao nível do que de melhor se faz e isso é bom para nós compositores e para a afirmação da cultura portuguesa no mundo.
XM – A Universidade de Aveiro tem sido uma constante nestes últimos anos da sua vida. À data desta entrevista, qual o trabalho que desenvolve nesta prestigiada instituição de ensino superior?
L.C. – Mantenho desde há anos uma dupla ligação com a UA, já que sou simultaneamente aluno e instrutor, desde a minha inscrição em Mestrado na instituição. A minha colaboração enquanto instrutor está ligada ao Mestrado em Música, variante de direção de banda, ministrado na Universidade. Coube-me até aqui ministrar as disciplinas teóricas ligadas ao repertório e à orquestração. Tenho orientado também o segundo semestre da Orquestra de Sopros do Departamento de Comunicação e Arte, fazendo o acompanhamento dos alunos de direção que têm que preparar programas com essa orquestra e dirigindo eu próprio alguns programas. Paralelamente sou aluno de doutoramento, na especialização de composição, e nesse âmbito ministro aulas de Introdução à Composição aos alunos de licenciatura. Acompanho ainda a organização dos cursos de direção com o Maestro Ernst Schelle, normalmente uma colaboração entre a UA e a Banda Amizade de Aveiro. Mais recentemente pretendo dedicar mais tempo ao doutoramento e à parte da composição em detrimento da direção musical. Não sei ainda em que moldes o irei fazer.
XM – Na Escola de Artes da Bairrada desempenha as funções de Diretor Pedagógico e de docente. Pode definir esta instituição para que os leitores do XpressingMusic fiquem a conhecer melhor esta escola que se situa no Troviscal, Aveiro? Tem projetos para implementar e que possam ser revelados aos nossos leitores?
L.C. – A Escola de Artes da Bairrada (EAB), sedeada no Troviscal (Concelho de Oliveira do Bairro) é uma escola oficial do ensino artístico especializado, como são a maior parte dos conservatórios e academias de música. Temos ainda cursos de dança, mas em regime não oficial. A escola tem cerca de 250 alunos diretos (com aulas em instalações próprias) e 250 alunos indiretos (quando os nossos docentes se deslocam a outras instituições para ministrar aulas). A maioria dos nossos alunos tem entre 3 e 18 anos. A realização de projetos específicos está muito condicionada pelo atual enquadramento financeiro, que não é de todo propício a investimentos e só dificilmente se consegue a simples manutenção. No entanto, o nosso objetivo é procurar um ensino de muita qualidade, com base numa organização bem estruturada e num quadro de docentes multidisciplinar, criativo e empenhado. Os nossos principais projetos procuram colocar os alunos em situações o mais próximas possível do exigente ambiente artístico profissional. Cada vez mais procuramos realizar espetáculos multidisciplinares com música e dança, usando recursos multimédia e uma boa produção técnica. Procuramos fugir a preconceitos canónicos muitas vezes ligados ao ensino tradicional de conservatórios e procuramos que o aluno que toca Bach também conheça o fado, o rock, o jazz e outros estilos, desde que não descure as bases técnicas e teóricas que, no fundo acabam por estar muito próximas. Vamos ainda tentar implementar um projeto piloto de introdução da improvisação (não necessariamente jazz) como estratégia didática permanente e introduzir música portuguesa nos curricula de uma forma sistemática. Apostamos fortemente no conceito de “residência criativa” que consiste em concentrar uma grande quantidade de alunos em poucos dias, mas de forma intensiva e criar com eles um espetáculo multidisciplinar.
XM – Para além de compor para Bandas Filarmónicas, também dirige. Considera esta atividade indissociável da de compositor?
L.C. – Não, não considero. Acho que é uma ajuda preciosa, já que a experiência de maestro em relação à eficácia das partituras e ao equilíbrio sonoro das diversas conjugações instrumentais é útil para a composição, no entanto não julgo absolutamente indispensável, pois o compositor pode obter a mesma informação frequentando ensaios ou dialogando com maestros e instrumentistas.
XM – Nos últimos anos tem produzido inúmeros espetáculos. Pode destacar e descrever alguns destes projetos?
L.C. – A minha intervenção na produção de espetáculos tem relação direta com a atividade de arranjador. Não dou destaque a nenhum, pois todos têm as suas especificidades. A minha colaboração tem a ver com o facto de, ao se estar a trabalhar com música escrita e com vários grupos que ensaiam e trabalham separadamente até às vésperas de um espetáculo, muitas vezes o arranjador é o único que tem uma ideia clara do resultado final com a antecedência necessária à preparação de especificações técnicas de palco, sonoplastia, dinâmica de espetáculo e equilíbrio sonoro. É esse o meu papel, mais como técnico de apoio à produção do que produtor propriamente dito.
XM – Desde 2002 tem vindo a acumular alguns prémios e distinções. Algum ou alguns desses prémios tiveram um significado especial?
