O tenor Mário João Alves em entrevista
A sua carreira é intensa e povoadíssima de grandes momentos. Na opinião do cantor, Portugal oferece hoje outras condições para os estudantes de música, embora continue a ser um país no qual não se aposta em projetos sólidos e de longo prazo. «Diria que, se pensar no meu tempo de estudante, sem dúvida que Portugal oferece hoje outras condições. Porém, creio que continuamos a ser um país que navega à vista e não dá suficiente importância a projetos de base, alicerçados, de longo prazo. Não é fácil ter uma carreira estruturada, seletiva em termos de opções de repertório, por exemplo, restringindo-nos ao panorama nacional. Diria que mudou ao nível da rede escolar, mas que ao nível da programação das salas, o conhecimento e, muitas vezes os meios à disposição, não permitem que essa excelente formação possa ser capitalizada para o grande público».
Muito obrigado por participar nesta entrevista para o Portal do Conhecimento Musical. Sempre sonhou ser cantor? Como foi a sua aprendizagem até entrar para o conservatório?
A minha primeira aprendizagem musical foi, como para tantos outros músicos, em atmosfera paroquial. À minha paróquia chegou um padre chamado Ângelo Pinto que não só tinha a paixão da música como era, também, professor no Conservatório de Música do Porto. Assim que chegou, formou um coro infantil e logo a seguir uma escola de música. Ali passei a ocupar muitas das minhas horas. Era um homem tão especial que me fez acontecer tudo isto!
Fernanda Correia, Elio Battaglia e Gabriella Ravvazzi foram os grandes pilares da sua formação? O que ainda hoje se espelha em si do contacto com estes mestres?
Cada professor deixa a sua marca e essas marcas somam-se, misturam-se e refletem-se nas mais pequenas coisas que fazemos. Tudo se integra e dissolve em nós, com o passar do tempo. Se com a primeira descobri que existia o canto e um mundo em seu redor, com o segundo descobri um universo em redor desse mundo e com a terceira descobri como viajar em segurança por esse universo. Se nós somos a carne, eles são uma espécie de molho que se apura e engrossa com a chegada de cada um.
Quando olha hoje para trás sente que está a viver algo com que sempre sonhou?
Na verdade nunca sonhei ser cantor até perceber que já o era. As coisas foram acontecendo, simplesmente. Como se sabe, é proverbial a falta de tenores. Assim que aparece um novo é imediatamente requisitado. Assim me aconteceu sem que eu tivesse decidido, propriamente. Mas a maré que me trouxe ainda me tem a salvo. Umas vezes mar picado, outras vezes suave, outras com a ondulação justa, viva mas tranquila.
Sendo uma presença frequente no Teatro Nacional de São Carlos e estando em constante contacto com instituições como a Fundação Gulbenkian, a Orquestra do Norte, a Metropolitana, entre outras, sente-se um privilegiado?
Sem dúvida que me sinto um privilegiado, ainda por cima, atendendo ao que referi anteriormente. A vida tem sido generosa para comigo, reconheço. E eu tento retribuir da melhor forma possível. Todas essas instituições tentam, à sua maneira, desempenhar um trabalho que nem sempre é visível ou fácil. Se cantar em salas como o São Carlos ou a Gulbenkian têm um sabor gourmet, não deixa de ter um sabor especial partilhar com orquestras como a do Norte, o fazer música em sítios que, de outro modo, nunca ouviriam um naipe de cordas ou uma ópera de Rossini. Todos esses momentos podem ser um imenso privilégio.
Portugal oferece hoje outras condições para aqueles que decidem enveredar pela aprendizagem musical e optam por iniciar uma carreira nesta área? O que mudou mais, em sua opinião?
Diria que, se pensar no meu tempo de estudante, sem dúvida que Portugal oferece hoje outras condições. Porém, creio que continuamos a ser um país que navega à vista e não dá suficiente importância a projetos de base, alicerçados, de longo prazo. Não é fácil ter uma carreira estruturada, seletiva em termos de opções de repertório, por exemplo, restringindo-nos ao panorama nacional. Diria que mudou ao nível da rede escolar, mas que ao nível da programação das salas, o conhecimento e, muitas vezes os meios à disposição, não permitem que essa excelente formação possa ser capitalizada para o grande público.
Sendo um artista que já interpretou praticamente cem papéis diferentes, sente que ainda há muitos outros que gostaria de interpretar?
Há alguns, sim. Há sempre mais algum. Há papéis magníficos que, seguramente, nem conheço! O repertório é imenso e variado. Depois, há coisas que adoraria fazer mas não são para a minha voz. Outras que o são, mas ainda não me bateram à porta. Quem sabe se, a próxima vez que o telefone tocar não me responde um desses... um Massenet, um Britten ou um Mozart daqueles bons, ainda em falta na caderneta...
Tem colaborado com vários encenadores e maestros. É verdade que a relação entre estes dois polos nem sempre é fácil, ou tudo isso que se diz não passa de um mito?
Já trabalhei em contextos muito diferentes e convenço-me de que, sempre que o objetivo final é comum e se sobrepõe aos egos artísticos envolvidos (que estes existem sempre e ainda bem!) torna-se tudo mais fácil. Tenho tido experiências de grande harmonia entre encenador e maestro e prefiro lembrar-me destas. Quando brota inteligência e sabedoria de ambas as partes, tudo corre maravilhosamente. Na verdade, música e cena devem estar sempre em função uma da outra. Só assim se podem engradecer e tornar legíveis.
