Diana Botelho Vieira. O piano, a pianista e a professora.
Diana Botelho Vieira respondeu às perguntas do XpressingMusic. Dos primeiros passos da sua aprendizagem ainda nos Açores, até à carreira que hoje protagoniza entre os palcos e as salas de aula, esta entrevista propõe aos nossos leitores uma viagem em crescendo onde a perseverança e o amor pela música são os alicerces para as conquistas até agora alcançadas. Também os sonhos da pianista foram abordados, tendo um deles um significado muito especial: «há vários anos que tenho um grande sonho, que não é impossível, mas terá de ser realizado a seu tempo: preparar o 2º Concerto para piano e orquestra de Prokofiev. Tenho um amor e um fascínio muito grande por esta obra. Já me tentaram dissuadir com o 3º de Prokofiev, com os de Bartók e até com os de Rachmaninov (todos maravilhosos), mas nada me demove do sonho de uma dia tocar o Segundo de Prokofiev».
Muito obrigado por ter aceitado o nosso convite. O piano apareceu muito cedo na sua vida?
Ainda antes de o piano aparecer na minha vida, já eu andava rodeada de música. Os meus avós maternos tinham um amor muito grande pela música. Viviam na freguesia da Maia (ilha de São Miguel) e como havia uma praia a 2 minutos a pé, eu e os meus irmãos íamos lá com muita frequência, chegando inclusive a passar algumas semanas das férias de verão em casa deles. Mas tínhamos de ir à vez e em pequenos grupos, pois somos 7 irmãos! Eram verões muito descontraídos, a andar de bicicleta, a ler, e os serões rodeados de música eram frequentes - o meu avô estava sempre a tocar violão ou bandolim, e a minha avó cantava muito bem. Entretanto os meus irmãos mais velhos iniciaram os seus estudos musicais no Conservatório Regional de Ponta Delgada, e um dia (tinha eu uns 7 ou 8 anos), ao passar pelo “quarto da música” de casa dos meus pais, ouvi a Tânia, a minha irmã mais velha, a estudar piano (um piano vertical Yamaha carinhosamente oferecido pelos avós maternos). Sentava-me num sofá ao lado dela, a ouvi-la, e fiquei fascinada com o som do piano. Perguntei aos meus pais se eu não podia também aprender piano! E assim foi. Nessa altura já tinha iniciado aulas de teoria musical na Academia de Música da Ribeira Grande, e comecei então a estudar piano com uma professora russa acabada de chegar a São Miguel, Svetlana Kusselova, que viera leccionar Formação Musical nessa Academia e que também dava aulas de piano. Esta professora não sabia falar muito bem português (nem eu russo!), mas de alguma maneira entendia tudo o que me pedia – talvez devido à universalidade da música como linguagem e também porque ensinava muito à base da demonstração. Mas estudei pouco tempo com esta professora, pois comecei a evoluir muito bem e então ela sugeriu que eu continuasse os estudos no Conservatório Regional de Ponta Delgada, onde passei a trabalhar com a professora Irina Semenova.
A professora Irina Semenova teve muita influência naquilo que veio a desenrolar-se na sua vida posteriormente?
Teve uma influência muito grande. Embora já tivesse tido contacto com a música desde muito nova, o que eu ouvia andava maioritariamente à volta da música popular açoriana. A professora Irina despertou-me para ir ouvir mais música clássica. Às vezes ia a sua casa e ela punha discos a tocar. Depois, sempre que eu vinha a Lisboa participar em masterclasses de piano, passava na Valentim de Carvalho que existia nos Restauradores e voltava a São Miguel carregada de discos. Algumas das primeiras gravações que ouvi foram o Concerto de Tchaikovsky por Martha Argerich e a integral dos concertos de Rachmaninov por Vladimir Ashkenazy. Fascinava-me ouvir estes pianistas que, para mim, eram algo fora deste mundo – ainda hoje penso assim. Tenho também dezenas de cassetes de vídeo que gravei de concertos que passavam na televisão, no canal Musik (que agora se chama Mezzo). Na altura não havia YouTube, e a internet era uma coisa praticamente inexistente na minha vida. Como não havia lojas de partituras em São Miguel, e era caro encomendá-las com frequência, ia à biblioteca do Conservatório frequentemente requisitar partituras, desde concertos de Mozart e Beethoven, sonatas de Beethoven e Brahms, obras românticas (Chopin, Liszt, etc.), barrocas... - Tudo partituras em edições antigas, mas era um frenesim; eu tinha uma curiosidade imensa em ver como era, em partitura, o repertório que ouvia nos discos, pois gostaria um dia de conseguir tocar essas obras. Esse foi, de certa forma, um incentivo permanente. Com a professora Irina aprendi também repertório para além do que era obrigatório nos programas do Conservatório. As suas aulas eram calmas, mas muito sérias e exigentes. O meu fascínio pela Rússia começou aí também. Volta e meia a professora Irina falava da sua terra, de São Petersburgo, que para mim era um lugar distante, fascinante e místico. Ainda guardo com carinho um guia turístico de São Petersburgo que ela me ofereceu após o exame final do 8º grau do Conservatório. Infelizmente ainda não fui à Rússia, mas hei-de ir!
