Rui Pinheiro. A carreira e o desafio da Orquestra Clássica do Sul.
Maestro Titular da Orquestra Clássica do Sul, Rui Pinheiro fala-nos do seu trabalho neste novo contexto e de outras experiências que tem tido ao longo da sua carreira. Fica evidente que a sua passagem por Inglaterra deixou marcas profundas devido a uma imensidão de experiências aí vivenciadas ao lado de nomes como Peter Stark, Robin O'Neill, Jorma Panula, Colin Metters, Sir Roger Norrington, Esa-Pekka Salonen, Vladimir Jurowski, John Wilson e Martin Andre. Começou a sua carreira pelo piano sendo licenciado e pós-graduado neste instrumento mas atualmente a direção preenche na totalidade do tempo que dedica à música. Mas não se arrepende. Abraçar a direção a tempo inteiro é algo que o preenche e realiza profissionalmente. Aqui fica a entrevista realizada ao Maestro Rui Pinheiro.
Muito obrigado por nos proporcionar esta conversa. É maestro titular da Orquestra Clássica do Sul desde janeiro de 2015. Qual é a marca que gostaria de deixar com esta sua passagem pela OCS?
Atendendo às características específicas da Orquestra Clássica do Sul, ou seja, estamos a falar de uma orquestra de câmara, com uma instrumentação reduzida, uma instrumentação clássica... aquilo que eu gostaria de deixar como marca e que considero que também deveria ser o caminho inteligente da orquestra, era o reconhecimento da orquestra como especialista em música clássica, um pouco à semelhança do que acontece hoje por toda a Europa. Depois dos movimentos de orquestras com instrumentos de época e que têm estado muito em voga desde os anos 80, penso que hoje em dia faz muito sentido haver orquestras com instrumentos modernos mas que toquem música clássica. Estamos a falar de Haydn, Mozart, Beethoven... Falo de uma abordagem estilisticamente informada, muito inteligente. Penso que será por aí que a Orquestra Clássica do Sul poderá fazer a diferença porque naturalmente não podemos competir com reportórios românticos das grandes orquestras nacionais. Penso então que o nosso lugar se coaduna com a especificidade de uma orquestra que trabalhe o reportório clássico. Uma orquestra que o faça bem e que o realize estilisticamente de forma correta e informada. Este é o rumo que desejo para a orquestra e é nesse sentido que tenho trabalhado. Trabalhar com base neste reportório que é muitas vezes interpretado, tocando-o bem, pois infelizmente tem sido tão mal tocado... Hoje em dia já se sabe tanto relativamente à forma como se tocaria na época que não se justifica assistir a certas interpretações que se apresentam por aí. É neste caminho que temos que fazer a diferença e nestes primeiros meses já estamos a conseguir bons resultados nesse sentido, o que me deixa muito contente.
A sua passagem pelo Reino Unido entre 2010 e 2012 deve ter sido rica em experiências. Quais os principais marcos que ficam dessa sua experiência?
Podemos dividir essa experiência em duas fases. A primeira inerente aos dois anos em que estive no Royal College of Music. Esta fase foi absolutamente marcante porque tive dois professores fantásticos. Por um lado o Peter Stark e o Robin O'Neill que também é um maestro fabuloso. Fui, naturalmente, muito marcado por eles. Ainda no Royal College of Music tínhamos oportunidade de trabalhar com orquestra regularmente. Fazíamo-lo todas as semanas, tanto em projetos nossos como assistindo a projetos de outros maestros. Lá foi fundamental poder assistir a grandes mestres que por ali passavam para trabalhar. Falo de nomes como Martin Andre, Esa-Pekka Salonen, Vladimir Jurowski, Pierre Boulez, enfim, todo esse tipo de grandes mestres passavam pelo Royal College para trabalhar com a orquestra e nós, naturalmente, como eramos somente dois alunos, funcionávamos como os assistentes oficiais de todos esses maestros convidados. Era fantástico podermos estar durante uma semana a trabalhar ao lado daqueles "monstros sagrados" que conhecemos dos discos... Isso para mim foi absolutamente marcante. Na Orquestra Sinfónica de Bournemouth já foi um bocadinho diferente, pois já era uma orquestra profissional e eu encontrava-me como Maestro Assistente, trabalhando duas ou três semanas por mês e tendo o desafio de montar reportórios muito rapidamente. Assistia também ao trabalho de outros maestros e tinha que estar constantemente em "standby" para alguma eventualidade... E aconteceu algumas vezes o maestro faltar por uma ou outra razão e eu ter que o substituir em cima da hora. Foi uma experiência enriquecedora viver 24 horas/7 dias por semana a trabalhar com uma orquestra profissional. Foi enriquecedor trabalhar numa orquestra de nível mundial e que trabalhava a um ritmo que jamais imaginei que as orquestras trabalhassem. Foi muito gratificante fazer parte disso tudo durante dois anos.
