Cristina Faria fala-nos da vida e da obra do compositor Manuel Faria
A Professora Cristina Faria aceitou o desafio do XpressingMusic para uma entrevista sobre a vida e a obra do compositor Manuel Faria: «(...) durante muito tempo, Manuel Faria era um compositor “desconhecido” ao sul do Porto e fora dos meios religiosos. Para além disso, o facto de ter sido sacerdote ligava-o muito ao domínio da composição sacra e litúrgica, nem sempre muito apelativa para jovens investigadores. Tenho a sensação que presença do Dr. Domingos Peixoto (ex-aluno de Manuel Faria) como docente da Universidade de Aveiro ativou o interesse académico pela obra daquele compositor. Houve já, nesta Universidade, alguns trabalhos académicos realizados no âmbito de Mestrados e encontra-se um em curso no âmbito de Doutoramento. Também na Universidade do Minho começaram a surgir alguns estudos que se debruçaram sobre obras ou facetas deste compositor».
Muito obrigado por ter aceitado o nosso desafio para esta entrevista. A ideia de criação da Associação Manuel Faria partiu da Professora Cristina Faria?
A “Manuel Faria – Associação Cultural” foi criada em 18 de novembro de 1996, na comemoração dos 80 anos do nascimento deste compositor. Foi criada por iniciativa de um grupo de familiares e amigos de Manuel Faria e admiradores da sua obra. Neste grupo, para além de diversos familiares e amigos, estava também incluída a Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão, o Cabido Metropolitano e Primacial de Braga, a Fundação Cupertino de Miranda e a Escola Profissional Artística do Vale do Ave – ARTAVE.
A Associação debruça-se essencialmente sobre a faceta do compositor, ou pretende dar a conhecer as outras faces de um Manuel Faria que fez de tudo um pouco passando por áreas como o jornalismo, a docência e, claro, o sacerdócio?
Manuel Faria nunca foi jornalista – fazia crítica musical para alguns jornais, nomeadamente o Diário do Minho. A Associação tem como objeto o “desenvolvimento do gosto musical dos seus associados e dos indivíduos dos vários ambientes em que venha a implantar-se”. Nos seus Estatutos (art.º 2.º) lê-se que “a Associação promoverá a aproximação mútua de pessoas, singulares ou colectivas para a realização de sessões de estudo e concertos ou recitais que proporcionem à sociedade o conhecimento da música, em qualquer das modalidades da sua prática, mormente do canto, quer a solo quer em coro.” No artigo que se segue, lê-se ainda: “Na sua actividade, será dado lugar privilegiado à obra do compositor Manuel Faria, cujas composições procurará manter conhecidas, com progressiva amplitude e profundidade”. E ainda: “A Associação propõe-se, de modo particular, editar pelas várias formas possíveis, as obras musicais de Manuel Faria e tomar a iniciativa de, em colaboração com autarquias e outras entidades, promover periodicamente um festival de coros, no qual haja lugar privilegiado para as obras de Manuel Faria”. Como pode perceber-se, a missão primeira da Associação é a divulgação da obra musical de Manuel Faria e, através dela, desenvolver o gosto musical das comunidades.
Considera que a obra de Manuel Faria esteve “escondida” demasiado tempo? Sente que estão finalmente criadas as condições para que Manuel Faria comece a ser mais divulgado?
A obra de Manuel Faria não esteve propriamente “escondida”. O espólio encontra-se na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra há mais de 20 anos. Penso é que, durante muito tempo, Manuel Faria era um compositor “desconhecido” ao sul do Porto e fora dos meios religiosos. Para além disso, o facto de ter sido sacerdote ligava-o muito ao domínio da composição sacra e litúrgica, nem sempre muito apelativa para jovens investigadores. Tenho a sensação que presença do Dr. Domingos Peixoto (ex-aluno de Manuel Faria) como docente da Universidade de Aveiro ativou o interesse académico pela obra daquele compositor. Houve já, nesta Universidade, alguns trabalhos académicos realizados no âmbito de Mestrados e encontra-se um em curso no âmbito de Doutoramento. Também na Universidade do Minho começaram a surgir alguns estudos que se debruçaram sobre obras ou facetas deste compositor. Nos últimos tempos tem vindo a aumentar o interesse por Manuel Faria e pela sua obra composicional, o que tem contribuído para um maior conhecimento e divulgação da sua obra. E isto é como uma “bola de neve” – começou devagarinho, pontualmente, e tem aumentado à medida que se reconhece o valor da obra deste compositor.
