Carlos Piçarra Alves. O clarinete e a amizade no centro do novo disco “Divine”
Clarinetista, docente, investigador, Carlos Piçarra Alves recebeu-nos para uma conversa à volta da música, dos músicos e da sua carreira como performer. Quanto ao ensino dos instrumentos musicais não tem dúvidas: "Sei que hoje em dia se tentam praticar algumas inovações relativamente ao ensino, mas a maioria é completamente desfasada e baseada na ignorância de quem não está no terreno e está fora das realidade do que foi toda a verdadeira tradição na formação dos instrumentistas que sempre assentou na relação entre mestre e discípulo. O mestre é o performer de altíssima qualidade munido de conhecimento que transmite ao aluno". Relativamente ao ponto em que chegou a nossa cultura diz-nos que "Para além de falta de investimento na cultura. O problema é bem mais grave do que isso. As pessoas que nos lideram não têm a mínima noção da importância da cultura nas sociedades modernas, do que é desenvolvimento a longo prazo, do que é o desenvolvimento sustentado e sólido de um país. Não têm noção visionária do que é preciso fazer para transformar o país de forma estruturada com futuro para todos".
Como gere a sua semana tendo em conta que se encontra a trabalhar em tantas frentes? Há o Carlos Alves performer, o investigador, o professor... Será que eles se encontram?
Atualmente estou a ler um livro do Daniel Barenboim que diz que "Está tudo Ligado". Realmente está tudo ligado. Eu sou um músico, sou um artista que vai à escola dar aulas, ou seja, partilhar conhecimento. Sou solista de uma orquestra nacional, o que me obriga a estar sempre em forma e isso permite-me que, enquanto professor também esteja sempre atualizado. É assim que eu encaro a questão que me coloca. Considero que estas coisas são muito circulares. No caso do instrumentista, se quisermos ser sérios, não poderá ser de outra maneira. Portanto, sou um performer de palco que toca regularmente e que está em forma e só assim é que poderei ser um bom professor que tem que estar sempre atualizado. O trabalho que faço todos os dias acaba por ser uma luz para os meus alunos. É muito mais tranquilo estar numa universidade, dar as suas aulas e vir para casa, mas isso para mim , pelo menos na minha idade é muito perigoso. Chama-se comodidade. A música, no caso dos instrumentos, é uma atividade eminentemente prática. Este facto obriga-nos a estar no palco, a saborear isso todos os dias. É isto que nós ensinamos aos alunos que virão a ser performers mais tarde, portanto temos que ter essa atualização e estar em forma sempre. Considero que o equilíbrio entre o professor, o solista da orquestra, o concertista, o profissional que toca com excelentes músicos em termos de música de câmara, tanto cá em Portugal como lá fora viajando muito, é que permite o crescimento artístico do músico. Vejo tudo isto, não como uma divisão, mas sim como um equilíbrio do indivíduo enquanto artista. É fundamental tocar todas estas coisas para que a sua performance seja mais forte e, consequentemente, enquanto professor seja também mais forte. Aliás, a própria estimulação do ensino faz-nos conhecer obras novas. Muitas vindas da parte dos próprios alunos que nos desafiam querendo tocar coisas novas que descobrem quando chegam ao ensino superior. Tudo é circular.
Não acredita portanto no concertista de aulas...
