Gero Camilo. Música, poesia e teatro num só corpo.
«Se dermos um caderno e um lápis a uma criança, ela desenvolve a sua criatividade relativamente a esses suportes, logo, quando você potencializa o ser humano em qualquer área no sentido de facilitar o acesso aos mecanismos de produção, seja no cinema, seja no teatro, seja na fábrica ou em qualquer outro ramo profissional, vai haver uma evolução rumo à felicidade. Esse ser humano vai conseguir realizar as suas potencialidades. Mas o que acontece quando existe uma desigualdade social muito grande e os mecanismos tecnológicos estão apenas nas mãos de alguns, é que vai haver uma parcela grande da sociedade que não vai conseguir criar, não vai conseguir desenvolver os seus projetos. O acesso à tecnologia e à internet não faz melhores nem piores músicos mas potencializa humanamente essas pessoas para que elas consigam ter onde fazer os seus laboratórios». Gero Camilo
Gero, muito obrigado por nos receber para esta entrevista. Esperamos que esteja a ter uma boa estadia em Portugal. Não é pela música que se encontra por cá...
Não. Desta vez estou cá para participar no festival “Cena Contemporânea de Matosinhos em Português”. É um espetáculo que tem teatro, música, performance, dança... É um festival muito interessante e no qual já é a segunda vez que participo. Já estive neste festival no ano passado com a minha peça “Aldeotas”. Mas estou ansioso por trazer a minha música pois ela está cada vez mais presente no meu trabalho e tem a ver com Portugal também.
O Gero Camilo é poeta, ator, cantor, compositor, dramaturgo... Estas áreas estão bem compartimentadas na sua cabeça ou são permeáveis influenciando-se mutuamente?
Há momentos em que essas áreas se tornam mais compartimentadas por necessidade de um projeto específico como por exemplo o que agora estou a fazer, ou seja, a montagem de uma nova peça. Mas é inevitável que as outras áreas que eu também desenvolvo acabem por se relacionar. Neste meu espetáculo “Caminham Nus Empoeirados” tem duas músicas minhas e outra do Criolo, logo, as áreas acabam por se misturar.
A música esteve sempre presente na sua vida?
O que vem primeiro é, acima de tudo, a poesia. O Gero assume-se como um poeta no Brasil e no mundo. O desenrolar dos outros ramos da arte veio a partir deste compromisso com a poética. Escrevo poemas desde muito cedo. Sou apaixonado por Fernando Pessoa, pelos poetas portugueses, pelos poetas brasileiros, Carlos Drummond de Andrade, Mário de Andrade, os poetas populares do nordeste que são os repentistas... Portanto a minha referência literária, poética é o princípio do desenrolar das outras artes. Assim, da poesia para a música é um passo porque a boa poética canta o verso. Aproximar a melodia da escrita é para mim um caminho que percorro tranquilamente.
Durante a sua formação fez alguma aprendizagem musical?
Eu estudei numa escola de formação de teatro para atores. A minha formação académica passou mais pelo teatro mas, durante todo esse percurso, a música sempre esteve presente por causa da poética. Eu sempre percebi que no Brasil se lê pouco. Assim, a melhor forma de aproximar a minha poesia das pessoas era cantando. Aí surgiu o laboratório musical que aparece da necessidade de eu me tornar um músico, com o prazer todo que a música traz.
Há pouco falou-nos que na peça “Caminham Nus Empoeirados” há música. Nos seus espetáculos musicais também há essa transversalidade? Também há representação?
Sim. Há momentos em que digo versos e a teatralidade me ajuda na interpretação como músico. De qualquer forma eu sinto a minha música muito independente como expressão, não necessitando que a referência teatral aconteça para que a minha música também se faça ser ouvida no palco.
Em 2008 lançou o primeiro disco “Canções de Invento”. Como caracteriza este primeiro álbum? Foi o momento de fazer algumas experiências?
Ele tem como título “Canções de Invento” precisamente por ser um primeiro momento de expressão assumida da minha música gravada e levada para o palco. Até esta altura eu não me tinha assumido musicalmente. “Canções de Invento” é um álbum que é muito experimentalista partindo da minha poética e da minha musicalidade através do encontro com os músicos que eu convidei. Falo tanto do Luiz Gayotto que fez a produção musical como de todos os outros músicos que nós chamámos. Todos eles estavam a ter contacto pela primeira vez com a minha obra e por isso estávamos a “inventar” essa expressão.
Megatamainho é um disco mais maduro do que o primeiro?
Senti maior maturidade nesse processo de subir ao palco com a minha música. Não digo que um é melhor do que o outro enquanto experiência artística. Para mim, os dois trazem consigo toda a intensidade musical e poética que eu desejava ao chamar esses músicos específicos para cada um dos CD’s.
Há pouco falávamos dos músicos que colaboraram consigo no primeiro disco. Foi a mesma equipa que chamou para este segundo álbum?
Há músicos novos. Chamei um novo produtor musical que também é um amigo, o Bactéria, o Jô do Vale que também é um músico muito conhecido no Brasil e que toca com o Otto que é um cantor também muito conhecido no nosso país. São portanto músicos de peso de uma parte do Nordeste. O primeiro CD foi todo gravado em São Paulo. Eu sou do Ceara mas vivo em São Paulo há 21 anos. Isto para dizer que o primeiro CD é bem paulistano e o segundo viaja mais pelo Brasil. E fui para Recife onde gravei boa parte do CD e depois voltei para São Paulo onde toquei com outros músicos de lá e depois da Bahia... Fui juntando. O Brasil é imenso e eu aproveitei essa variedade que cada músico trazia com as especificidades dos seus lugares. Isso torna o trabalho mais rico.