Nessa altura houve algum concerto que o tenha marcado de forma especial?
O concerto que fiz no final do meu mestrado no Royal College of Music foi bastante importante com a 7ª Sinfonia de Sibelius. Foi o fim de um ciclo importante para mim. Depois, com a Sinfónica de Bournemouth, talvez o concerto mais marcante tenha sido o que fiz aquando no Jubileu da Rainha Elisabeth II. Talvez pelo simbolismo e pelo facto de me encontrar em Inglaterra nessa altura. Mas todos os concertos foram interessantes, quer pelo programa, quer pelos solistas com quem pude trabalhar...
Recuando aos anos entre 2005 e 2008, podemos dizer que foram anos de trabalho bastante intenso, pois para além de ser Maestro Titular da Orquestra do Conservatório Nacional de Lisboa ainda esteve ligado à criação de outros projetos que o absorveram bastante. Concorda?
Sim... Eu estive no Conservatório durante 7 anos como professor de piano e, quando saiu um dos grandes maestros da nossa praça, que era o professor Peres Newton, o então maestro da Orquestra do Conservatório Nacional de Lisboa, apareceu a oportunidade de alguém começar a trabalhar com a orquestra. Na altura havia muitas limitações. Hoje o ensino nos conservatórios evoluiu muito. Hoje podem-se fazer coisas que há dez anos eram inimagináveis. Foi-me então colocado o desafio e como eu já tinha o "bichinho" da direção... Para mim foi muito importante começar a trabalhar com a Orquestra do Conservatório pois aprendi imenso nessa altura. Tinha miúdos à minha frente com limitações e com problemas e isso tornou-se um desafio interessante pois tinha que pensar como proceder para colmatar essas limitações e arranjar o reportório mais adequado para uma orquestra de jovens. Foi portanto uma experiência enriquecedora. Quando saí a orquestra já apresentava um nível bastante interessante, não só pelo trabalho que levei a cabo, mas também pelo excelente trabalho que o conservatório tem vindo a desenvolver. Foi bom apanhar essa onda de crescimento que houve nos conservatórios.
Encara a divulgação da música de compositores portugueses como uma missão?
Enfim, é a nossa cultura e sempre foi um bocadinho menosprezada. Temos grandes compositores-chave como João de Freitas Branco, Lopes-Graça... Enquanto pianista debrucei-me muito sobre o reportório de Lopes-Graça que é um compositor que me interessa particularmente. O mestrado que fiz cá em Portugal também foi sobre Lopes-Graça. Foi um compositor que me marcou imenso por várias razões. O meu professor de piano, o professor Fausto Neves trabalhou também bastante com Lopes-Graça e é também um dos grandes especialistas no seu reportório e iniciou-me na música deste compositor desde muito cedo. Depois existe toda a música coral, a música de câmara... Como maestro tenho feito outro tipo de abordagem à música contemporânea. Em Inglaterra, com o compositor Luís Soldado criámos um projeto, o Ensemble Disquiet, dedicado à divulgação da música contemporânea portuguesa em Inglaterra, dedicando-nos também à música contemporânea em geral. Fizemos uma ópera escrita pelo Rui Zink que apresentámos no College. Este trabalho direto com os compositores vivos é uma coisa que interessa bastante. Também tenho trabalhado com alguma regularidade com o Grupo de Música Contemporânea de Lisboa. Tenho aprendido imenso com eles porque eles têm a tradição oral do Jorge Peixinho, Clotilde Rosa entre outros compositores. A via oral acaba por ser a melhor maneira de se conhecer o compositor e aquilo que ele pretendia. Ainda assim, tenho trabalhado com compositores mais recentes como o Alexandre Delgado, com o Nuno Côrte-Real... Interessa-me explorar a música portuguesa que se tem feito que é de altíssima qualidade. Quando vamos para o estrangeiro, uma das coisas fantásticas que existe é o facto de percebermos que afinal não somos assim tão pequeninos quanto isso. Temos coisas tão boas como os outros têm e coisas tão más como os outros têm. Somos mais pequenos, logo em número não se pode comparar mas, no que diz respeito à qualidade, temos compositores de nível excelente.
Já falámos da Orquestra Clássica do Sul, da sua passagem pela Orquestra do Conservatório Nacional de Lisboa, mas já passou por muitas outras formações. Pode dizer-nos quais as principais orquestras portuguesas que já dirigiu?
