A Barca dos Castiços em entrevista ao XpressingMusic
Estrearam-se em Vila Verde, Figueira da Foz, a 10 de maio de 2003 num encontro de música tradicional organizado pelo grupo Terra Nostra e com participação do grupo da casa e os veteranos maio Moço. Além de algumas músicas em 3 coletâneas internacionais de música tradicional, o primeiro álbum do projeto musical A Barca dos Castiços, “Mancha em Terras de Cor”, editado em 2010, inaugura uma previsível série de trabalhos dedicados à reciclagem de música de tradição.
Embora 2003 tenha sido o ano de estreia, 2007 tornou-se o ano do reconhecimento, com a vossa participação no concurso Eurofolk J 07 Málaga, representando Portugal, e trazendo na bagagem um terceiro prémio. Por onde navegou a vossa Barca durante estes quatro anos antes da vossa ida a Málaga?
O grupo, até 2007, foi apresentando uma atividade intermitente de concertos, pela zona centro, em eventos de dimensões muito variáveis, mas mantendo sempre o hábito de ensaiar a períodos fixos, fazendo sempre novos arranjos, corrigindo e trabalhando os que já existiam, com o objetivo sempre de conseguir um objeto sonoro mais próximo das ideias que tínhamos para cada peça. Foi um período de aprendizagem, em que fomos percebendo melhor o que poderíamos fazer, dentro das nossas capacidades quer individuais, quer como grupo. Este período também nos ajudou a criar hábitos de palco, para que o objeto sonoro correspondesse também a um objeto visual: passámos a ter mais cuidado com a nossa apresentação, com a forma de estar em palco, com a forma em como transmitimos as nossas emoções ao atuar.
Como nasceu este grupo? Eram amigos que se juntavam para tocar, ou houve alguém que teve a ideia inicial e procedeu posteriormente ao recrutamento dos restantes elementos?
O grupo tem a sua génese na dissolução de um outro grupo, em que alguns elementos decidiram continuar a realizar um trabalho relacionado com o património tradicional, musical e poético, mas de uma forma mais criativa, não apenas executando as peças de forma semelhante à recolhida e registada, mas introduzindo uma marca própria, a nossa criatividade a serviço da “reciclagem” musical sobre o nosso riquíssimo cancioneiro tradicional. Fomos falando com amigos músicos, entusiastas, e fomos assim criando o núcleo do grupo que se foi estabilizando até 2007, com entradas e saídas de elementos. Neste núcleo, quase todos os elementos passaram por grupos folclóricos e etnográficos, onde se foram apercebendo da riqueza e do potencial que estas fontes podem proporcionar, em termos de matéria-prima criativa.
Qual a origem do vosso nome?
De norte a sul do país, associados aos cursos de água que serviam de vias de comunicação, existiam tipos específicos de embarcações, com as mais diversas funções, quer de transporte de bens, de pessoas, animais, produtos alimentares, enfim… além disso, podiam realizar quer longas viagens para montante e jusante, quer apenas viagens entre margens. Estas embarcações foram evoluindo regionalmente, ganhando tipologias muito próprias, sendo relativamente fácil atribuir os diferentes tipos às suas respetivas regiões. A própria literatura portuguesa tem imensas referências às barcas como nos autos de Gil Vicente. Achamos que faz um pouco parte do imaginário do povo português, cujas vivências se encontram intrinsecamente ligadas à água. Assim, em forma de homenagem à própria tradição, escolhemos a Barca porque nos permite fazer uma metáfora com as viagens musicais que realizamos. Castiço, segunda a definição, remete-nos para uma relação com a origem das coisas, etimologicamente, com a casta, pureza das coisas, e como uma barca não pode andar sem tripulação, transporta um bando de castiços…
Segundo a vossa biografia oficial, este grupo surge da necessidade pessoal de cada um dos seus elementos de expandir os seus limites criativos e artísticos, tendo como base de trabalho e importante influência todo o universo auditivo que é a música tradicional portuguesa. Este universo é realmente muito vasto, mas… há algumas influências ou referências musicais que sejam mais marcantes para os músicos do projeto A Barca dos Castiços?
