Helena Caspurro em Entrevista ao XpressingMusic
Helena Caspurro iniciou o seu percurso musical aos dez anos de idade na Juventude Musical Portuguesa no Porto. Estiveram presentes na sua formação nomes como Marília Vaz e Viana, Helena Sá e Costa, Lina Reis Porto e Lino Gaspar. Nomes que contribuíram para uma sólida formação clássica. Com o seu piano e a sua voz, Helena Caspurro reinventa sonoridades e ambientes que muitos poderiam considerar estanques. No campo académico tem dado destaque ao tema da improvisação na aprendizagem levando-a a dirigir seminários em várias escolas, universidades e conservatórios de música tais como Aveiro, Coimbra, Leiria, Viseu, S. Miguel-Açores, Universidade de Manchester (Inglaterra), Prince Claus Conservatoire Groningen (Holanda). Deixamos os nossos leitores com a pianista, com a intérprete, com a docente e pedagoga. Fiquem com Helena Caspurro…
Como já referimos, Marília Vaz e Viana, Helena Sá e Costa, Lina Reis Porto e Lino Gaspar contribuíram de forma marcante para a sua formação clássica. Eles, ou as suas influências, estão também presentes na música que agora faz, mais ligada ao Jazz?
Estão, é claro, estarão, sobretudo sob o ponto de vista da minha história como pessoa, musicista, professora. O que sou hoje é sempre um relato revisitado, refletido, sintetizado e balanceado do meu património de vivências, experiências, emoções. Os universos ou caminhos que escolhi, ainda que bem diferentes em estilo e até forma de estar com a música de os dos meus professores – ou melhor, mais diversos, uma vez que não deixei de fazer ou apreciar música ‘clássica’ – são também fruto do que eles, enquanto músicos, professores e pessoas, me inspiraram. Lembro-me tão bem de estar nas aulas de ‘Solfejo’ com o professor Lino Gaspar, tinha os meus 12-13 anos, e estar deliciada a ouvir os seus devaneios improvisados ao piano minutos antes de começar a aula, ou quando nos acompanhava nas leituras, nas improvisações a solo e em grupo... – que maravilha! Sempre ficava a pensar que gostaria um dia de ser como ele, esse talento. A D. Lina, era assim que a tratávamos, sempre nos estimulou também naquilo que era fundamental para ‘ouvir’ bem e melhor – a improvisação estava sempre lá! Uma pessoa muito simples que tudo fazia para não evidenciar a sua espontânea habilidade musical. A D. Marília, minha professora de piano, pôs-me a tocar aquilo que compus mal tive a minha primeira audição (umas pecinhas muito singelas e ingénuas...), e com ela improvisava também no final das minhas aulas de iniciação ao piano. Aprendi sobretudo o valor e amplitude da expressão musical, o aspeto sobre o qual depositava a sua maior dedicação, fosse qual fosse o enquadramento estilístico. Mais tardiamente, com a D. Helena Sá e Costa, reforcei o rigor e disciplina do estudo técnico e interpretativo ao piano, tendo expandido e consolidado competências cruciais para o meu desenvolvimento ulterior.
Numa perspetiva holística poderemos dizer que a sua licenciatura em Filosofia realizada na Universidade do Porto também contribuiu para a construção desta figura que hoje temos o prazer de ouvir ou, por outro lado, se fosse hoje teria ingressado numa formação superior na área da música?
Desde já agradeço o seu gracejo. Contribuiu, sim, como contribuiu todo o ambiente cultural e intelectual proporcionado pelos meus pais. A iniciativa de me levarem, a mim e aos meus irmãos, para a Juventude Musical Portuguesa, depois de um ano na Ludus, foi deles. Lembro-me de ir pela mão do meu pai quase todos os domingos aos concertos da então orquestra sinfónica, no Rivoli e Coliseu, muitos deles com o maestro José Atalaya a inspirar de uma forma tão bela e perspicaz o público atento. Também, graças a eles, fiz desporto, experimentei a pintura, todo o tipo de artes manuais, teatro, lia literatura e poesia, etc. Sou uma pessoa cheia de sorte...! Depois, escolhi a Filosofia, de facto, e com ela convivi uns anos como estudante na faculdade de Letras da Universidade do Porto. Ajudou-me a construir as janelas com que olho o mundo, inclusivamente, o mundo da educação, do ensino, do conhecimento, da valoração e criação estética da música ou qualquer outra arte, das pessoas. Portanto, continua e continuará de certa maneira a conviver comigo. Se fosse hoje ... é difícil de responder a essa pergunta, pois o meu hoje é este, não o consigo mudar...