O ensino da música, quando falamos dos instrumentos, ao longo dos séculos, foi protagonizado entre o mestre e o aluno. Sei que hoje em dia se tentam praticar algumas inovações relativamente ao ensino, mas são completamente desfasadas e baseadas na ignorância de quem não está no terreno e estão fora da realidade do que foi toda a vida a formação dos instrumentistas que sempre assentou no professor e no aluno. O mestre é o performer de altíssima qualidade munido de informação que transmite ao aluno. O aluno, depois, terá capacidade, ou não, de absorver esse conhecimento. É assim que se dá a magia do ensino dos instrumentos que é essencialmente prático. Não devemos continuar a insistir na possibilidade de um ensino teórico nos instrumentos e que através disso vamos criar excelentes instrumentistas. Vejo isso tudo como algo completamente desfasado da realidade. Por isso é que digo que sou um artista que também vai à universidade partilhar os seus conhecimentos. O mais difícil naquilo que faço não é tocar a solo com orquestra , pois para isso eu preparo-me e vou praticamente blindado. Se a orquestra for boa é ótimo, se a orquestra não for tão boa é bom na mesma. O mais difícil mesmo é ser músico de uma orquestra onde impera a lei do anonimato e em que é precisa uma qualidade grande para tocar em orquestra e, por outro lado somos sempre um grupo muito grande de várias personalidades. Todas as semanas temos que tocar um reportório novo. Todas as semanas começamos do princípio e passado 2, 3 ou 4 dias estamos à frente de mil pessoas e tem que se tocar. Muitas vezes não conhecemos o maestro, nem os solistas... Portanto o mais difícil naquilo que faço é ser solista na Orquestra Sinfónica do Porto Casa da Música... Às vezes parece que é ao contrário, ou seja, por exemplo quando estreei o concerto do Mário Laginha na Capital Europeia da Cultura, parece que é muito difícil e claramente é algo da muita responsabilidade mas o que é mais difícil é ser músico de orquestra, ser solista de orquestra. Quanto a isso não tenho qualquer dúvida.
Quando veio a consciência de que teria que ser esse o sentido para o qual teria que caminhar?
Eu sempre fiz as coisas pela música. Eu gravo discos porque eu adoro música e para me desafiar a mim próprio a investigar mais as obras, a preparar-me melhor e a subir mais um degrau. Gosto muito de gravar. Tudo o que eu fiz desde que comecei na música, dos 7 anos de idade até hoje, foi sempre numa perspetiva de crescimento musical. Desde a procura dos professores... tudo o que eu faço foi sempre feito em prol desse crescimento. E é esse o desafio que eu lanço aos jovens de hoje. Nós vivemos numa sociedade muito burocratizada e eu vejo os alunos de música dizerem muitas vezes: "Que bom, tenho aqui um mestrado à porta de casa". Muitas vezes nem querem saber qual é o corpo docente, nem que tipos de formação vão ter, o que vão aprender e para que é que lhes vai servir. Eu sempre fui uma pessoa muito prática. Isso não significa que não leia imenso, que não investigue imenso e que subestime a parte teórica. A música dos instrumentistas, dos performers é essencialmente prática. Tudo o resto deverá estar ao serviço desse sentido. Mas estou a desviar-me da sua questão... Como dizia há pouco, na vida temos que ser práticos e perceber a conjuntura em que nos encontramos... O contexto do músico profissional é esse mesmo, ou seja, viajar muito, tocar como solista, ser solista de uma orquestra, o que, no caso do clarinete são muito raros aqueles que não são, ou pelo menos quase todos já foram. No caso dos pianistas e dos violinistas é mais fácil fazer uma carreira como solista. Os grandes solistas de clarinete são, quase todos, solistas de grandes orquestras mundiais. Todos eles dão masterclasses em universidades, fazem música de câmara, tocar em orquestra faz parte da vida do músico, assim como o viajar muito tocando com pessoas de várias nacionalidades absorvendo como uma esponja as experiências que daí advêm. Sempre foi assim. Já no tempo do Mozart eles viajavam nas carruagens entre cidades. Hoje quase tudo mudou mas a essência do que é a arte, do que é a música e a sua universalidade, do que é a comunicação... mantém-se. Eu vivi numa época em Portugal em que tive ao mesmo tempo azar e sorte. Tive azar por não ter acesso, nos meus 13/14 anos, à informação que há hoje, por outro lado, quando entrei para o mercado de trabalho aos meus 16 anos, passando a partir daí a pagar as minhas contas - dava as primeiras aulas, os primeiros concertos profissionais - tive a sorte de não haver muita gente a trabalhar naquela altura. Entre os meus 20 e 26 anos, tinha todos os anos convites de universidades e academias para dar aulas. Não nos faltava trabalho. Éramos muito poucos. Hoje a realidade é outra. A formação é muito melhor mas a competição entre as pessoas é muito maior porque há muitas mais pessoas com qualidade, muitos jovens com qualidade... Isso é um assunto que me preocupa. Falo mais do ponto de vista sociológico, pois não estamos a aproveitar a grande qualidade dos músicos que estamos a produzir neste momento. Estamos literalmente de costas voltadas para isso. Isso aflige-me muito.