Todos nós temos gostos musicais muito abrangentes, consumimos muitos estilos de música diferentes, que passam pela Pop, pelo Rock, seja ele mais clássico, passando pelo Progressivo, pelo Indie, seja Português ou internacional. Também nos deixamos levar pelo Jazz e música brasileira, e como alguns de nós possuem formação clássica, a música erudita também se torna uma influência muito forte. Também nos encontramos atentos às Músicas do Mundo. No início da nossa formação, a Brigada Vítor Jara, a Ronda dos 4 Caminhos, os Maio Moço, essas bandas que já eram clássicas na música tradicional portuguesa foram muito marcantes nos nossos 1ºs arranjos. Nessa altura, uma banda que teve uma carreira relativamente curta, os Attambur, e de quem nós desenvolvemos um grande interesse, também teve uma influência muito importante, na forma como incorporavam formas musicais transfronteiriças. Os Gaiteiros de Lisboa impressionavam-nos pela originalidade, e embora não tenhamos conseguido incorporar nada da sua estética na nossa música, marcaram-nos muito. Posteriormente, e com a entrada de outros músicos, com instrumentos diferentes dos que usávamos na fase inicial, passamos a ter uma sonoridade influenciada por projetos com um apelo mais universalista, como a Sétima Legião ou o Trovante, que apesar de apresentarem elementos claramente identitários portugueses, conseguiam uma estética que extravasava completamente as divisões artificialmente criadas na música popular, e cuja atitude claramente nos era tão próxima, embora mantendo os nossos objetivos e a nossa “matéria-prima”.
Consideram-se um grupo original? O que distingue o vosso projeto de outros que também se ocupam de dar novas roupagens à música tradicional portuguesa?
O propósito do grupo não é original, bem sabemos que por todo o país o movimento folk está a crescer e a ganhar impulso. Mas muitas das novas bandas, ou quase todas, estão a trabalhar reportório original, inspirado em formas tradicionais, algumas portuguesas, e outras provenientes do resto da Europa. No nosso caso, a nossa opção é, à data, trabalhar espécimes tradicionais, porque achamos que assim estamos a ajudar a evitar a erosão cultural que ocorre. Muitas das coisas que tocamos hoje, se não fossem os grupos como o nosso, não seriam tocadas, porque a função que essas músicas desempenhavam no dia-a-dia dos nossos antepassados deixou de fazer sentido na sociedade atual. O que estamos, de certa forma, a fazer, é a arranjar novas funções para estas músicas, neste caso a nova função é simplesmente ser ouvida ou dançada, quando antes seriam canções de trabalho ou de Adoração ao Menino no Natal, por exemplo. Já não há desfolhadas, nem ceifas, nem romarias onde possamos ir a cantar em peregrinação, onde as músicas tinham a sua função original, por isso, se conseguirmos arranjar formas de as melodias tradicionais não se perderem, pelo menos o nosso trabalho não terá sido em vão. Não queremos com isto dizer que num futuro não possamos partir para a criação de músicas originais, mas neste momento, é nisto que estamos concentrados. Como disse, o período que estamos a atravessar é muito fértil em novas bandas, de grande qualidade, de grande capacidade técnica e criativa, e por isso é-nos muito difícil termos o distanciamento suficiente para fazermos uma comparação justa com as outras bandas, até por somos apreciadores e consumidores do trabalho desses nossos parceiros de caminho. Aquilo que podemos dizer é que o nosso trabalho incorpora influências que advêm dos nossos percursos individuais enquanto músicos: é aí que a nossa identidade emerge, naquilo que ouvimos e que tocamos fora do grupo e que trazemos para dentro dele.