Embora tenha concluído o Curso Superior de Piano no Conservatório de Música do Porto, opta por Coimbra para fazer o seu Mestrado em Ciências Musicais. Foi premeditada esta mudança?
A minha estada em Coimbra tem de facto a ver com o mestrado, mas também com a minha vida profissional como docente – estava então a começar na Escola Superior de Educação dessa cidade (depois de dois prévios anos na Guarda). No meu caso, não houve premeditação. Apenas seguir um percurso que me exigia uma série de etapas, entre as quais essa. Nessa altura, as opções em termos disciplinares reduziam-se praticamente àquelas que eram oferecidas pela Universidade de Coimbra (ou Universidade Nova de Lisboa), sobretudo a musicologia histórica. Ainda que sejam áreas fascinantes, não ocupavam o centro dos meus interesses. Foi ótimo, pois aprendi muitas coisas úteis e necessárias, mas se na altura houvesse as possibilidades que hoje existem, teria optado por um mestrado na área da psicologia educacional.
Defendeu em 2006, na Universidade de Aveiro, a sua tese de doutoramento. Nesta debruçou-se sobre os Efeitos da aprendizagem da audiação da sintaxe harmónica no desenvolvimento da improvisação. Ao referir a designação de audiação faz-nos depreender que Edwin Gordon é uma figura que a encanta ou pelo menos que aquilo que este defende é corroborado pela Helena… É mesmo assim?
Encantam-me todas as pessoas que me ensinam coisas novas, pertinentes, me inspiram por causa disso e me ajudam a crescer. Olhando para esse mundo da educação e pedagogia, onde gira grande parte da minha vida profissional, não foi apenas Edwin Gordon que me fez rever, questionar, avaliar o que julgava saber. Sou uma apaixonada pelas vanguardistas ideias de Jaques-Dalcroze, Carl Orff, Edgar Willems, John Paynter... – continuando a corroborá-las, aplicá-las e adaptá-las aos dias de hoje. Ainda que não sem limitações e constrangimentos, tudo o que hoje consigo ‘ouvir’ e traduzir na música o devo a formas de aprender e ensinar que os meus professores receberam, direta ou indiretamente, de Edgar Willems, por exemplo (a influência deste pedagogo na direção e corpo docente da Juventude Musical Portuguesa, onde iniciei e desenvolvi quase toda a minha educação musical, era muito grande, sobretudo na década de 70). Vários são os colegas, uns tornados músicos profissionais (alguns bem conhecidos), outros não, que ainda hoje falam, com muita nostalgia e admiração, no modo como a educação musical os transformou... Referem-se sobretudo à importância decisiva de pequenas coisas que aconteceram no início da sua/nossa aprendizagem musical: o contacto vivo e primeiro com um cancioneiro diversificado, decisivo para a construção de um vocabulário melódico, harmónico, rítmico, etc., sem o qual dificilmente podemos estabelecer relações de significação e transferência sonora e musical, essenciais, por exemplo, para a aprendizagem da leitura e escrita notacionais, para sermos capazes de improvisar, compor, etc.; o trabalho com o corpo e movimento, tão valorizado e explorado, hoje, inclusivamente no mundo da investigação educacional, por todos os admiradores da Rítmica de Jaques-Dalcroze ou dos princípios da compreensão cinestésica de Rudolf Von Laban; o contacto precoce com atividades de índole criativa, como a improvisação cantada, inclusivamente em contextos de grupo; o trabalho sistemático em torno da construção de um ouvido musicalmente sólido e consistente; a interação com professores muito ricos sob o ponto de vista auditivo e pianístico; etc. Tudo isto me serviu para compreender e avaliar qual a importância do conceito de audiação criado por Edwin Gordon, e, de que forma a sua teoria de aprendizagem musical me veio possibilitar organizar e sistematizar, com novas ferramentas teóricas e dados empíricos, sobretudo do âmbito da psicologia, o que tinha aprendido não só com a minha própria experiência como com outros pedagogos, afinal seus antecessores: como confirmava, acrescentava, fundamentava e expandia todas aquelas ideias e princípios defendidos e aplicados noutros tempos.