Manuel Faria vivenciou inúmeras experiências ao longo da sua vida. Nas suas últimas composições espelha-se essa riqueza cultural e social? Espelham-se também as influências advindas da sua passagem por Itália?
A composição de Manuel Faria foi evoluindo ao longo do seu percurso, como acontece, aliás, com a maioria dos compositores. A apropriação de diferentes técnicas de composição nos vários estudos que foi fazendo, o conhecimento de grupos com constituições diferentes, as oportunidades para compor para grupos mais profissionais... tudo isso influenciou a sua escrita musical. No final da sua vida, compunha já com um estilo muito próprio e perfeitamente reconhecível, conseguindo obter os mesmos bons resultados mas através de uma simplificação de meios.
Foi precisamente em Itália que alcançou grande reconhecimento tendo visto obras suas serem interpretadas pelo Coro da Rádio Roma...
Em Itália teve o seu primeiro encontro com o reconhecimento do valor da sua obra composicional, num concerto por si dirigido em 1945, após a finalização do Magisterio em Composição Sacra, que terminou com a classificação de Summa cum laude probatus. Manuel Faria deu a conhecer obras de sua autoria na segunda parte desse concerto, interpretadas pelo Coro da Rádio Roma, a cantora Susana Danco e o organista F. Vignanelli. Mas não foi só em Roma que foi reconhecido como compositor. Em 1956 foi estreada em Viena a sua Missa Solene em Honra de Nossa Senhora de Fátima, pelo Coro da Academia de Música Sacra de Viena, num concerto transmitido via rádio, também com grande êxito. E, nos anos 60 do século XX, Frederico de Freitas levou a obra orquestral de Manuel Faria numa tournée pelo Brasil. Só em Portugal é que foi mais difícil este reconhecimento...
A sua influência acaba por ficar para a posteridade graças à sua intensa atividade docente? Cândido Lima e Amílcar Vasques Dias são o exemplo vivo disso mesmo?
Pode dizer-se que Manuel Faria tinha uma grande apetência pedagógica. Esta faceta de grande pedagogo foi testemunhada por D. António Ribeiro, enquanto Patriarca de Lisboa, que escreveu (em 1991), sobre o seu professor Manuel Faria: «Conservo dele a mais grata recordação. Dotado de excelentes qualidades pedagógicas, sabia incutir nos alunos o gosto pela Música em geral e, particularmente, pela Música Sacra, tanto gregoriana como polifónica. As suas aulas nunca eram monótonas nem enfadonhas». Para ele, todos os alunos tinham capacidades musicais, sendo somente necessário desenvolvê-las. Efetivamente, alguns dos seus alunos acabaram também por compor. Para além dos compositores citados, que acabaram por encontrar a sua própria linguagem, há outros. Joaquim dos Santos, por exemplo, foi talvez aquele, de entre todos os seus alunos, aquele que mais seguiu a linha composicional de Manuel Faria. Mas a sua grande obra pedagógica refletiu-se sobretudo nos muitos pequenos coros que ele foi criando nas várias vilas e aldeias do nordeste português e que foi deixando para os seus alunos dirigirem. Nalguns casos, transformaram-se mesmo em coros com qualidade técnica e estética.
Podemos dizer que renovação da música litúrgica almejada foi efetivamente alcançada?
Não se pode dizer que tenha sido alcançada em toda a plenitude desejada por Manuel Faria. A rivalidade norte-sul acabou também por ter alguma influência no grau de aceitação quer das suas ideias quer da sua composição litúrgica. No entanto, pode afirmar-se que Manuel Faria deu um grande passo para que esta renovação musical fosse possível. A criação e manutenção da (Nova) Revista de Música Sacra, da qual foi Diretor desde o início até à sua morte, teve bastante impacto nesta área.
Recorda-se de alguma reação, em particular, quando Manuel Faria venceu o Prémio Nacional de Composição “Carlos Seixas” da Secretaria de Estado de Informação e Turismo, em 1971?