Destaca alguns desses maestros e encenadores? Alguns deles foram mais marcantes para a sua carreira?
Eu tenho a sincera opinião de que podemos aprender com todos, nem que seja para aprender como não se deve fazer. Mas há pessoas que nos deixam uma marca indelével. Diria que pela imensa sabedoria, magia e incessante capacidade de a transmitir, maestros como o João Paulo Santos e encenadores como o Luís Miguel Cintra me foram e são marcantes. Mas como não falar nas experiências vividas com o Michel Corboz, João Lourenço, Robert Carson ou, por tudo o que encerra a sua simples presença e energia, figuras como Plácido Domingo, Graham Vick ou Giancarlo del Monaco. Tal como com os professores, todos acrescentam algo que se funde com o que já somos. E já agora, o mesmo com os alunos, com quem a aprendizagem é constante.
Já gravou para as principais editoras do mundo como a BMG, Sony Music, Portugaller, RCA Victor e Naxos. Quando ouve algumas dessas gravações, sente que hoje poderia fazer algo diferente em cada uma das interpretações? É muito crítico consigo próprio?
Sim, faria coisas muito diferentes, seguramente. A reinvenção e a procura são premissas obrigatórias sempre que se repete uma obra. Só assim podemos obter alguma felicidade delas e oferecermos algo de verdadeiro a quem nos ouve. O modo como entendemos a vida muda com os anos. O modo como apreciamos o café, o queijo, um lied, um livro ou um quadro está em permanente mudança. O nosso olhar sobre as coisas muda e por isso, quando ouço algo que fiz antes de ter passado as etapas posteriores carece, em geral, de alguns recentes temperos.
Há também o Mário João Alves autor. Quando escreve as suas obras coloca nelas aquilo que gostaria de ver e não viu nas inúmeras obras que já interpretou? Ser autor é fugir por momentos aos limites impostos pelos outros autores que interpreta?
É uma pergunta curiosa e interessante. Ser autor é, se calhar, sermos nós. É tentar juntar elementos que são só nossos, apanhados na rua, em casa, no silêncio, no meio de um centro comercial, num sorriso, e tentar fazer com que os outros o sintam. Depois, cada um de nós faz a sua própria síntese dos estímulos que recebe e transmite-os nas suas mais pequenas ações. No ato criativo toda essa síntese acaba por nos tornar únicos. (Ou, pelo menos, devia ser assim.) Quanto à segunda parte da pergunta, é verdade que se a performance é, ainda assim, um ato criativo, não deixa de ser também um ato de humildade na procura de uma obediência e respeito a algo que alguém escreveu. Assim, o criar fora desses limites desempenha para mim um papel vital. Diria que, cada vez mais vital e até central.
Há algumas obras de sua autoria que admire de forma mais particular atendendo ao contexto em que foram escritas?
Sim, continuo a ter uma ternura especial pelo “Amílcar, consertador de Búzios Calados”. Pelo que significa, pelo que encerra, pelo que me recorda, pelo que me toca. Até pelo que ali digo a mim próprio.
Tem novos projetos enquanto autor?
Neste período tenho canalizado o meu lado criativo para alguns projetos de cena: guiões de espetáculos infantis e um novo libreto de ópera. Curiosamente estou também a musicar poemas de autores lusófonos para um projeto coral e a terminar um ciclo de canções para integrar uma coletânea destinada ao ensino básico.
Pode falar-nos um pouco do trabalho que desenvolve no âmbito das companhias Ópera Isto e All’Opera?
São dois universos complementares e magníficos. A “Ópera Isto” foi um projeto que nasceu com o José Lourenço e que se transformou numa sala de experiencias e fantasia. Ali, criamos espetáculos destinados ao público infantil e juvenil e tenho o gosto e o privilégio de poder escrever os textos, os guiões, encenar, cantar, enfim... o regresso aos tempos do iluminismo! Com o All’Opera, montamos repertório operático variado, em pequenos formatos, que caibam na mala de um carro e que depois tentamos apresentar onde nos acenem com um mínimo de condições “acústicas”.
Que outras atividades preenchem o seu tempo atualmente?
Em termos de projetos de continuidade vou sendo feliz no Conservatório de Música de Coimbra e na ESART, em Castelo Branco, onde oriento os respetivos Estúdios de Ópera e mantenho o projeto anual TENORÍADAS, com a Professora Joaquina Ly, um projeto que junta tenores e faz subir os decibéis em redor do Mondego.
Muito obrigado por ter partilhado mais um pouco do Mário João Alves com os nossos leitores. Onde o poderemos ver e ouvir em breve?
Para já, com as encenações das óperas “Pimpinone”, dirigida pelo António Ramos, e “Hansel e Gretel” de Humperdinck, dirigida pelo Nuno Corte-Real. Também anda em digressão “Os Dilemas dietéticos de uma Matrioska do Meio” (com o Quarteto Contratempus) ópera para a qual escrevi o libretto. Entretanto surgirá um espetáculo sobre Benjamim Britten chamado “To be or not to Britten” para o Serviço Educativo da Casa da Música. Nas cantorias, chegam já em setembro com o All’Opera, a “Rita” de Donizetti e no “le 66” de Offenbach e em outubro o “Schauspieldirektor” de Mozart, com a Orquestra de Câmara Portuguesa, no CCB. Com o “Ópera Isto”, repõe-se “A Rolha da Garrafa do Rei d’Aonde?” na Casa da Música. Apareçam, claro!
Sistema de comentários desenvolvido por CComment