Sente que o facto de ser descendente de indígenas e africanos se reflete na sua música?
O Ceará, e a sua região, foi colonizada pelos holandeses, portugueses, africanos e os indígenas já estavam lá. Eu, provavelmente, sou o resultado dessa mistura toda. A minha região é muito forte em cultura popular com os seus repentistas que são os violeiros que tocam e que fazem poemas que são repentes. As minhas primeiras referências musicais vêm daqueles músicos de lá... Fagner, Ednardo, Belchior trouxeram para o Brasil um som muito específico. O Nordeste é musicalmente rico. A influência da música do Nordeste na minha música é muito importante porque traz muito daquela cultura popular.
Falando de influências, pode dizer-nos qual a música que mais ouvia e que mais o influenciou?
Ouvia de tudo, um pouco. Desde os tropicalistas como Caetano, Gil, Betânia, Gal, que foram muito importantes para a nossa música brasileira até essa vaga toda do Nordeste que acabei de referir como Fagner, Ednardo, Belchior, Rob e Rogério, Eugénio Leandro... Também ouvia música latina como a de Pablo Milanés, Violeta Parra... O meu ouvido é muito aberto para o som que vem de fora. A única queixa que tenho para com as Rádios do Brasil prende-se com as playlists pagas fazendo com que, ainda nos dias de hoje se ouça mais música americana ou inglesa do que a música do nosso país. Para mim isto é uma coisa “démodé”. As grandes editoras tentam colonizar um país imenso como o Brasil. A sorte é que nós temos dentro da nossa própria música brasileira uma diversidade de ritmos e sons... Mas faz falta ligar o rádio do carro e ouvir uma música africana, ou uma música árabe. Era bom que as rádios se tornassem mais democráticas.
Quando tem o poder de escolha, em sua casa, são esses os sons que ouve?
Sim. Geralmente ouço música que não passa nas rádios. É música que compro ou música que passa em rádios na internet. Nesse aspeto a internet ajuda-nos bastante.
Sente-se mais músico de palco ou de estúdio? Onde se sente mais criativo?
No palco. Adoro o palco. Eu tenho a sorte de morar numa região de São Paulo que é um pouco o ponto de encontro de músicos, atores, artistas plásticos e isso faz com que estejamos constantemente a cruzar caminhos e a compor coisas novas e fazendo experiências musicais. Quando vou para estúdio, já levo tudo muito bem mastigado da sala da minha casa ou desses encontros que vamos fazendo. Assim, quando chego lá a coisa já é mais objetiva.
Como sente o atual panorama da música brasileira?
A música atravessa um período muito fértil. Penso que isso resulta da democratização protagonizada pela internet que possibilitou que os músicos pudessem gravar as suas próprias músicas. Eu, por exemplo, gravei os meus dois CD’s independentes. Eu mesmo fiz com que eles acontecessem. Tal como eu, tem agora uma leva enorme de músicos a fazer a mesma coisa. Há excelentes músicos a fazer isso. Falo de Tatá Aeroplano, Karina Buhr que é uma cantora de primeira e que faz um rock bom, poético e pesado. Falo também da Anelis Assumpção que é uma cantora maravilhosa, filha do Itamar Assumpção que já não está entre nós mas que deixou um legado importante para a música brasileira. Todos os dias topamos com novas bandas e novos intérpretes. Esse “caldo cultural” que está fermentando por lá, cada vez nos dá mais frutos no enriquecimento da nossa música.
Sente então que essa democratização se deve também às novas tecnologias e às novas plataformas que disponibilizam música? Elas geram também maior criatividade?
Se dermos um caderno e um lápis a uma criança, ela desenvolve a sua criatividade relativamente a esses suportes, logo, quando você potencializa o ser humano em qualquer área no sentido de facilitar o acesso aos mecanismos de produção, seja no cinema, seja no teatro, seja na fábrica ou em qualquer outro ramo profissional vai haver uma evolução rumo à felicidade. Esse ser humano vai conseguir realizar as suas potencialidades. Mas o que acontece quando existe uma desigualdade social muito grande e os mecanismos tecnológicos estão apenas nas mãos de alguns, é que vai haver uma parcela grande da sociedade que não vai conseguir criar, não vai conseguir desenvolver os seus projetos. O acesso à tecnologia e à internet não faz melhores nem piores músicos mas potencializa humanamente essas pessoas para que elas consigam ter onde fazer os seus laboratórios.
Conhece a música e os músicos portugueses?
Na verdade conheço pouco mas adoro fado. Estive há pouco tempo a assistir ao espetáculo da Susana Travassos lá no Brasil e achei muito bom. Assisti também ao espetáculo da Maria João, do António Zambujo. O Carlos Tê apresentou-me as suas canções. No ano passado assisti aqui ao concerto do Sérgio Godinho. Conheço também os mais antigos como a Amália.
Podemos esperar por um espetáculo musical seu cá em Portugal?
Estamos nessa busca. Tenho muito interesse em trazer cá a minha música. Acredito que em 2016 isso possa acontecer. Estamos cada vez mais perto das parcerias que tornem essa possibilidade uma realidade.
Como poderão fazer os portugueses para ter acesso aos seus dois discos?
Os discos estão disponíveis no iTunes.
Muito obrigado por nos ter recebido. A sua peça aqui em Matosinhos estará em cartaz até...
A peça estreia no dia 2 de outubro e ficará duas semanas em cartaz de quinta a domingo. Obrigado.
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