São agora mais frequentes, as vossas aparições públicas em programas de televisão e de rádio cá em Portugal. Consideram que o álbum “Mancha em Terras de Cor” vos veio dar outra visibilidade que não tinham antes?
O álbum permitiu-nos ter um objeto passível de servir como cartão-de-visita. É mais fácil chegar a um divulgador com um trabalho gravado, porque o tocar ao vivo implica uma logística muito grande. Só a partir da gravação do álbum é que nos foi possível apresentarmo‑nos em televisão e, como é óbvio, também na rádio. De destacar aqui o serviço das rádios locais, que permitem fazer programas de autor para públicos muito específicos, mas onde as bandas da folk portuguesa têm sido divulgadas. Felizmente, com a Internet, estes programas deixam de ter apenas importância regional, passando a estar disponíveis para todo o mundo. E também a Antena 1, que é a única rádio de emissão nacional, que tem programas de divulgação deste género. Além da divulgação nos meios de comunicação, também é mais fácil chegar junto dos promotores de eventos e apresentar o nosso trabalho desta forma.
Podem fala-nos um pouco deste álbum? Para quem ainda não conhece o álbum, o que pode esperar deste vosso trabalho?
Este disco é uma síntese do que tínhamos feito até a data da sua edição. Foi um processo ao longo do qual aprendemos muito sobre as nossas próprias capacidades enquanto músicos, e sobre a forma de trabalhar em estúdio. São todas músicas tradicionais, arranjadas e/ou adaptadas por nós, onde há um universo de influências ao serviço dessas músicas. Citando o nosso site, é um “registo em que as fusões da música Tradicional Portuguesa com outras sonoridades mais universais tentam refletir a pluralidade cromática de um pequeno, mas culturalmente diverso país como é Portugal. O trabalho (re)criativo inclui elementos tradicionais, mesclados com elementos da música erudita, do jazz, e também do pop-rock, correntes que fazem parte dos universos pessoais de cada um dos elementos. Conseguiu‑se uma matriz de trabalho própria, criando uma ambiência característica e uma nova forma de experimentar a tradição”.
Da experiência que têm tido desde 2003 têm retirado certamente algumas lições. Se o projeto estivesse a nascer agora, fariam alguma coisa diferente? É difícil a sobrevivência de projetos deste género em Portugal?
De facto, em termos artísticos, não o faríamos de outra forma. O que de melhor tirámos desta experiência foi precisamente o processo de evolução enquanto grupo e enquanto músicos. Infelizmente, Portugal não tem um circuito suficientemente grande para conseguir absorver tanta oferta, e como tal, a sobrevivência deste género passa muito pelo espírito de grupo e da vontade de fazer música, sempre o melhor possível. E aproveitar para desfrutar os bons momentos que o projeto nos proporciona, isso sim, é inquestionável.
Agradecemos desde já a vossa gentileza em aceitar o nosso convite. Para terminar gostaríamos de perguntar se nos projetos futuros se vislumbra uma aposta da vossa parte na internacionalização d’ A Barca dos Castiços.
Foi com muito prazer que aceitámos a proposta do XpressingMusic, para o qual desejamos a maior das felicidades. Agradecemos imenso a oportunidade de divulgar um pouco mais do nosso trabalho e nesse sentido, a Barca dos Castiços ficará sempre ao vosso dispor.
A internacionalização não é posta de lado, pois a experiência que tivemos no estrangeiro foi sempre muito agradável. A música de raiz tradicional portuguesa pode efetivamente conseguir ter mercado pela Europa, pois têm circuitos de concertos mais sólidos e maiores que o que temos em Portugal. Por isso, sempre que existir hipótese de tocar além-fronteiras, iremos, sem dúvida. Mas é em Portugal e para Portugueses que a nossa música faz sentido, são eles que entendem as nossas palavras e são eles que podem reconhecer as melodias como parte da sua própria herança cultural, e é nesse sentido que trabalhamos.
Sistema de comentários desenvolvido por CComment