Jos Wuytack. A pedagogia musical como missão.
Em início de ano letivo, Jos Wuytack, numa entrevista exclusiva ao nosso Portal do Conhecimento Musical, proporciona-nos uma viagem pela sua carreira. «Olho com muita satisfação para o trabalho que tenho realizado apaixonadamente durante tantos anos, para as centenas de cursos que orientei, para os inúmeros professores de música que ajudei a formar e para os milhares de crianças que têm disfrutado da música através da minha abordagem pedagógica. Claro que tem valido a pena!». Relativamente à sua metodologia refere que esta é «aberta a interpretações diversas e é conciliável com outras abordagens. Não me parece interessante seguir instruções demasiado rígidas. Os elementos e recursos propostos não têm de ser todos utilizados. Por exemplo os instrumentos Orff não são absolutamente necessários».
Muito obrigado por dedicar um pouco do seu tempo aos nossos leitores. Embora também tenha estudado Composição, Piano e Órgão, a pedagogia musical foi certamente um apelo mais forte. Encara a educação musical como uma missão?
O sonho da minha juventude era tornar-me organista e maestro de coro. Mas, durante os meus estudos no Instituto Lemmens (Universidade Católica de Lovaina), tive uma disciplina baseada na Orff-Schulwerk que, na época, despontava. O meu professor Marcel Andries, que conhecia pessoalmente Carl Orff, considerou que eu tinha um talento especial para ensinar e poderia prosseguir o seu trabalho de educação musical. Foi assim que iniciei a minha carreira, tendo-me tornado professor titular de Pedagogia Musical no Instituto Lemmens e lecionando workshops e cursos para professores de música na Bélgica, que obtiveram um grande sucesso.
Em 1962, em Salzburgo, através de Marcel Andries, conheci Orff e as suas ideias pedagógicas. A partir deste momento, senti-me extraordinariamente motivado para levar às crianças e aos jovens a alegria de fazer música sem terem de começar sempre pelo ‘solfejo’ e pela leitura. Orff pediu-me para orientar cursos para professores em vários países, e assim, iniciei uma carreira internacional. Na verdade, decorridos 57 anos de trabalho intensivo com crianças e jovens e na formação de professores, posso afirmar que sinto a educação musical como uma missão.
Tem realizado uma carreira internacional intensa como divulgador e defensor da pedagogia musical ativa e criativa. O que acrescentou às ideias do seu antigo professor e amigo Carl Orff?
A Orff-Schulwerk (‘Obra escolar de Orff’, da autoria de Carl Orff e Gunild Keetman) é um conjunto de livros com canções e peças instrumentais para as crianças realizarem experiências musicais, tocando em instrumentos fáceis e acessíveis – os designados ‘instrumentos Orff’). Elaborei a tradução e a adaptação desta obra para Neerlandês e Francês, e compus e gravei várias peças para jovens intérpretes. Mas a minha principal contribuição foi desenvolver uma linha pedagógica, estabelecer princípios pedagógicos e propor metodologias para a educação musical, focando sobretudo as escolas do ensino genérico. A partir do conceito de Musikae utilizado na Antiga Grécia, em que a música é inseparável da poesia e da dança, e do conceito de música elementar, de Carl Orff, que representa a unidade entre a palavra, o som e o movimento, desenvolvi a unidade de três formas de expressão – verbal, musical e corporal, para a situação concreta da sala de aula.
Os elementos da música – melodia, ritmo, harmonia, timbre e forma, são trabalhados de maneira progressiva e acessível. Desenvolvi a expressão verbal a partir da “arte-palavra” característica de Orff: o teatro. A palavra tem uma enorme potencialidade a nível musical e pedagógico. O movimento no espaço e a dança são fundamentais em educação musical, mas são frequentemente difíceis de colocar em prática, porque as salas de aula não têm espaço suficiente. Pensei nesta dificuldade ao criar as “canções com gestos”, que também implicam a realização de movimento. O jogo de substituição progressiva das palavras de uma canção por gestos é alternado com improvisação instrumental em grupo. Além de ser divertido para as crianças, este jogo é um bom exercício para desenvolver competências de audição interior, memória, concentração, criatividade e coordenação motora. Creio que este jogo é transversal a crianças de diferentes culturas e regiões. Posso dizer que estou muito satisfeito pelo faco de ter os livros de canções com gestos editados em seis línguas: neerlandês, francês, inglês, espanhol, português e chinês.