O grande público conhece-a hoje como pianista, cantora e autora na área do Jazz. Quando se deu o clique na sua vida que a fez enveredar por este caminho? Paulo Gomes e a Escola de Jazz do Porto marcam de alguma forma a sua opção?
Não sei se é exatamente assim, como diz, quando se refere ao grande público. Não me revejo nesse lugar, mas num plano semelhante ao de muitos músicos portugueses (felizmente, cada vez são mais os músicos que com iniciativa própria realizam projetos, acreditam e investem neles, às vezes – a maior parte dos casos, aliás – sem grande retorno ou impacto em termos de público ou visibilidade). O clique... Quando comecei a sentir-me quase apenas professora... A vontade de estudar e aplicar as harmonias do Jazz ao meu instrumento e às minhas aulas, onde executo com grande incidência um papel de acompanhadora, ampliou-se. Já lá estava o bichinho há muito tempo... O meu irmão, então saxofonista, partilhava esse mundo há muitos anos. Também foi uma questão quase existencial, na altura, sentindo que a nossa vida como instrumentistas não pode ficar confinada ao ensino, sob pena de definharmos ou mesmo morrermos musicalmente... Portanto, não me revia nem no papel exclusivo de professora, nem, em termos pianísticos, de intérprete ‘dos outros’, no sentido clássico ou erudito da expressão – sem querer tirar obviamente nenhum valor a essa realidade. Tive que encontrar, pois, o meu próprio caminho com a música – o que me realizaria, me acrescentaria. Enfim, somos todos os diferentes, cada um de nós deve encontrar qual a relação com a música que nos completa e faz feliz. Foi a crise mais difícil de vencer após ter terminado o meu curso superior de piano. Até ao dia em que disse: ‘é agora’! Esse agora era e foi, para mim, o momento de começar a descobrir-me e a reinventar-me. Nunca mais parei. Ser músico, para mim, mais do que ser um grande virtuoso ou intérprete, é ter a oportunidade de se encontrar consigo próprio, crescer e inscrever (para usar a expressão de José Gil). E ser feliz. Gostar de ser assim. Procurar meios, ambientes e pessoas para em conjunto assim celebrar a vida. Paulo Gomes e a Escola de Jazz do Porto ajudaram-me nesse processo de descoberta nomeadamente na fase mais pianística. Foi um (re)começo decisivo. Nessa altura procurava o Jazz. Hoje procuro sobretudo pessoas e ideias. O Jazz é tão-somente uma ferramenta ou, talvez, uma atitude. Não sou uma pianista de Jazz mas uma gestora, recriadora e sorvedora de ideias ao ‘piano acompanhado’ – com voz, a minha, que entretanto encontrei. Olho para o conhecimento e desempenho musical como um processo resultante de pessoas e vivências, como tal dinâmico, vivo, em contínua (re)construção. O passado, a história, os outros ensinam-nos isso mesmo, a ‘sermos’, hoje. E as pessoas, o que imaginam, sonham, nas suas múltiplas vertentes, são cruciais para o contexto, formato e natureza desse processo pessoal. Com elas, músicos, designers, fotógrafos, figurinistas, cineastas – afinal a equipa com que trabalho sempre que estou a produzir um novo trabalho, como está a acontecer agora com o CD que espero editar neste ano que vem – procuro contagiar, contaminar e ser contagiada. No bom sentido, claro, só esse. Quando conseguimos partilhar o que fazemos, criamos e sentimos com mais ‘eus’ chegando a outros públicos, os ouvintes, o retorno que realizamos é então incrivelmente gratificante e inspirador. A vida é assim: uma roda, como dizia Lavoisier: …nada se cria, nada se perde, tudo se transforma... Uma maravilha.
Recorda-se da sua estreia em palco no 7º Festival de Jazz do Porto? O que mais a marcou nesta primeira experiência longe dos auditórios do mundo clássico?
Recordo, claro. O que mais me marcou talvez tenha sido a sensação de ter muito a aprender... Recordo com saudade os meus companheiros de combo: o Sérgio Curado e o Miguel Ângelo. Que saudade...