Foi aluno nas classes do professor António Saiote que é uma personagem que se constitui como uma constante nas entrevistas que fazemos no universo do clarinete. António Saiote é uma figura marcante. Concorda? Teve muita influência no seu processo de aprendizagem?
Teve muita influência pois estudei com Professor António Saiote durante cerca de 10 anos. Serei com certeza uma das pessoas que mais estudou com ele, com a singularidade de eu ter somente 12 anos quando iniciei esse estudo em Castelo Branco pela sua mão. Hoje em dia há muitos grandes clarinetistas portugueses. Não há um ou dois. Há muitas pessoas a tocar bem clarinete em Portugal. O Prof. António Saiote tem um lugar único na história do clarinete em Portugal. Numa altura em que Portugal estava a sair de uma ditadura, ele teve a visão e a coragem de ir estudar para fora, nomeadamente para Paris e depois para a Alemanha. Depois, juntou ao conhecimento ao mais alto nível obtido junto de excelentes professores, a sua forma de estar na vida e na música, pois é uma pessoa com imensa energia, com muita vontade de vencer, muito altruísta. Assim, tendo em conta todo o seu empreendedorismo e, por outro lado, o facto de ainda não existir muita oferta nesta área, ele constituiu-se como uma luz para o clarinete em Portugal. É por isso que terá um lugar ímpar na história do clarinete em Portugal independentemente do que eu e alguns colegas meus hoje possamos fazer nacional ou internacionalmente. Historicamente é o protagonista da grande mudança que aconteceu no universo do clarinete no nosso país. Ele é o pai da nova escola do clarinete portuguesa.
Houve outros nomes que o tenham marcado ao longo do seu percurso de aprendizagem?
Em 30 anos de carreira houve muita gente que me transmitiu muitas coisas. Tanto na música como fora da música. Como sabe também fiz muitas coisas no âmbito do teatro e toquei com muitos grandes músicos. Em relação ao clarinete os meus dois grandes mestres foram: o António Saiote, sem dúvida nenhuma cá em Portugal e, depois, foi o Philipe Cuper, quando estive em Paris a estudar. Fiz também dezenas de masterclasses mas seria muito exaustivo estar aqui a falar das experiências adquiridas em cada uma delas.
Embora também já seja muito extensa a sua obra gravada, penso que os nossos leitores terão todo o gosto em conhecer um pouco mais sobre os seus registos... Estes discos que temos aqui em cima da mesa são uma pequena parte do que já gravou?
Sim. Se estivessem aqui todos seriam umas largas dezenas de CD's e também de vídeos. Eu sempre gostei de fazer projetos alternativos e tive a sorte de conhecer o encenador Ricardo Pais por volta de 2001 com quem fiz imensa coisa. Inclusivamente tenho um DVD maravilhoso que é o "D. João de Molière" no qual eu musiquei ao vivo uma peça de teatro em que o clarinetista começa por criar um fio condutor na obra, acabando no final a ter uma importância tão grande como o próprio D. Juan em termos de espetáculo para o público. Este talvez tenha sido o meu maior projeto alternativo pois foi uma coisa que andou pelo mundo inteiro em digressão. É uma coisa que nos dá uma sensação de liberdade incrível porque a música era improvisada por mim. Eu entrava numa sala com centenas de pessoas e era o compositor, o maestro, o músico tendo as pessoas à minha frente que não faziam a mínima ideia daquilo que iriam ver. Estamos a falar de uma peça de teatro do século XVI de Molière e eu aparecia com um clarinete que tinha começado praticamente um século depois. As pessoas deviam perguntar: "O que é que este indivíduo está aqui a fazer numa peça de Molière?". Portanto este é um DVD pelo qual eu tenho uma estima incrível e que eu gostava que as pessoas vissem. Está disponível no Teatro de S. João à venda e eventualmente nas Fnac's. Por outro lado, eu sou assumidamente um músico de orquestra pois é o que mais faço na vida, e sempre tive o cuidado, dentro da música erudita, sempre tive a preocupação de ir gravando os grandes clássicos do clarinete. Eu não sou um clarinetista alternativo. Sou um clarinetista bem formado, que fez uma formação muito séria, que também faz coisas