Margarida Cardoso. A música e as memórias de José dos Santos Pinto.

Entrevistámos Margarida Cardoso que, para além de nos ter falado do seu percurso académico e pessoal, nos falou sobre a investigação que se encontra a fazer sobre José dos Santos Pinto. A investigação tem dado frutos mas o entusiasmo leva a investigadora a querer ir muito mais longe. «Quanto mais avanço mais descubro, e por isso vou vendo mais longe um fim a esta investigação. Como não havia muitos registos pessoais do compositor, foi necessária a pesquisa de várias fontes e foram descobertas várias pistas, que já esclareceram várias questões. No entanto, há ainda muito por descobrir, principalmente muitos factos mais pormenorizados da vida artística de Santos Pinto e muitos outros músicos que permanecem esquecidos nos nossos dias, mas que foram os professores dos nossos professores».
Muito obrigado por ter aceitado o nosso desafio para esta entrevista. Com que idade se começou a interessar pela música? As bandas filarmónicas foram as instituições que a acolheram em primeiro lugar?
Desde já muito obrigada pela oportunidade. Por volta dos meus 7 anos, o meu avô começou a instigar-me a “aprender” o famoso livro de solfejo Freitas Gazul e a entrar na Banda de Seia, onde ele próprio e os meus tios já haviam tocado. Inicialmente estranhei mas depois a música “entranhou-se” e comecei a tocar o mesmo instrumento que a minha irmã, clarinete. Entretanto um maestro apresentou-me o oboé e eu ingressei no Conservatório, na classe do Professor Luís Vieira. Portanto, tal como aconteceu com muitos instrumentistas de sopro, as bandas (de Seia e mais tarde Gouveia) foram as minhas primeiras escolas de música.
O gosto pela História da Música surgiu depois de entrar para o Conservatório de Música de Seia – Collegium Musicum?
No Conservatório já havia alguns seminários de história da música proporcionados pelo Professor Jaime Reis que me suscitavam curiosidade, mas foi na Escola Profissional e de uma prática oboística mais frequente que retirei o gosto pela história. Gostava particularmente de sentir cada compositor e cada interpretação como pertencentes a uma estética e de procurar mais e mais conhecimento. A elaboração da PAP (Prova de Aptidão Profissional) foi também um momento-chave para eu perceber que queria mesmo produzir conhecimento sobre música.
As palhetas duplas foram sempre uma paixão?
Sim, principalmente no sentido em que aquela arte tão própria de cada oboísta e tão minuciosa me suscitava tanto interesse e tanta necessidade de a tornar visível ao mundo exterior aos oboístas. Todo aquele trabalho de artesão que o oboísta realizava antes de chegar ao palco, e que tantas vezes podia ser comprometido por fragilidades relacionadas com a natureza da cana, era algo muito curioso para mim e que eu queria documentar.
Numa certa fase da sua vida decidiu continuar os seus estudos no ensino profissional. Quais as mais-valias deste tipo de ensino?
É acima de tudo um ensino com maior carga horária atribuída à prática instrumental, seja a solo, em orquestra, música de câmara, e isso torna-o muito direcionado para a prática e inclusive para o prosseguimento de estudos na área da música. No entanto, proporciona também outras experiências como o contacto com a improvisação e a tecnologia aplicada à música, nomeadamente na disciplina de Projetos Coletivos e Improvisação. Eu optei porque como comecei tarde, precisava de me centrar mais nos estudos musicais para entrar para o ensino superior. Nunca gostei de estabelecer comparações com o ensino em conservatório, são simplesmente diferentes e ambos capazes de formar bons músicos.
“O Oboísta e a Palheta Dupla” é um dos seus trabalhos editados pela AvA Musical Editions. Já se vislumbrava aqui um embrião para a investigação que agora se encontra a fazer?