Helena continua a ser das poucas pianistas portuguesas envolvidas no Jazz. Já se apresentou com vários projetos e formações tais como o Quarteto Isabel Ventura, o Trio/4, o Quinteto Helena Caspurro, o Helena Caspurro & José Fidalgo. Tudo isto fez com que corresse Portugal de lés-a-lés. Considera terem sido importantes estas experiências? Que contributos trouxeram à Helena Caspurro performer?
Bom, não sou propriamente um exemplo de músico na estrada... Fiz várias atuações, sim, com algumas formações diferentes. Com essas experiências aprendi, cresci, procurei encontrar-me. É o caminho, como diz Mário Soares – só o fazemos caminhando... Mas, como referi atrás, não me considero propriamente, não sou de facto uma pianista de Jazz. Mas apropriei-me da linguagem jazzística, é claro, fazendo parte de mim, da minha síntese, da música que construo, ao lado de tantas outras referências estéticas. Foi sempre esse o meu desejo.
A participação de solistas convidados como o saxofonista Mário Santos, do vibrafonista Brendan Hemsworth e do percussionista Andrés Tarabbia (Pancho) foram importantes para si enquanto experiência musical? Que mais-valias encontra no trabalho com estes músicos de reconhecido talento?
Claro, muito importantes. Deram-me força, confiança e, é claro, um certo orgulho. São todos excelentes músicos, é uma honra partilhar experiências com eles – pelo que trazem, acrescentam ao nosso trabalho, como criativos e performers que são. O Mário, sendo um músico extraordinário é também uma pessoa de uma simplicidade que me encanta. É genuinamente um verdadeiro professor na medida em que está sempre disponível para participar em projetos na sua fase de crescimento e maturação, muitas das vezes com músicos menos experientes, ajudando-os a acreditar. Aconteceu comigo e estou-lhe tão grata. Atualmente, tenho mais uma vez o privilégio de ter o Mário num dos temas do meu novo álbum que espero editar. O Pancho, com quem gravei, também, para este álbum, outro músico extraordinário, traz-me a magia e alegria da percussão, dos balanços afro-latinos, dos timbres. Chegamos a fazer um duo com o meu último Cd, Colapsopira, no auditório da reitoria da Universidade de Aveiro. Uma experiência diferente e que me encheu. O Brendan é uma espécie de irmão. Amigo de longa data, tocou com o meu irmão em vários projetos, como os Amigos da Salsa, a Cool Jazz Orquestra. Neste momento está a produzir o álbum que aí vem estando também na bateria, vibrafone. É o meu braço direito e uma espécie de alma gémea. Tem um talento e sensibilidade únicos. Para além de ser uma pessoa com um dom muito especial para ensinar música – as crianças e jovens adoram-no. Este meu novo trabalho é também muito dele, o que me contenta muito.
Pode falar-nos um pouco dos concertos “Impressões Íntimas” e “Falas da Pele”? É nestes que começa a utilizar mais um instrumento para além do piano, a voz. Deve ter sido um momento importante na sua vida, aquele em que constatou que a sua voz poderia enriquecer ainda mais as suas aparições, os seus espetáculos…
O encontro com a voz foi de facto marcante para mim. Impressões Íntimas e Falas da Pele foram projetos onde iniciei essa experiência. Neles participaram vários músicos, como o José Fidalgo, Pedro Oliveira, Pedro Vasconcelos, os irmãos Bastos, Paulo e António. Nessa altura, comecei a compor originais mas também gostava de fazer as minhas versões de standards. Foi na dupla com a voz que comecei a traçar um percurso mais próximo de mim, isto é, mais de encontro com ideias, emoções, sínteses que imaginava poder explorar. Em Falas da Pele, sobretudo.
Pode falar-nos um pouco dos seus trabalhos “Mulher Avestruz” e “Colapsopira”? Mulher Avestruz foi muito bem recebido pela crítica e proporcionou-lhe vários espetáculos. Creio que o mesmo se passou com Colapsopira. Espera o mesmo de Paluí, o Cd que espera lançar em breve?