ao mais alto nível alternativamente mas que gravou o Concerto de Mozart, que vai gravar agora os Quintetos de Mozart e Brahms, que gravou as suas Sonatas também . Gravei o "Recital In The West" que teve críticas maravilhosas nos Estados Unidos tocando a primeira sonata de Brahms, gravei ainda para a EMI Classics o Concerto para Clarinete e Orquestra de Mozart, gravei o Quarteto para o Fim dos Tempos de Olivier Messiaen e os Contrastes de Béla Bartok. Também, por ironia do destino, quando fui convidado para tocar a solo na Capital Europeia da Cultura fiz questão de recomendar o Mário Laginha para escrever um concerto para clarinete , que também já gravei. Tive a sorte e a visão de lançar este repto para o Concerto para Clarinete e Orquestra porque na altura estava a fazer com o Mário Laginha um projeto que era o "Sombras" no Teatro de S. João e apercebi-me do incrível músico e compositor que ele é. Simplesmente genial. Posso dizer em primeira mão que este Concerto para Clarinete e Orquestra começará em breve a fazer o caminho internacional. Vou tocar à Roménia na última semana de janeiro de 2016 e em princípio ao Funchal também. Este é o grande concerto para clarinete e orquestra português. Também já fiz música contemporânea com algumas gravações em cds... Isto tudo faz com que haja um equilíbrio. O tal equilíbrio de que falávamos há pouco. A brincar, a brincar, embora eu não seja muito velho, tenho o grande reportório do clarinete praticamente todo gravado. E, como já disse, eu não sou um solista a tempo inteiro. Sou principalmente um músico de orquestra, um professor de ensino superior mas contudo tenho já uma discografia bastante abrangente com críticas internacionais muito boas.
Isto demonstra que Portugal, embora seja um país pequeno, isso não impede que os seus músicos consigam colocar lá fora o brilhante trabalho que desenvolvem...
Se você for professor nos Estados Unidos, a universidade dá-lhe uma espécie de uma bolsa para ter um festival de 2 em 2 anos, como acontecia no Arizona. Pagam-lhe viagens para ir procurar alunos a vários países ... Em termos económicos o nosso país não nos permite nada disso. Não temos uma estrutura que valorize a qualidade humana e formativa que nós temos. Por isso temos muitos músicos novos que têm que ir para fora. Nos dias que correm são já uma maioria. Nunca senti qualquer entrave lá fora por ser português. Cada vez mais, a música é sentida como a linguagem universal. A música em si é uma linguagem universal, não tem um único país, não tem credo... Nós crescemos precisamente com esta troca de experiências entre músicos de vários países, de várias gerações, com vários conhecimentos... Quanto mais abertura e flexibilidade tivermos para ouvir, para tocar e para aprender, mais completos e melhores músicos seremos. Claro que há um problema em ser português, ou seja, em viver num país tão periférico na Europa, porque um indivíduo que nasce no centro da Europa, na Alemanha ou na Holanda, ou na Itália do Norte, pode fazer um concerto onde mora e ir a Viena no outro dia, e no outro ir a Zurique, a Milão... Nós somos Europa mas para chegarmos a França já temos que atravessar a Espanha que é cinco vezes maior. Tudo é mais difícil para nós. Tenho sido sempre bem recebido fora de portas.
Temos, nos dias que correm, muitos talentos portugueses espalhados pelo mundo. Isto acontece fruto da formação que vamos dando no nosso país. Esses talentos não ficam a dever nada aos músicos de outros países. Concorda?
Concordo plenamente. Ainda há dias estive no júri do concurso de Oliveira de Azeméis, o Concurso de Música Terras de La Salette, e é incrível ver a quantidade de jovens, por exemplo na área dos sopros, que é a minha área, com tanto talento. Hoje é normal ver portugueses a ganhar concursos em orquestras lá fora quase todos os dias. Portugal tem muito talento na área da música, sem dúvida, só tenho pena que tenham quase todos de ir lá para fora atualmente.
Porque é que isso acontece? Somos pequenos demais para absorver tantos talentos?
Não somos pequenos demais. Somos desorganizados.
Mas há falta de investimento na cultura?