Mas passaram pelo seu percurso formativo outros nomes marcantes... Concorda?
Por coincidência, uma vez terminados os meus estudos no Conservatório, rumei a Lisboa para estudar com outro professor russo: fui para a Metropolitana (Academia Nacional Superior de Orquestra) estudar com o professor Alexei Eremine. O meu interesse pela Rússia foi assim reforçado de duas maneiras: através da música e da literatura. Passei horas a ouvir (e a tocar, também!) Rachmaninov e Prokofiev, e devorei a literatura de Dostoievsky, Gogol, Tolstoy, Tchekov, Bulgakov, etc. O meu percurso como aluna do professor Alexei Eremine foi marcante, na medida em que cresci imenso como músico e pianista. As aulas eram intensas e maravilhosas, por vezes difíceis, mas nunca faltava um ingrediente: amor pela música e pela arte. E com esses ingredientes não temos outra opção senão a entrega total à música.
Quando e como surgiu a oportunidade de ir trabalhar com Ludmila Lazar em Chicago?
Quando terminei a licenciatura, em 2007, já o meu irmão Rodolfo Vieira (violinista) estava a estudar na Northwestern University, em Chicago, por isso, para mim, fazer o Mestrado no estrangeiro era uma forte possibilidade e uma opção natural uma vez terminada a Licenciatura. Os meus pais deram-me então a oportunidade de ir estudar para Chicago. Fui lá uns meses antes fazer provas para duas universidades (Northwestern University e Chicago College of Performing Arts) e conhecer professores. Criei uma empatia imediata com a professora Ludmila Lazar (CCPA) e decidi ir estudar com ela. É uma pianista e pedagoga reconhecida internacionalmente, muito dedicada aos seus alunos. Com ela desenvolvi um conhecimento muito completo das obras em estudo, como, por exemplo, da própria estrutura formal e harmónica da obra, das circunstâncias em que foi escrita, em que fase da vida do compositor foi criada, que gravações existem, etc. Ela tinha um cuidado especial em dar uma cópia a cada aluno novo de uma lista com o título “Preparing a new work”, que ia desde aspectos formais e harmónicos ao alcance das dinâmicas, do contexto sociopolítico na altura em que a obra foi escrita às gravações e edições existentes e às outras obras escritas na mesma altura, etc. Tínhamos que fazer um estudo muito completo da obra.
Com apenas 16 anos já se apresentava como solista. Recorda-se do seu primeiro concerto enquanto solista?
Lembro-me muito bem. Para além do programa que tínhamos de cumprir no Conservatório, eu ainda via outro repertório, e nessa altura comecei a trabalhar o Concerto para Piano e Orquestra K414 em Lá Maior, de Mozart. Quando o terminei, fiz ensaios a dois pianos com a minha professora da altura, Irina Semenova, que sugeriu que eu o tocasse com a orquestra de câmara do Conservatório. O único problema era que o Conservatório apenas tinha partitura geral de orquestra e não existiam as partes! Ainda por cima não havia tempo para encomendar uma partitura com as partes da orquestra nem as havia à venda nas lojas de Lisboa e do Porto! Pensei “não há problema”, e pus mãos à obra: fotocopiei a partitura geral de orquestra, recortei todas as partes, uma a uma, e fiz uma colagem! Depois fotocopiei todas as folhas com as tiras de cada instrumento, para cada naipe ter a sua parte em condições minimamente apresentáveis, e entreguei tudo ao maestro e flautista, Yuri Pankiv. Logo depois começaram os ensaios no Liceu Antero de Quental em Ponta Delgada, onde havia mais espaço, e apresentámos a obra no concerto de encerramento do Conservatório nesse ano letivo no Teatro Ribeiragrandense. Vesti um top cor-de-rosa (curiosamente uma cor que nunca uso) e pus laca no cabelo (outra coisa que também nunca faço)
Em 2007 tocou com a Orquestra Académica Metropolitana nos Dias da Música do Centro Cultural de Belém sendo dirigida pelo maestro Jean-Marc Burfin. Tem tido a sorte de ser dirigida por alguns dos mais conceituados maestros?