Orff deu importância à interpretação e à improvisação, mas não à audição. Eu criei a metodologia da ‘audição musical ativa’ com o apoio do musicograma, que é um esquema visual do que se ouve na música, representado com figuras geométricas, cores e símbolos e que é projetado durante a audição, para ajudar os alunos a compreenderem melhor a música.
Desde 1968 já realizou em Portugal 118 Cursos de Pedagogia Musical. O que pensa estar na origem do sucesso dos seus cursos? Há sempre algo novo para apresentar aos professores de Educação Musical?
Os meus cursos estão estruturados em cinco graus, focando diversos temas, oferecendo uma série de exemplos e abordando diferentes atividades musicais – canto coral, prática instrumental (instrumentos Orff, percussão e instrumentos clássicos), improvisação, audição, movimento e dança. Os conteúdos não são sempre novos, mas em cada curso há novos participantes e sempre muitos jovens! Talvez este sucesso resida na minha adaptação às características do grupo de formandos, na variedade de abordagens que utilizo, no feedback constante que vou dando durante a prática musical e... no meu sentido de humor. Pessoalmente, acredito numa abordagem espontânea e humorística, mas também exigente. Um educador musical deve encorajar constantemente e dar tempo suficiente para exercitar. Treinar é um must: através do treino, realizado de maneiras diferentes, obtêm-se bons resultados, o que leva sempre a uma grande satisfação de todos os envolvidos. Refletindo sobre o ensino e a aprendizagem ao longo dos anos, inspirei-me num pensamento milenar chinês, atribuído a um dos discípulos de Confúcio, e que tenho praticado e transmitido aos professores:
‘Diz-me, e eu esqueço-me/ Mostra-me, e eu lembro-me/ Envolve-me, e eu compreendo.’
Algumas destas razões são explicadas pelos participantes. Cito um professor de Educação Musical com muitos anos de experiência: “A interligação entre música, movimento, expressão verbal, prática instrumental, canto, ritmo corporal, expressão dramática, jogo... é única e global. A pedagogia do Professor Wuytack é um motocontinuo que cativa os formandos deste curso, e que vai causar o mesmo efeito nos alunos aos quais depois lecionamos. Constato isso diariamente, há mais de duas décadas. Para além da competência técnica extraordinária de alguém que canta, toca, dança e representa num mesmo ato de forma brilhante como ele o faz, transporta para as suas aulas o que de melhor tem o ser humano: sentimentos, afeto, alegria, inclusão... enfim, uma lição de humanidade”.
A metodologia que tem vindo a desenvolver e a difundir é “impermeável” ou é perfeitamente conciliável com outras difundidas no âmbito da pedagogia musical?
A minha metodologia é aberta a interpretações diversas e é conciliável com outras abordagens. Não me parece interessante seguir instruções demasiado rígidas. Os elementos e recursos propostos não têm de ser todos utilizados. Por exemplo os instrumentos Orff não são absolutamente necessários. Há ainda muito para fazer, com a expressão verbal, a percussão corporal, a pequena percussão (incluindo uma enorme variedade e riqueza de instrumentos e timbres), o canto e o movimento. Cada professor faz uma síntese de várias influências e vai encontrando o seu próprio caminho e a sua própria maneira de ensinar.
Diz-nos que a música deve ser vivenciada de forma ativa, criativa e em comunidade, respeitando o universo infantil e os valores humanos, e desenvolvendo o sentido estético da criança. As tradicionais salas de aula das nossas escolas permitirão que tal ocorra com naturalidade?