Sim, é quase inexistente o investimento na cultura em Portugal. Mas o problema é bem mais grave do que isso. As pessoas que nos lideram não têm o mínimo conhecimento e sensibilidade do que é a cultura e da sua importância a longo prazo no desenvolvimento sustentado do país Não têm noção visionária do que é preciso fazer para transformar Portugal de forma estruturada com futuro para todos. Isto tudo provoca um cinzentismo latente hoje no nosso país. Não é só na área da música. É em qualquer área. Ao longo dos tempos, temos tido a governar-nos alguns indivíduos com uma formação fraca na sua maioria , que chegaram a políticos pelas "jotas" e que, naturalmente vão aumentando a dívida, mas sem qualquer tipo de noção do que é uma visão de futuro e daquilo que realmente é preciso fazer para desenvolver o país.
Eu sou solista numa orquestra nacional, sou professor numa instituição de ensino superior, tenho concertos, mais no estrangeiro do que em Portugal, o que para mim é igual porque não poderia fazer mais concertos do que os que faço. Tenho pena de não tocar mais no meu país...
Em relação à conjuntura portuguesa atual, não podemos continuar a achar que isto é normal. Não podemos ter um país com 10 milhões de habitantes, situado na Europa em que temos somente duas orquestras sinfónicas e temos mais meia dúzia de orquestras que trabalham num regime muito intermitente. Depois temos uma manta formadora excecional e músicos de qualidade a jorrar por todo lado, o que mostra que seria relativamente fácil formar orquestras por todo o país. Isto mostra que seria necessário haver um planeamento político sério para mudar completamente este panorama. Este cenário de não haver música de câmara, de não haver concertos com regularidade, de não haver orquestras, não é sério da parte das pessoas que nos têm governado. Há um desaproveitamento enorme da altíssima qualidade dos jovens que nós estamos a formar neste momento. Não vejo mal nenhum no facto das pessoas emigrarem, em irem trabalhar para Espanha, para França, para a América, como não vejo mal nenhum nos músicos dos outros países virem para cá. Estamos a falar de arte, de música, logo a troca de experiências entre pessoas de escolas diferentes é muito saudável para o desenvolvimento dos povos. Por vezes temos uma visão mais fechada por sermos portugueses e consequentemente mais periféricos. Se vivêssemos no centro da Europa, se tivéssemos muitas mais oportunidades de trabalho, talvez não nos importássemos que os outros também pudessem vir para o nosso país. Há que haver muito maior abertura de espírito pois a música é a linguagem universal onde até a barreira da fala é ultrapassada quando se toca. Um indivíduo pode ser português, outro chinês e outro americano e tocarem os três maravilhosamente bem.
Do que fomos ouvindo nestas suas últimas palavras ficamos com a ideia de que se investiu pela metade, ou seja, investiu-se na formação mas depois não se investiu naquilo que poderia dar continuidade a essa formação...
Nós temos aqui um fenómeno engraçado. Vou sair agora um pouco da música para que se entenda que o problema é global. Há dias ouvi a notícia de que estávamos a exportar médicos. O que é caro é a formação de um médico. O músico instrumentista e o médico têm os cursos superiores mais caros que existem . Nós formamos os médicos, pagando a sua formação e depois vamos exportá-los. Pagamos a formação deles e depois eles vão criar riqueza para outro país com o seu trabalho. É exatamente o que se passa com os músicos que têm ido para outros países. Isto é completamente ridículo. Os nossos políticos da área da cultura têm mostrado que o trabalho de casa não está a ser feito minimamente. Nós temos que ser senhores de nós próprios e a cultura é a identidade de um povo. Se respeitarmos a nossa cultura e se tivermos nesta um grande alicerce começamos a pensar pelas nossas cabeças e traçar o nosso próprio caminho, isto é, a mandarmos em nós próprios. Não devemos ir atrás do que os outros nos mandam fazer, mas sermos nós a liderar os projetos. É aqui que a cultura ganha uma identidade muito grande nos povos e nós, portugueses, temos que mudar isso. Temos que tomar as rédeas das nossas vidas novamente. Nós, músicos, temos dado uma ótima imagem do país mostrando qualidade naquilo que fazemos e os nossos políticos, por outro lado, andam a passar a imagem de que somos uns coitadinhos sempre de mão estendida. Isto é um contrassenso. É um pouco como o Bruno estava a dizer há bocado. Portugal, per capita, tem imensos músicos de extrema qualidade. Quase arriscaria dizer que é o país do mundo onde isso se verifica de forma mais acentuada.