A meio da minha licenciatura, enquanto aluna do professor Alexei Eremine, comecei a preparar a “Rapsódia sobre um Tema de Paganini” para piano e orquestra de Rachmaninov, e no último ano da licenciatura surgiu a oportunidade de tocar esta obra com a Orquestra Académica Metropolitana, dirigida pelo maestro Jean-Marc Burfin nos Dias da Música do CCB, que nesse ano tinham como tema o Piano. Esta é uma obra que me deixa muitas saudades, e tenho esperança de a voltar a tocar um dia.
Continuando a responder à sua pergunta, apenas toquei com orquestra duas vezes ainda (as duas que referi anteriormente). No entanto em dezembro deste ano, vou estrear as “Variações Concertantes sobre um Tema Açoriano”, para piano e orquestra de cordas, de Sérgio Azevedo, com a Orquestra de Câmara de Cascais e Oeiras e o maestro Nikolay Lalov. Vai ser um privilégio, para mim, estrear uma obra concertante portuguesa e inspirada num tema açoriano, e também, claro, tocar com a OCCO sob a direção do maestro Lalov.
Nos recitais que tem protagonizado, há algum compositor que sobressaia como seu favorito?
No que diz respeito à música de câmara, posso dizer que o repertório que tenho apresentado em concerto é bastante variado. Quando colaboro com outros músicos, existe um certo repertório-chave que me interessa conhecer e tocar. Mas também acontecem descobertas agradáveis, como por exemplo a peça “Obsession” de Makoto Shinohara para oboé e piano, que toquei com o Joel Vaz, ou então a Sonata para Violoncelo e Piano de Luís de Freitas Branco que toquei com a Carolina Matos. Mas desde os 13 anos que toco música de câmara com os meus irmãos (no início tocávamos os 7 todos juntos, e mais tarde apenas os 4 ligados à música profissionalmente e ficámos conhecidos como o Quarteto Botelho Vieira), e sempre me habituei a tocar qualquer compositor. Mas hoje em dia com um irmão violinista em Chicago e uma irmã violoncelista na Alemanha, resta-me a Marta, violinista, que vive cá em Lisboa e com quem tenho colaborado mais de perto.
Porém, no que toca ao piano solo, confesso que me interessa mais o repertório do século XX, nomeadamente Prokofiev e Shostakovich, mas tenho algum repertório mais tradicional que vou reavivando, como Beethoven, Chopin, Bach, etc.
Paralelamente à sua carreira enquanto pianista, tem também vindo a lecionar em diferentes escolas, como por exemplo em Chicago ou na Universidade de Évora. Atualmente consegue manter estas duas facetas profissionais na sua vida? Encontra-se a lecionar em alguma instituição?
Em Chicago dei aulas de piano em várias escolas e tenho muito boas recordações, pois ensinava alunos de todas as idades. Tive inclusive como aluna uma senhora japonesa de 80 anos, cujo inglês era muito fraco e então trazia consigo uma filha para ir traduzindo. Era uma senhora muito engraçada e muito simpática, e adorava tocar a “Escocesa” em Mi bemol de Beethoven. Tocava essa peça no fim de quase todas as aulas, com um enorme prazer, e sempre como se fosse a primeira vez. É verdade que a senhora tocava como amadora, mas isso fez-me pensar no importante que é para nós, músicos, em cuja vida profissional estudamos um programa de recital ou de concerto, durante horas e horas a fio, manter uma certa frescura, ou atitude positiva, seja em pleno concerto, seja durante a preparação da obra.
Um ano após o meu regresso a Portugal recebi um convite da Universidade de Évora para colaborar como Assistente Convidada e acompanhar as várias classes de licenciatura e mestrado, um trabalho que fiz durante 4 anos (este passado foi o último) e que me fez compreender o trabalho do pianista acompanhador “profissional”. Aprendi imenso, foi um trabalho que me deu um tipo de resistência e sentido prático que antes não conhecia. Paralelamente a esta actividade, o meu amor pelo ensino do piano a crianças e jovens foi aumentando, e por isso vou agora dedicar-me apenas ao ensino no Conservatório de Lisboa, em Carnide. Conciliar o ensino com o lado dos concertos só é possível com muito boa organização. Também acho importante não nos dispersarmos por demasiadas áreas profissionais.
Dar aulas também lhe traz preciosos contributos enquanto performer?
Duas coisas importantes, para mim, que fazem o paralelo entre o ensino e os concertos, são a organização e a paciência. Perceber que em ambas as áreas tudo é um processo e que nem todos os resultados são imediatos.