Como referi anteriormente, as salas de aula estão abertas a experiências musicais. O universo infantil deve ser respeitado. A atividade é essencial, pois torna a aprendizagem mais efetiva. Estar ativa faz parte da natureza da criança, que não pode estar parada nem envolvida na mesma tarefa durante muito tempo, podendo ‘borboletear’ de uma tarefa para outra. Daí a importância de cantar, tocar, improvisar e fazer movimento de uma maneira ativa. Em vez de se começar por ensinar teoria, trabalha-se de uma maneira indutiva, partindo da experiência musical para a consciência. A criatividade desenvolve a imaginação e a compreensão. As crianças podem criar música para se exprimirem musicalmente e comunicarem através da música. A comunidade é fundamental, pois a música implica participação social. Fazer música em conjunto desenvolve competências sociais, como o respeito pelos outros e a alegria da realização conjunta. Todas as crianças são incluídas, independentemente das suas diferentes capacidades e todas contribuem para o grupo.
Alguma vez se questionou relativamente à adaptação do seu método à imparável e veloz evolução tecnológica? O Instrumental Orff terá sempre o seu lugar na aprendizagem musical?
Realmente, receio que esta metodologia não venha a perdurar durante muito tempo. A evolução tecnológica é de facto imparável. A tecnologia é fantástica, pois permite criar e fazer música de muitas maneiras e ouvir e tornar acessíveis músicas de todo o mundo. A tecnologia é um recurso pedagógico extraordinário para utilizar em educação musical. No entanto, por vezes pode não ser adequada à experiência da educação musical em grupo. Um aluno pode ouvir música individualmente, mas esta é uma situação diferente da situação da sala de aula. Quanto aos instrumentos acústicos, penso que terão sempre o seu lugar na aprendizagem musical.
Pode explicar aos nossos leitores o que compreende por uma experiência musical composta por três formas de expressão, ou seja, verbal, musical e corporal?
Uma maneira de explicar esta experiência é descrever uma estratégia para ensinar uma canção com gestos às crianças. Primeiro, a melodia é aprendida por imitação. Em seguida, aprende-se o texto, interpretando-o expressivamente de diferentes maneiras: como no teatro, dramático, humorístico, forte, piano, etc. Depois, interpretam-se a melodia e o texto juntos. Em seguida, aprendem-se os gestos e faz-se o jogo de substituição das palavras por gestos. Realizam-se então improvisações instrumentais em grupo, entre as estrofes. Nesta canção, estão presentes diferentes formas de expressão. Desta maneira, a educação musical integra várias formas de expressão artística: expressão verbal (poesia, drama), expressão musical – vocal e instrumental (cantar, tocar, improvisar) e expressão corporal (movimento, mímica, dança).
Sendo tão fortemente comprovada a importância da educação musical na formação integral de qualquer ser-humano, por que razão ainda hoje muitos governos por esse mundo fora não a reconhecem como indispensável nos currículos das escolas?
Na minha opinião, existem diversas razões. Em primeiro lugar, é o espírito do tempo: vivemos numa época em que, devido ao desenvolvimento da tecnologia e dos meios de comunicação social, tudo deve ser rápido e eficiente e a profundidade das experiências pode perder-se. Tudo se faz rápida e superficialmente, esperando-se resultados imediatos. Ora, a educação artística – quer as artes no espaço (pintura, escultura) quer as artes no tempo (música, teatro), exigindo esforço, treino e dedicação, passa para segundo plano. Em segundo lugar, como consequência da democratização do ensino, o nível de exigência em educação tende a ser menos elevado, o que é muito positivo do ponto de vista social, mas pode ter reflexos negativos na formação e no ensino. Em terceiro lugar, há uma razão económica e política: onde se fazem cortes orçamentais? Poupa-se na educação e, sobretudo, nas disciplinas artísticas, consideradas acessórias.
Como sente a realidade da Educação Musical em Portugal? É muito distinta da de outros países por onde tem passado?
Penso que a educação musical em Portugal evoluiu muito, nas últimas décadas, e é muito boa, em comparação com outros países. Os cortes recentes na educação musical e no ensino especializado de música representam um passo atrás, o que é de lamentar. Nos Estados Unidos e no Canadá, países onde lecionei durante quarenta anos e que conheço bastante bem, a educação musical nas escolas é mais forte, porque há mais interesse e porque se investem mais tempo e recursos financeiros...