Mulher Avestruz foi uma espécie de iniciação a solo. É um Cd com quatro temas, todos eles com uma atmosfera muito genuína e simultaneamente um pouco ingénua. Um Cd com mais improvisação. Sob o ponto de vista dos textos – algo que me dá um gozo especial fazer, sobretudo pelas possibilidades sonoras da nossa língua – foi uma apologia à vida, ao ‘viver com prazer’. A letra que deu o nome ao álbum – que acabou por se tornar na minha própria etiqueta – falava disso mesmo e simultaneamente dos esforços que as pessoas fazem para, paradoxalmente, não alcançarem essa vontade. A metáfora da avestruz, com a cabeça metida na areia, foi a imagem que encontrei para sublinhar essa incongruência – uma mensagem de uma mulher, no feminino, mas que se dirigia a todos nós, homens e mulheres. Lancei-o integrado nas comemorações dos 30 anos da Universidade de Aveiro, donde foi feita edição especial. Algo muito particular neste projeto foi a cenografia que concebi para estes concertos em colaboração com o designer que me tem acompanhado, Pedro Carvalho de Almeida, meu colega no Departamento de Comunicação e Arte (DeCA), nomeadamente para o concerto de lançamento, no auditório da reitoria: um palco repleto de candeeiros, a maior parte de uma coleção de museu da fábrica de candeeiros Lino, apagando e acendendo em texturas múltiplas, qual improviso visual. Colapsopira, em termos da sua mensagem poética, é um álbum repleto de alegorias à fragilidade da razão. De uma forma por vezes satírica, como os improvisos em quá-quá, o grasnar dos patos, conta e canta histórias sobre o estado de embriaguez da paixão, essa força inevitável que num ápice faz colapsar aquilo que mais julgamos conseguir salvaguardar – a nossa racionalidade. Continuando o formato a solo, na dupla piano-voz, é um trabalho onde exploro e assumo a forma Canção em simultâneo com o jogo fonético e significante das palavras. Cheio de sonoridades diversas, mescladas de uma forma talvez mais amadurecida, o Jazz, a Bossa, o ‘Clássico’, o popular, a improvisação, até o Fado..., cresce com jogos de palavras, muitas delas inventadas por mim própria para o efeito, como colapsopira. Nelas também procuro o som na sua variante melódica, tímbrica, percussiva – riquezas que a nossa língua possui de uma maneira muito particular e que me dá um gozo enorme explorar. O tema ‘Sobre viver’ conta com a participação da belíssima percussionista Elizabeth Davis – uma experiência única que espero poder repetir. Foi engraçado que o tema ‘Se...’ tenha ido parar à telenovela Deixa que te leve, da TVI – não estava de modo nenhum a contar...! Talvez por causa disso ainda hoje esse mesmo tema continue a passar com alguma regularidade na Antena1. Paluí, que espero lançar este ano que vem, é o retorno ao instrumental e a confirmação da minha paixão pela forma Canção e pela escrita poética. Um trabalho mais complexo sob o ponto de vista da produção, instrumentalmente diversificado, conta com a participação de músicos extraordinários, como Brendan Hemsworth (produção; bateria), António Aguiar (Togu, Ctb), Arnaldo Fonseca (Nocas, Acord), Carlos Mendes (Guit), Pancho (Perc), Mário Santos (Sax). Tenho ainda o prazer de ter Telmo Marques na orquestração de um dos temas, Pedro Almeida, o nosso querido e talentoso compositor do DeCA, no arranjo de outro (será também meu pianista convidado para a respectiva gravação) e Nuno Aragão que, tendo participado na pré-produção, continuará a colaborar no trabalho de som que se espera realizar ao vivo. Paluí, um sítio encantado, quase indizível (palavra também aqui inventada...), também é dedicado a gente miúda – um Cd para toda a família. Fiz a estreia do tema que dá nome ao álbum no TedxAveiro, em maio passado, com o Togu e o Nocas. Em palco, a ideia de interagir com o público como se fosse também a minha ‘orquestra’, como maximizei nesse concerto com a ajuda preciosa da Joana Araújo (back vocals), nomeadamente com plásticos, jogos de sinos ou, como já explorava ao vivo em Colapsopira, com instrumentos menos convencionais ou as próprias vozes, é algo que espero continuar a explorar neste novo projeto. Também me apaixono pelo objeto em si, o Cd e tudo que o envolve fisicamente. Tenho também aqui o contributo de profissionais excelentes: Virgílio Ferreira na fotografia, Patrícia Costa na imagem e figurinos, Pedro Taboaço na construção gráfica e audiovisual, António Valente, pela segunda vez, na realização do videoclipe, várias crianças no desenho e expressão plástica, Inês Guedes na sua orientação, Pedro Carvalho de Almeida, de novo, no design e grafismos. Muitas destas pessoas são meus colegas no DeCA. Estou morta por vê-lo cá fora!