Sim, sem sombra de dúvidas. Como já disse acima, eu pretendia documentar um dos trabalhos diários dos oboístas e no fim da realização da PAP, que viria a ser livro, pensei que o próximo passo estaria certamente relacionado com os oboístas e as suas especificidades musicais. Estaria muito longe de saber que a minha primeira investigação musicológica seria acerca de um oboísta tão importante quanto Santos Pinto.
Já voltaremos à investigação atual, mas antes gostaríamos de saber se rumar até Lisboa para fazer a licenciatura em Ciências Musicais na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova foi um passo decisivo na sua vida.
Ciências Musicais foi claramente um ponto de viragem na minha vida. Aprendi bastante e consolidei muitos conhecimentos, tanto que depois da licenciatura comecei a ver a história da música como um puzzle que eu agora sabia construir, para além de adquirir bases de etnomusicologia, sociologia, organologia, entre outras disciplinas que fazem parte desta ciência social que é a música. Digamos que senti um determinado “upgrade” com esta licenciatura.
Leciona História da Música na Escola Profissional da Serra da Estrela. Uma disciplina com as características da História da Música é bem acolhida pelos alunos que procuram um ensino mais prático?
Não nos podemos esquecer que nos encontramos perante um desinteresse cada vez maior por parte dos alunos, com exceções naturalmente, e a escola tem que encontrar outros meios para chegar ao aluno. Para além disso, a história da música tornou-se a disciplina que debitava a matéria de todos os períodos e compositores, o que perante a dinâmica de uma aula de instrumento, constitui uma desvantagem. A meu ver, e tendo em conta a natureza da disciplina, é preciso uma aula de história mais interligada com a prática e todas as disciplinas, com maior contacto com a música propriamente dita e que parta, desta forma, da música para os factos e não o contrário. Sempre que possível, a ligação com as restantes artes é também imprescindível. Naturalmente que este tipo de ensino favorecerá o papel do aluno na aula, e desta forma aumentará a sua compreensão e, principalmente, a sua motivação. Isto não sou eu que digo, mas sim as mais recentes teorias educacionais que também já não são assim tão recentes...
É evidente o entusiasmo em torno da investigação que se encontra a elaborar no âmbito da vida e obra de José dos Santos Pinto. Como e quando decidiu enveredar por este caminho que tem vindo a trilhar?
Esta investigação começou com a simples notícia da doação do espólio de Santos Pinto ao Município de Mangualde e à Banda de Lobelhe do Mato, primeira banda frequentada pelo compositor, na sua terra natal. Encontrar aquele espólio de um oboísta e relativamente perto de casa era já uma grande sorte, mas quando li uma biografia sua percebi que estava muito perto de um dos principais oboístas do século XX português. Infelizmente já não o conheci mas estou a fazê-lo por via dos documentos e legado deixado, o que é extremamente desafiador.
Neste percurso já foi editada uma sonata de José dos Santos Pinto e apresentada uma comunicação no Encontro Nacional de Investigação em Música. Há mais iniciativas deste género para breve?
Brevemente sairão mais duas partituras do compositor, também através da Ava Musical Editions: o Concertino para Oboé e Orquestra (versão orquestral da Sonata em Espírito Clássico já editada) e a 2ª Sonata, para clarinete e piano. Irei ainda apresentar uma comunicação no Encontro Ibero-Americano de Jovens Musicólogos em março deste ano, em Sevilha, e será organizado um concerto de estreia destas duas obras em Mangualde, no aniversário do seu nascimento (17 de julho).
Mas, para aqueles, que não conhecem de perto a vida e a obra deste Oboísta, pedagogo e compositor natural de Mangualde, como o definiria em poucas palavras?
Como referi há pouco, não o conheci pessoalmente, mas pelo que já descobri parece-me ter sido um músico muito dedicado e com objetivos muito definidos, numa época bastante competitiva e com poucas fontes de informação. Tal como refere na sua pergunta, Santos Pinto foi intérprete, professor, compositor e procurou sempre ter uma formação que lhe permitisse ter todas essas capacidades, o que também nos indica um pouco o seu caráter perfeccionista. Como pessoa, é relatado como sendo muito reto, justo e lutador, características também bastante visíveis ao longo do seu percurso.