Quando nos diz que “cada país tem de reconstituir as ideias de acordo com a mentalidade, a tradição e as características específicas da sua cultura”, está a afirmar que a metodologia que desenvolveu é adaptável a qualquer reportório?
Lecionei em 53 países nos cinco continentes e tenho verificado que a minha pedagogia tem sido bem-sucedida e tem tido bons resultados em países, regiões e culturas muito diferentes, e tem sido utilizada com diferentes repertórios. Tenho dado ênfase ao repertório de canções e danças da música tradicional de todo o mundo. Os numerosos e diversos exemplos, cantados, tocados e dançados, levam a fortalecer nos professores participantes uma visão multicultural da educação musical, que favorece o desenvolvimento de valores humanistas, como o respeito por outras culturas.
Os ‘instrumentos Orff’ não foram inventados pelo compositor, mas sim adaptados para as crianças, a partir dos xilofones (balafones) de África, metalofones (gamelan) do Extremo-oriente, dos jogos de sinos (carrilhão) da Europa e da rica e variada percussão das Américas. Isto faz com que todos se identifiquem com este ensemble, sendo possível fazer música em todos os estilos: blues, jazz, pop, música erudita, contemporânea, repetitiva, etc.
A utilização da voz e do próprio corpo da criança, tendo em conta que estes são os seus primeiros instrumentos musicais facilita a implementação do método em qualquer contexto cultural, social ou económico?
Olhemos para as crianças que, desde o nascimento, se exprimem pelo som e pelo movimento, ambos essenciais na vida. O primeiro grito e o primeiro movimento do bebé desenvolvem-se até chegarem a uma expressão fundamental: voz e movimento. Os instrumentos surgem como o prolongamento do corpo. Sine musica nulla vita! Em todas as sociedades e culturas, o canto e o movimento estão omnipresentes. Assim, sendo a voz e o corpo utilizados em todas as culturas e sociedades, tornam-se um meio acessível para se usar em educação musical em qualquer contexto cultural, social ou económico.
Verificamos que defende que outras formas de expressão artística tais como o teatro, o drama, a mímica, a dança, a pintura, a escultura e a literatura podem ser incorporadas pois enriquecem a educação musical da criança. Podemos dizer que o seu método não isola a música, pelo contrário contextualiza-a com outras formas de expressão artística?
Considero as diversas formas de expressão artística muito enriquecedoras para a educação musical e de facto, a experiência auditiva é enriquecida com a experiência visual. Estudei mímica, e parece-me que a mímica é muito importante para retirar as pessoas do isolamento e ajudá-las a colocarem-se em situações diferentes, para comunicar e para desenvolver a imaginação e a criatividade. O teatro pode ser praticado pelas crianças utilizando, por exemplo, máscaras, bonecos e marionetes. As crianças podem ainda desenhar e pintar, como resposta à música que ouvem. A música também pode ser contextualizada e compreendida através da apreciação da pintura e de outras artes visuais e da explicação das relações entre as artes.
Passados todos estes anos de partilha do seu método de educação musical pelo mundo, qual o balanço que faz? Valeu a pena? A educação musical é hoje muito diferente graças à sua ação?
Olho com muita satisfação para o trabalho que tenho realizado apaixonadamente durante tantos anos, para as centenas de cursos que orientei, para os inúmeros professores de música que ajudei a formar e para os milhares de crianças que têm disfrutado da música através da minha abordagem pedagógica. Claro que tem valido a pena! Uma prova disso são as mensagens que recebo regularmente de antigos alunos. Deixo aqui alguns dos testemunhos escritos pelos meus formandos, professores de música, na celebração do 40º Aniversário dos meus cursos na Universidade de Memphis, Estados Unidos:
“You are such an inspiring teacher and musician. You have contributed mightily to my own development”.
“We all are so grateful for your creative and artistic modeling. Your musical inventiveness inspires us to “take wings and fly.”
“What we have learned is with us forever, as we have shared it with you. Your teaching has transformed my teaching, composing, and even my life”.
“Your legacy extends world-wide. Your influence will continue through all the children who benefit from music. Thank you, Jos.”
O XpressingMusic - Portal do Conhecimento Musical agradece o apoio da Doutora Graça Boal Palheiros no âmbito desta entrevista.
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