Podemos dizer que existem duas Helenas? A performer e a docente, pedagoga?
Talvez três: essas e a mulher mais o seu património afetivo. Mas são três em um (!). Alimentam-se e crescem em harmonia (às vezes dissonante, também...). Todas contribuem para a síntese, na felicidade e na angustia... todos somos mais ou menos assim.
Enquanto Professora Auxiliar no Departamento de Comunicação e Arte da Universidade de Aveiro, não se abstém de participar em alguns projetos artísticos, tal como aconteceu com o concerto multimédia Bach2Cage, que contou numerosas atuações no país. Pode falar-nos um pouco deste projeto?
Bach2Cage é um projeto performativo extracurricular que foi desenvolvido no DeCA pela mão do meu colega Paulo Rodrigues e que contou com a presença de vários alunos e professores, dos diferentes cursos, entre os quais eu própria. Correspondeu a um desejo espontâneo de concretizar o enorme potencial que o nosso departamento tem sob o ponto de vista do cruzamento e transversalidade de domínios disciplinares, nomeadamente em arte e tecnologia. Como espetáculo, Bach2Cage construiu-se à volta de música de J.S. Bach e de John Cage, através de um conjunto de quadros cénicos concebidos, tal como a recriação musical, por todos os intérpretes envolvidos. Musicalmente, tratava-se pois de uma releitura do material daqueles dois compositores através de uma linguagem musical muito abrangente: fizeram-se incursões ao Jazz, à Bossa, Salsa, Rock, à música tradicional portuguesa ou à música eletrónica. O espetáculo era uma sucessão de quadros musicais/teatrais/visuais que evoluíam sem narrativa mas segundo uma lógica teatral e plástica. Tirava-se partido de ferramentas tecnológicas como a projeção de imagens pré-preparadas (vídeos e animações) ou captadas/processadas em tempo real, coexistindo situações e recursos cénicos quase quotidianos com outros bastante sofisticados. Num sentido lato B2C enquadrava-se dentro do conceito de música cénica, embora essa designação evoque fortemente a obra de Kagel, que, sendo uma inspiração, não é de todo uma referência. Também lhe chamámos ‘concerto multimédia’, com toda a incorreção e indefinição que daí advinha. Enfim, foi uma experiência admirável sob o ponto vista escolar, artístico e humano que absorvia os intervenientes em constantes exercícios de criação a partir de variadíssimos e quase incongruentes universos. Fizeram-se muitas versões e concertos. De certa forma, foi uma escola para todos nós.
Sendo uma pessoa da educação, gostaríamos que perspetivasse um pouco que educação musical teremos no futuro em Portugal. Se tivesse poderes de decisão, o que mudaria na educação musical das nossas escolas?
Tenho cada vez mais dificuldade em responder a essa pergunta. A sociedade alterou-se profundamente nas últimas décadas, tornando qualquer análise de carácter preditivo extremamente difícil e complexa. O que mais tem contribuído para tal é o facto de quase todo o tipo de informação, inclusive de carácter musical, estar hoje acessível, facilitada à distância, por vezes, de um mero botão. Todos sabemos que a globalização enquanto fenómeno macro e microsistémico é resultante disso, gerando novos dados nos sistemas de comunicação e conhecimento, bem como no quotidiano das pessoas, das suas motivações, das suas perceções, dos seus interesses e escolhas, das suas relações e interações. Hoje os alunos quando vão para a escola, sobretudo nos centros urbanos, levam consigo um dossier considerável de input informativo, a maior parte das vezes transmitido e processado através de meios altamente sofisticados e apelativos. É difícil suplantar, numa sala de aula, a maioria das vezes pouco atrativa sob todos os aspetos, o impacto desse irresistível processo, o que afeta inevitavelmente as motivações, perceções e expectativas tanto dos alunos como dos professores, para não falar dos pais ou toda a comunidade envolvente. Obviamente que a tecnologia e seus efeitos não dispensam a formação orientada e especializada, nem, talvez, a própria escola tal como a concebemos. Nada substitui o pensamento musical, mesmo tendo em conta os mais emocionantes dados conseguidos pela ‘inteligência artificial’: continua a ser preciso ser-se músico para escolher, abdicar ou rodar um botão. Mas, de certa forma, é inevitável