Tem estreado obras de alguns compositores. Sente-se honrada quando surgem convites para protagonizar estas estreias? Estrear uma obra é algo que a responsabiliza muito?
Claro que me sinto honrada. É uma responsabilidade mas tento não a tornar demasiado pesada, por uma razão: as obras nascem e são estreadas, mas a estreia nunca é o resultado final de uma obra. À medida que a obra vai sendo tocada mais vezes, vai crescendo. Recentemente fui ao lançamento de um disco de obras para violoncelo e orquestra de compositores portugueses, e no painel dos responsáveis pelo trabalho estava o maestro Pedro Neves que referiu uma ideia importante: conhecemos muito bem as sinfonias de Beethoven, por exemplo, porque essas obras são tocadas milhares de vezes em todo o mundo, e cria-se assim essa familiaridade com essas obras, e depois existem obras que são tocadas apenas uma vez e ficam por aí, mas torna-se necessário que sejam tocadas milhares de vezes, a fim de lhes dar tempo de crescer.
É importante que se crie o hábito de rodar essas obras novas mais vezes. Agora, não nego que numa estreia o músico tem de apresentar uma versão o mais honesto e interessante possível, e isso requer muito trabalho, quer individual, quer em colaboração pontual com o compositor.
Há alguma obra que vá estrear em breve?
Sim, até final de 2016 vou estrear três obras do compositor Sérgio Azevedo: duas obras para piano a 4 mãos, com o pianista Saul Picado, por quem tenho uma amizade e admiração imensa, e estou muito contente por essa oportunidade; a terceira obra é uma peça para piano e orquestra de cordas, as “Variações Concertantes sobre um Tema Açoriano”, com a Orquestra de Câmara de Cascais e Oeiras, dirigida pelo Maestro Nikolay Lalov. Também ao longo do ano letivo passado várias peças para crianças de Sérgio Azevedo (piano solo e piano a quatro mãos) têm sido estreadas pelos meus alunos em várias audições no Conservatório de Lisboa em Carnide. Para 2017 está prevista a estreia da “2ª Sonatina para Violino e Piano”, também de Sérgio Azevedo, com a minha irmã Marta Botelho Vieira. Um pormenor curioso: o compositor Sérgio Azevedo é meu marido, e conheci-o há cerca de um ano atrás, quando estreei a sua “Pocket Sonatina” para oboé e piano (toquei-a com o oboísta Joel Vaz).
Também enquanto vivi em Chicago estreei várias peças para piano, na sua maioria de colegas compositores. Destaco Parisa Sabet, uma compositora iraniana, de quem estreei a obra “In His Boat”, baseada num poema de Nima Yooshij, poeta persa. Esta foi, para mim, uma colaboração fascinante.
Mais uma vez agradecemos a amabilidade. Há ainda alguns sonhos por realizar? Onde poderão os nossos leitores ouvi-la em breve?
Eu é que agradeço a vossa atenção. Agora em julho irei aos Açores dar dois recitais de Violino e Piano, com a minha irmã Marta Botelho Vieira, inclusos na Temporada Artística dos Açores (ilha de São Miguel, no Teatro Ribeiragrandense, dia 8 de julho, e ilha Terceira, no Palácio dos Capitães Generais, no dia 10 de Julho). Depois, no dia 3 de outubro, será então o concerto a 4 mãos com o Saul Picado no Palácio Foz onde, além da estreia das obras de Sérgio Azevedo, vamos tocar também obras de Satie, Lopes-Graça e Poulenc. E por fim, no dia 3 de dezembro, será a estreia das “Variações Concertantes sobre um Tema Açoriano” com a OCCO e o Maestro Nikolay Lalov no Auditório Municipal Ruy de Carvalho em Carnaxide. Aproveito para dizer que no meu site estão mais informações: www.dianabotelhovieira.com
Sobre os sonhos... a partir do próximo ano lectivo terei os meus horários mais organizados e focados em duas áreas: o ensino e os concertos. Desta forma terei mais disponibilidade para avançar com alguns projectos que têm estado pendentes, como voltar a trabalhar peças antigas e novas, preparar novos recitais, etc. De certa forma, poder ter uma agenda que me permita fazer isto já é um sonho, pois existe uma imensidade de repertório que quero muito aprender. Mas já há vários anos que tenho um grande sonho, que não é impossível, mas terá de ser realizado a seu tempo: preparar o 2º Concerto para piano e orquestra de Prokofiev. Tenho um amor e um fascínio muito grande por esta obra. Já me tentaram dissuadir com o 3º de Prokofiev, com os de Bartók e até com os de Rachmaninov (todos maravilhosos), mas nada me demove do sonho de uma dia tocar o Segundo de Prokofiev.
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