A sua formação e a sua vida profissional foram muito intensas... Quais as instituições por onde passou e deixou a sua marca?
Até ao momento sabe-se que passou pela Banda de Lobelhe do Mato, Banda Regimental de Viseu (14), Batalhão de Caçadores 5, Banda da GNR, Orquestra Filarmónica de Lisboa. Fez parte do Quinteto de Sopros da Emissora Nacional juntamente com nomes como Luis Boulton (flauta), Carlos Saraiva ou Marcos Romão (clarinete), Adácio Pestana (trompa) e Ângelo Pestana (fagote). Com eles realizou inúmeros concertos SONATA e ainda na iniciativa Pró-Arte (da Emissora Nacional), que levava concertos a todo o país. Foi aluno do Conservatório Nacional e do Conservatório de Paris e professor durante largos anos no Conservatório Nacional, tendo tido como alunos Lopes da Cruz, Luís Vieira, José Coutinho ou Ricardo Lopes.
Enquanto compositor, deixou um grande legado?
Enquanto compositor, Santos Pinto tem obras de carácter mais académico como as Sonatas já referidas, poemas sinfónicos como Fátima ou Quadras ao Gosto Popular, um quinteto para sopros, uma sinfonia, um trio para violino, violoncelo e piano e várias marchas para banda como a Lusitânia Marcha, já interpretada pela banda da GNR, entre outras.
Há ainda uma curiosidade que se prende com o facto de ele ter deixado patenteado um novo tipo de oboé. Por que razão este não chegou a ser fabricado em série?
Não tenho ainda documentos suficientes para responder com certeza a essa pergunta. As cartas trocadas com o seu professor Myrtil Morel, do Conservatório de Paris, referem que este ajudou Santos Pinto a negociar a construção do oboé com o Sr. Marigaux, e também a contactar outros fabricantes. Entre testemunhos que referem a falta de verba para a construção em série e outros que referem a possível dificuldade técnica inerente a este novo sistema, não sabemos com exatidão qual a que corresponde à realidade. É mais uma pergunta a responder no futuro!
O município de Mangualde detém atualmente o espólio de José dos Santos Pinto (1915-2014). Pensa que esta foi a melhor opção? O espólio está disponível para que o público o possa consultar?
O espólio encontra-se dividido entre a Biblioteca Municipal Dr. Alexandre Alves (Mangualde) e a Banda de Lobelhe do Mato. Penso que foi uma boa opção no sentido em que pode ser consultado por qualquer pessoa, mediante aviso e autorização prévia, mas principalmente por músicos que estejam interessados na sua obra. Penso ainda que esta escolha não foi de todo em vão e constituiu precisamente uma forma que o compositor encontrou para contribuir para o futuro da região e especificamente, dos seus músicos.
Esta investigação está já próxima da conclusão? Fica muito por dizer e fazer?
Quanto mais avanço mais descubro, e por isso vou vendo mais longe um fim a esta investigação. Como não havia muitos registos pessoais do compositor, foi necessária a pesquisa de várias fontes e foram descobertas várias pistas, que já esclareceram várias questões. No entanto, há ainda muito por descobrir, principalmente muitos factos mais pormenorizados da vida artística de Santos Pinto e muitos outros músicos que permanecem esquecidos nos nossos dias, mas que foram os professores dos nossos professores.
Muito obrigado por ter dedicado todo este tempo aos nossos leitores. Há outra investigação que gostasse de levar a cabo em breve?
Com esta investigação percebi que o espaço temporal que me dá prazer investigar é o século XX, nomeadamente do ponto de vista dos músicos e das suas orquestras. Tenho muitas perguntas e curiosidade acerca de como funcionavam as orquestras, quais os seus protagonistas e que paradigmas estão implícitos nessa esfera. Muito obrigada!
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