Muito obrigado por nos ter recebido e acolhido aqui em sua casa para esta entrevista. Pode, por fim, revelar aos nossos leitores quais os seus próximos projetos e onde poderão ouvi-lo?
Nas próximas semanas convido todos a assistirem à Orquestra Sinfónica do Porto Casa da Música que é algo que me dá muito trabalho e prazer diariamente. Para além disso quero salientar dois concertos que terei. Um é agora no dia 20 de maio, um recital no novo e belíssimo Centro de Cultura Contemporânea de Castelo Branco com o pianista Constantin Sandu. Terei outro concerto no dia 28 de junho também em Castelo Branco. São portanto dois concertos que a Câmara Municipal de Castelo Branco organizou tendo em conta que eu me destaquei e que pertenço àquela região. São dois concertos que giram à minha volta tendo a autarquia dado carta-branca para que eu fizesse os programas . Aí será lançado o meu último disco, o que é uma novidade em primeira mão. Neste CD serão gravados os quintetos de Mozart e de Brahms. Como desafio da própria Buffet Crampon, marca que vende 95% dos clarinetes no mundo, eu estou a tocar neste momento com o último topo de gama deles que é o "Divine". É um instrumento belíssimo, muito elegante, todo em madeira, sem anéis entre as junções. Eu tenho muitos discos gravados com clarinetes da Buffet Crampon mas havia a necessidade de gravar um novo disco com o novo clarinete, portanto é um desafio superior de certa maneira. Eu escolhi os quintetos de Mozart e de Brahms para esse disco. Por um lado porque o Divine aparece como um instrumento topo de gama da principal marca de clarinetes do mundo e, por outro lado, tinha que escolher o Quinteto para Clarinete de Mozart porque é o primeiro quinteto para clarinete e cordas da história da música feito pelo compositor que foi também aquele a quem se deve de uma maneira mais evidente a presença do clarinete na orquestra pelo seu enorme peso e prestígio na época. Mozart conheceu no final da sua vida o clarinetista Anton Stadler e escreveu ao pai a dizer que tinha conhecido um indivíduo que tocava maravilhosamente e que ia escrever um concerto para clarinete. Estamos a falar de inovação e o Mozart era um inovador. O outro quinteto que vou tocar é o Quinteto para Clarinete de Brahms e que é a grande obra romântica do clarinete. Foi escrito exatamente 100 anos depois do de Mozart e também ele deriva de uma relação de amizade entre um instrumentista e o compositor. Da amizade de Richard Mülhfeld com Brahms neste caso. Assim, naturalmente pela amizade que tenho com a marca francesa Buffet Crampon e pelo enorme respeito e dedicação com que tratam os artistas e os seus clientes, tendo como fio condutor a índole da amizade, irei gravar este disco com estes dois quintetos. O disco irá chamar-se Divine por ser o nome do novo modelo do instrumento. Como já disse há pouco, irei estar na Roménia em janeiro de 2016 para tocar o concerto do Mário Laginha. Farei ainda o "Sombras" que é um grande espetáculo de cultura portuguesa com encenação de Ricardo Pais, em que eu partilho o palco com artistas como Mário Laginha, Raquel Tavares, Emília Silvestre, Pedro Almendra, entre outros. Vamos estar em cena na primeira semana de julho na Cidade das Artes no Rio de Janeiro. Ainda em janeiro de 2016 voltarei aos Estados Unidos para dar Masterclass e fazer recitais com o famoso pianista Caio Pagano. Saliento finalmente o convite ainda fresco que o Super Solista da Ópera de Paris Philipe Cuper me dirigiu pessoalmente esta semana para tocar com ele a solo na estreia de um concerto para dois clarinetes e Banda Sinfónica (neste caso a Banda Sinfónica de Madrid), a realizar no próximo mês de julho no Congresso Mundial de Clarinete na cidade de Madrid.
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