Manuel Faria era um homem modesto. Embora eu fosse ainda criança, não me lembro de alguma vez o ter ouvido vangloriar-se do facto. Acho que, na altura, mais do que o reconhecimento (que aquece sempre a alma), o dinheiro do prémio lhe soube bem por lhe trazer algum alívio na economia sempre difícil em que viveu...
Foto gentilmente cedida pelo Prof. Paulo Bernardino e Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra
A Associação Manuel Faria ambiciona dar mais brilho e organizar o imenso reportório que foi deixado por várias paróquias do nosso país?
Só assumi a Direção da Associação em setembro. Para já, os planos a mais curto prazo prendem-se com a celebração condigna do Ano do Centenário do Nascimento de Manuel Faria. No entanto, não ponho de parte a intenção de organizar alguns eventos que possam dar a conhecer melhor essa faceta do compositor.
Sente que o imenso amor que Manuel Faria sentia pelo seu povo não foi proporcionalmente reconhecido através de uma maior evocação da sua obra?
Isso foi notório durante toda a sua vida. Não da parte do povo, para quem compunha com carinho e tendo em vista o gosto e a capacidade interpretativa dos “leigos” musicais, mas principalmente por parte dos seus pares e da crítica musical. Escrevia ele em Fevereiro de 1963 a Frederico de Freitas: Não estou muito seguro de mim – confesso – pois me vejo repelido e posto de quarentena por todos os músicos, à excepção única e reconfortante do meu caríssimo Frederico de Freitas. A sua autoridade e a indefectível confiança com que me tem feito trabalhar são o meu único apoio musical. Mas, se como digo, este apoio me reconforta e me faz passar por cima do resto, por outro lado não consigo abstrair inteiramente da hostilidade dos outros, a qual me amesquinha e desencoraja [...] Por vezes penso em abandonar de vez a Composição, mas por outro lado sinto uma tal necessidade de fazer música, que me vejo verdadeiramente angustiado. A este desabafo, respondia Frederico de Freitas: Para alguns críticos você terá sempre que pagar alguma coisa por sacerdote. Tenha isto em conta. Este diálogo resume um pouco a razão pela qual, ainda hoje, a obra de Manuel Faria tem demorado a sair “da gaveta”.
Considera que a “revolução” que protagonizou na música sacra e a imensa obra composta nesse âmbito acaba por ofuscar outras faces da sua composição, como os seus trabalhos para piano?
Manuel Faria ia compondo, sobretudo, para os grupos com quem contactava mais. Vivendo intensamente a sua vida de Sacerdote, é natural que a sua obra sacra conte com mais obras no cômpito geral da sua composição e que esta seja mais conhecida por ter sido mais vezes executada. Para além disso, as obras para instrumento não são fáceis de executar e interpretar. Ele era um belíssimo pianista e organista, pelo que não sentia dificuldade em tocar o que compunha, o que já não se podia dizer de muitos pianistas que, na época, tocavam em Portugal. Mas isso não quer dizer que essa obra não comece, agora, a ser mais conhecida e executada. É, pelo menos, um dos principais propósitos da Associação Manuel Faria – que este compositor seja conhecido por toda a sua obra, nas suas diferentes facetas.
Ao lermos outros textos sobre Manuel Faria ficamos com a ideia de que foi alguém que viveu a vida intensamente, absorvendo inúmeras influências de toda a Europa...
Embora tenha vivido a maior parte da sua vida em Portugal, nunca deixava de ouvir o que se fazia, naquela época, principalmente na Europa, nomeadamente através da “Antena 2”. Nem tudo lhe agradava da mesma forma. Se, por um lado, Stravinsky e Messiaen (para além de outros compositores franceses da primeira metade do século XX) estavam entre os seus preferidos, por outro lado mostrava com pouco apreço por Schoenberg ou de Webern. Sobre este tema, escrevia ele, em carta a Frederico de Freitas (Maio de 1972): Depois de ter estudado dodecafonia estou como o burro no meio da ponte: por um lado, não há meio de forçar a minha sensibilidade a aceitar as cacofonias (para mim é o termo) do Schoenberg e do Webern. Por outro lado encontro cheios de beleza o Alban Berg e o Dellapicola (embora com restrições a respeito deste). Assim, é natural que a maior sua obra tenha sido, de alguma forma, influenciada pelos seus compositores preferidos. No entanto, possui uma linguagem própria, por vezes aproximando-se dos neorromânticos do seu tempo.