vermos hoje a escola em muitos lugares, ou melhor, poderemos concebe-la de forma organizada em muitos lugares: na televisão, na Net, na rua, em casa, no café, numa caixa ou lata de chocolates, etc... Até que ponto a escola, o perfil dos professores, os assuntos ou matérias e sua organização, tal como convencionalmente os concebemos, são ou não a resposta à inquietante e enriquecedora entropia que vivemos é algo para o qual não tenho solução. Às tantas até são, mas não sem ajustamentos a realizar. O saber, o que comporta, como se transforma em velocidade alucinante, torna o processo de formação e realização, inclusive docente, extremamente difícil de equacionar. Às vezes tem tanto de fascinante como de angustiante... Como conseguir ensinar bem e melhor neste enquadramento? O que deve ‘saber’ afinal o professor de hoje, nomeadamente o professor de instrumento, de música? Quais as matérias determinantes a aprender e porquê? Existe um saber essencial ou universal que por isso seja imprescindível para qualquer geração, se sim qual é e porquê? Como se geram pessoas criativas, capazes de dar resposta aos incessantes desafios do mundo contemporâneo? Factos e conquistas existem, contudo, neste mesmo sistema: a democratização do ensino fez chegar a formação, a cultura, a especialização, inclusivamente artística, a muitas pessoas. Esse passo está realizado e é de um valor inestimável. Os resultados estão à vista, nomeadamente no universo da música: mais escolas, conservatórios, maior abertura às linguagens da contemporaneidade (o Jazz entrou definitivamente no ensino, o que é interessante e positivo sob o ponto de vista dos paradigmas de conhecimento até então vigorantes nas instituições de ensino artístico), mais instrumentistas, mais orquestras, mais bandas, mais e diversos projetos, concertos, etc.. Tenho esperança em poder acreditar que, pelo menos até então, este foi um bom caminho, portanto. Agora, o que temos a seguir ainda é bastante, sobretudo se pensarmos no plano do ensino básico e genérico. Creio que continuamos carenciados de uma formação estética eficiente, talvez porque é difícil levar as artes, de um modo mais sério e competente, a tantas pessoas, salas, lugares... No entanto, é nas mais jovens gerações que essa sensibilidade, esse contacto esse tipo de vivências deveria ser estimulado e potenciado. E deveria sê-lo através de professores digamos ... mais artistas. Ensinar música, como teatro ou pintura, a crianças do infantário, das escolas do 1º, 2º ou 3º ciclos é assunto sério. Não tenho a certeza de termos conseguido essa seriedade. Continuo a ver essas temáticas tratadas com alguma, digamos, leveza, ou pelo menos insuficiente profundidade. O professor ‘primário’ continua a ser um professor pouco valorizado, sobre o qual se projetam expectativas, mesmo em termos de formação, a meu entender, pouco sérias ou pouco realistas ... O mesmo se passa, aliás, no contexto do sistema de ensino artístico da música com o professor dos pequenitos, de iniciação musical. Fases tão determinantes para o desenvolvimento ulterior das suas competências artísticas, da sua qualidade de realização e expansão são tratadas ainda, na minha opinião, de forma pouco esclarecida e pouco eficaz. Este assunto levar-me-ia para outro, aliás, que é a convicção que tenho de que não deveria haver um ensino de educação musical de primeira e outro de segunda sobretudo nas primeiras fases escolares do ensino básico: isto é, um ‘vocacional’ e um genérico. Como se, em matéria de aprender de música, nomeadamente nas primeiras etapas, houvesse uma lógica ou modo de organizar o pensamento sonoro mais ‘light’ do que outro, dois mundos, dois vocabulários, duas plataformas de exigência de audição, dois começos: um a brincar outro a sério... Porque não existe isto na matemática, por exemplo? Duas escolas diferentes, desde o início: uma para aqueles sobre os quais predizemos, qual profética incógnita, sucessos; outra para aqueles cujos resultados não visionamos para além da linha ‘normal’, comum, pouco convincente intelectualmente. Como se selecionam talentos e sobre que princípios concebemos diferentes ‘educações’? Não deveria ser toda a educação básica, sem exceção, de excelência? Portanto, em síntese, se pudesse intervir... tentava melhorar a qualidade