L.C. – Todos os prémios têm um significado especial, pois no caso da composição são geralmente atribuídos por júris constituídos por compositores, o que quer dizer que os prémios correspondem a um reconhecimento inter pares, que muito me orgulha. No entanto eu destacaria o primeiro prémio que ganhei, o Grande Prémio Silva Dionísio, promovido pelo Inatel, pois na altura a composição para mim era uma mera curiosidade e não tinha qualquer intenção de me dedicar muito a ela. O prémio despertou-me a vontade de orientar os meus interesses para esta área, com a qual hoje me identifico bastante.
XM – Sabemos que dá uma grande importância à sua formação pessoal. A sua vida académica é um espelho disso mesmo, estando atualmente a frequentar o Programa Doutoral em Música. Considera que, nos dias que correm, existe uma consciencialização por parte dos jovens músicos para a importância de uma sólida e constante formação?
L.C. – Acho que há mais procura de formação do que há uns anos atrás, motivada pela facilidade de comunicações e de circulação de informação. Dito de outra maneira, os meios de comunicação permitem conhecer o que de melhor se faz de uma maneira quase imediata e despertam a curiosidade de tentar saber como se faz e como se pode fazer ainda melhor. Por outro lado as pessoas já não procuram uma formação qualquer, procuram qualidade e resultados na formação o que melhora em muito a qualidade global. Na minha opinião a evolução musical das últimas décadas em Portugal é notável em todas as vertentes que conheço. Pela minha parte, procuro manter-me em constante formação a diversos níveis. Frequento o programa doutoral e estou a começar a aprender a tocar contrabaixo de cordas, como já fiz com outros instrumentos, para perceber melhor como escrever música para eles.
XM – Todas as suas atividades ainda lhe deixam tempo para o Saxofone ou, por outro lado, a atividade de instrumentista vai sendo anulada pelo seu sucesso enquanto compositor e arranjador?
L.C. – Continuo a tocar, muito esporadicamente e sem qualquer pretensão de profissionalismo ou de manter carreira como instrumentista. Toco porque gosto de tocar.
XM – Seiscentos e trinta arranjos é um número que impõe respeito, principalmente se atendermos ao facto de ainda ser muito jovem. Tem ideia de quantas bandas e orquestras interpretam arranjos seus por esse mundo fora?
L.C. – Não tenho ideia alguma sobre isso, mas a grande maioria destes arranjos não estão disponíveis comercialmente, foram feitos para formações e momentos muito específicos que não se repetem com facilidade. Os arranjos mais tocados são sem dúvida os de banda e julgo que têm um alcance nacional apenas. Sei que têm uma presença muito forte nas bandas do país, ou em bandas com ligações a Portugal.
XM – Pela sua vida e formação passaram nomes como Fernando Valente, Rui Vieira Nery, Mário Vieira de Carvalho, Manuel Carlos de Brito, Luísa Cymbron, Gerhard Doderer, Salwa Castelo-Branco, Evgeni Zoudikine, entre outros consagrados pedagogos e músicos. Considera que foi fundamental para a formação do Luís Cardoso e daquilo que hoje representa para a nova geração de músicos e estudantes de música o facto ter tido contacto com estes “vultos” da música e da pedagogia musical?
L.C. – Os professores são quem nos ajuda a construir um sentido sobre muitas das práticas e conceitos que desenvolvemos, presenciamos ou estudamos, daí que seja óbvia a importância destas pessoas na minha formação. Nunca fui um aluno exemplar, daí que nunca tenha tido uma relação “mestre - discípulo” com nenhum dos meus professores. Talvez a pessoa com quem tenha estado mais próximo disso foi o Fernando Valente. No entanto, mais do que os conhecimentos técnicos ou académicos que transmitem, o que mais captei de algumas personalidades foi a visão que tinham sobre o que era a música e/ou a arte e a importância de parar para pensar sobre as coisas e não agir só por rotina, hábito ou costume. Julgo que na arte temos que estar constantemente a conhecer e questionar o que está, para poder criar algo novo. Não posso deixar de mencionar que acho que aprendi muito com a simples prática musical e com a audição de música com partitura.
XM – Para terminar a nossa entrevista e reforçando o nosso agradecimento por ter respondido à mesma, gostaríamos que apontasse desejos para o futuro da música em geral e da música em Portugal em particular…
L.C. – Vou inverter a questão e referir primeiro os meus desejos para Portugal. Portugal continua a sofrer de um complexo de inferioridade que hoje é inexplicável, já que a qualidade da nossa música, em todas as vertentes e estilos, nada deve ao panorama mundial. Começa a ser ridículo gastar fortunas com estrangeiros e oferecer migalhas ao português que entra no papel secundário e atua com o triplo da qualidade. O meu desejo é que isso mude. Para a música em geral só desejo a continuação do aparecimento de novas estéticas, novos sons, novos conceitos e novas performances e, como observador ou participante, estar.
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