Podemos dizer que apesar de todas essas influências, o Minho está sempre presente nas suas composições?
Manuel Faria escreveu as seguintes palavras: Tenho porém duas fortes manias: uma nasceu comigo – a música; a outra adquiri-a nas alegrias e tristezas duma vida obscura e insignificante mas intensamente vivida – o amor ao nosso povo e à nossa terra. O amor que tinha pela sua terra e pelas suas gentes, em conjugação com o conhecimento profundo da música tradicional minhota fazem com que o Minho transpareça nalgumas das suas composições, nomeadamente nalgumas obras orquestrais como “Imagens da Minha Terra” ou “Suite Minhota”. Também constam do seu legado muitas canções tradicionais minhotas harmonizadas e outras canções compostas “ao gosto popular”. Por vezes estas canções eram apropriadas pelo povo, sendo depois apresentadas como “canções populares”. Um exemplo destes é a canção de Natal “Cantem, cantem os Anjos”, tantas vezes apresentada como popular, mas que foi composta de raiz por Manuel Faria. Esta presença minhota também se pode perceber se pensarmos que, na primeira metade do séc. XX se estava a viver, em Portugal, a “onda” nacionalista que cá chegou vinda do resto da Europa. Atente-se na obra que, nessa época, Fernando Lopes-Graça e Michel Giacometti fizeram no âmbito da recolha e preservação do património musical tradicional português. Também Manuel Faria recolheu muita música tradicional, utilizando-a, algumas vezes, nas suas composições. No entanto, e para além das situações que referi, isto não se verifica não se verifica em grande parte da sua composição mais erudita.
Apesar de uma parte considerável do espólio musical de Manuel Faria se encontrar depositado na Biblioteca geral da Universidade de Coimbra, e uma parte mais pequena no Seminário Conciliar de Braga, sonha um dia reunir toda a obra num só espaço? Há objetivos da Associação que apontem nesse sentido?
Claro que penso que seria muito mais lógico e útil para estudo que se pudesse juntar todo o espólio num só local. Mas muitas vezes esbarramos com querelas de “posse” e de “guerrinhas” regionais difíceis de ultrapassar. Não é só no Seminário de Braga que isso se passa. Há, ainda, muitos particulares que possuem obras de Manuel Faria e que as guardam a sete chaves, naquilo que eu chamo “egoísmo afetivo”. Muitas pessoas solicitavam ao compositor que compusesse determinadas obras para ocasiões ou agrupamentos específicos; ele compunha-as e enviava-as, não ficando, muitas vezes, com cópia das mesmas. Compreendo que essas pessoas queiram possuir uma recordação de um amigo ou de alguém que admiraram mas seria muito mais útil para o conhecimento mais aprofundado da obra do compositor que tudo pudesse estar concentrado num só local, acessível aos investigadores que se interessassem pelo compositor e pela sua obra. Acredito que ainda há muita música de Manuel Faria guardada em gavetas a ganhar mofo em vez de estarem disponíveis para estudo. Um dos meus propósitos será continuar à procura destas obras “esquecidas” e conseguir trazê-las para Coimbra, onde as restantes estão à guarda da Biblioteca Geral da Universidade desta cidade.
Muito obrigado pelo tempo dedicado aos nossos leitores. Quais os projetos que gostaria de ver mais rapidamente concretizados no que concerne à Associação Manuel Faria?
Muito obrigada eu, pelo interesse demonstrado. Em relação à questão colocada, para já e durante a celebração do ano do centenário, gostava que, à imagem do que se tentou fazer no Concerto de Abertura do passado dia 18 de novembro, a obra de Manuel Faria, nas suas diversas facetas, fosse amplamente divulgada para um melhor conhecimento do público em geral e dos investigadores em particular. Com este objetivo, há uma série de concertos temáticos e de espetáculos (como o de um bailado de Frederico de Freitas orquestrado por Manuel Faria) que estão previstos para este período. O meu maior desejo é que, findo este ano, o entusiasmo pela obra deste compositor não esmoreça e a Associação fará tudo o que estiver ao seu alcance para que isso aconteça.
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