de educação artística, onde incluo a música mas não só, na educação pré-escolar e no ensino básico, sobretudo no 1º ciclo. Como se faz isso, em que se traduz concretamente essa qualidade, sobretudo no contexto do mundo complexo em que vivemos, como referi, seguramente que não tenho receitas nem muito menos certezas. Uma coisa é certa, o adjetivo e objetivo ‘artístico’ deveria estar mais próximo do da formação pedagógica dos professores, no sentido de um saber mais profissionalizado, mais sintetizado, mais próximo da sua realização também como esteta, criador e performer. As crianças precisam e merecem isso, tal como merecem professores de matemática ou de português de excelência (bem sabemos que problemas semelhantes existem também nestas áreas...). Atenção que já vemos isso em muitas salas de aula de Educação Musical! Ou seja, estamos mais próximos do que nunca. A propósito da importância da aprendizagem musical na primeira infância, veja-se ainda, por exemplo, o impacto do trabalho que tem sido feito, há vários anos, por pessoas como Helena Rodrigues (primeira responsável pela divulgação em Portugal de E. Gordon, em pessoa e sua obra), nomeadamente, mais recentemente, através do LAMCI (Laboratório de Música e Comunicação na Infância), um polo de investigação do CESEM (Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical) da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, a que também estou associada. É de um valor inquestionável o que já foi feito, pois, em termos de propagação e expansão daquelas mesmas ideias e metodologia não apenas em projetos de investigação, como, no terreno prático, em projetos educativos concretizados pela Casa da Música, no Porto, em escolas de música como o SAMP, em Leiria, a Academia de Música de Santa Cecília, em Lisboa, em workshops pelo país e pelo mundo através de organismos privados nacionais, como a Companhia de Música Teatral, etc. Ou seja, a história parece ter-nos ensinado que não existem reformas mas pequenos passos. Demos muitos e grandes. Mas ainda temos caminho a caminhar... Não queria deixar de dizer que tudo isto repousa numa outra grande convicção: que a formação estética transforma as pessoas, tornando-as senão melhores, diferentes sob vários aspetos: como olham, perspetivam e intervêm no mundo, físico e das pessoas, como o recriam e reconstroem à dimensão de si próprios, como esperam do mundo um lugar de contemplação e silêncio – o ‘belo’ só se observa desta maneira –, como, à sua própria semelhança, o tornam mais sublime e melhor. De certa forma, todo o conhecimento na sua mais lata asserção tem esse mérito. A ciência, o saber transformam-nos no melhor sentido da mudança. Contudo, podemos acreditar que as artes, nomeadamente a música, para além de serem intrinsecamente transversais sob o ponto de vista da matéria e conhecimento que geram, têm uma natureza e significado metafórico, simbólico que só dificilmente não nos toca ou emociona. Aquela alegoria de Damásio, sinto logo existo, é uma boa síntese sobre os processos, causas e efeitos envolvidos na realização artística. Enfim, a arte apresenta-nos e representa-nos. Por essa razão, como a máxima da maiêutica socrática, conhece-te a ti mesmo, possibilita-nos, talvez mais do que qualquer outra dimensão do conhecimento, conhecermo-nos melhor e mais criticamente. Se houvesse mais ‘belo’ nos sentidos humanos (no olhar, no ouvir, ...), talvez houvesse uma sensibilidade mais apurada e fina para sentirmos, cuidarmos e tratarmos de nós próprios, em privado e em conjunto.
Muito obrigado por ter aceite o convite do XpressingMusic. Para terminar gostaríamos de saber se tem alguns projetos para o futuro próximo que queira partilhar com os nossos leitores…
Os meus projetos são sempre os mesmos, de certa maneira, comuns aos da maior parte das pessoas: nunca perder o prazer de ser e de viver. Poder acreditar que sou capaz de fazê-lo e que isso é pelo menos parte do sentido de se estar vivo aqui e agora. A história da avestruz... (parece que nem é de todo justo para o retrato psicológico do animal... pelo que soube, mete a cabeça por convicção e ... prazer! Mas ficou para sempre o provérbio...)
Eu também agradeço ao XpressingMusic o interesse. Um grande obrigada.
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