Basicamente já dirigi quase todas as principais orquestras portuguesas. Com mais destaque enumeraria a Orquestra Gulbenkian com a qual trabalho com alguma regularidade e a Orquestra Sinfónica Portuguesa do Teatro Nacional de São Carlos com quem também tenho uma atividade regular, tanto a nível sinfónico, como ao nível da ópera. São estas as principais orquestras com quem já trabalhei e trabalho de forma mais regular. Mas também já trabalhei com a Orquestra Metropolitana, com a Orquestra das Beiras com a qual também tive uma relação muito especial. Quando comecei a dirigir mais profissionalmente foi precisamente a Orquestra das Beiras que me abriu as portas e por isso tenho muito a agradecer também ao seu Maestro Titular António Lourenço que foi uma pessoa fundamental para o meu início de carreira abrindo-me as portas e dando-me oportunidade de desenvolver o meu trabalho. Tenho portanto uma ligação pessoal e afetiva com a Orquestra das Beiras. E creio que referi basicamente todas até porque em Portugal não temos muito mais orquestras. Estava no entanto a esquecer-me de uma importante orquestra. Falo da Orquestra Clássica da Madeira que foi uma orquestra com a qual tive o prazer de trabalhar justamente na sua reabertura após toda aquela confusão que fez com que estivesse fechada durante um ano. Fui convidado para fazer o primeiro concerto de reabertura e foi um momento absolutamente fantástico. Tínhamos ali músicos de enorme qualidade num estado de desmotivação que só será possível imaginar por alguém que tenha passado por uma experiência idêntica. Ter uma orquestra fechada durante um ano... Apanhei a orquestra com aquela vontade enorme de tocar e de fazer imensas coisas. Tenho voltado a trabalhar com a Orquestra da Madeira e é ótimo ver que esta está a ter um desenvolvimento absolutamente incrível e muito graças ao seu diretor artístico Norberto Gomes que tem feito um trabalho absolutamente incrível. A Orquestra da Madeira é neste momento uma orquestra de referência. É uma orquestra de nível excelente e com uma programação artística sem par pelo menos ao nível das orquestras regionais. Tive muito prazer em estabelecer esta relação próxima com a Orquestra da Madeira.
Falou-nos há pouco dos compositores portugueses que, em sua opinião, nada ficam a dever ao que se faz no panorama internacional. Relativamente às orquestras, mantém a mesma opinião?
Não lhe posso responder a um nível qualitativo. Poderei responder falando do ritmo de trabalho. Trabalhei essencialmente em Inglaterra, logo com orquestras inglesas e o ritmo de trabalho que eles têm é absolutamente colossal. Nós por cá nem sequer temos a ideia do que se faz por lá e de como se faz por lá. São modelos de orquestra ligeiramente diferentes. Nós lá teríamos em média 3 ou 4 concertos por semana, passávamos dias em viagens. As grandes orquestras são orquestras que estão intermitentemente em tournées mundiais. Nunca param. Uma pessoa entra naquele turbilhão de ensaios, concertos, viagens... Em Portugal o ritmo é muito mais calmo. Temos orquestras que fazem o seu programa semanal e repetem eventualmente uma vez. Há algumas exceções. Sobretudo as orquestras regionais têm um plano de descentralização e viajam mais oferecendo concertos a uma população mais diversificada. O mesmo não acontece com as ditas grandes orquestras que têm a sua sede e fazem um concerto semanal na sua sede. Isto também se reflete na capacidade que as orquestras têm de abordar novos reportórios, na sua rapidez de montagem. Não vou dizer que as nossas orquestras são melhores ou piores. Laboram em ritmos diferentes. Falta-nos esse lado de internacionalização. Podemos ter um concerto absolutamente fantástico mas nunca sairá de Lisboa. Não há crítica. Não há crítica internacional, portanto mesmo que se faça um trabalho fantástico com um nível incrível, as coisas não saem daqui. É isso que de certa forma motiva que os músicos trabalhem num ritmo diferente. Lá fora há orquestras inferiores às orquestras portuguesas mas a questão é que eles têm tanta quantidade que acaba por surgir a qualidade. Nós aqui acabamos por quase não ter elementos de comparação... Aqui encontram-se orquestras ao nível do que se faz lá fora. É óbvio que as grandes orquestras lá fora têm outros meios, logo têm melhores músicos e não só, têm financiamentos... Não podemos comparar-nos com uma Filarmónica de Berlim até porque o financiamento que eles têm é incomparável. Mas, mesmo com todas as limitações que nos são impostas, faz-se um trabalho incrível em Portugal em todas as orquestras sem exceção.
Apesar de há pouco termos falado na música contemporânea portuguesa, o Maestro Rui Pinheiro é um entusiasta da música contemporânea em geral. Já contactou com vários grandes nomes da composição contemporânea mundial...
Em Portugal tenho tido uma relação muito próxima com o Luís Soldado. Já estreei muitas obras dele e o nosso caminho acabou por se cruzar também no College. É para mim um dos compositores mais marcantes da nossa geração. É um compositor que se tem dedicado muito ao reportório com voz, nomeadamente à ópera e não só. Também destacaria o Bruno Soeiro, um compositor absolutamente genial da nova geração. Isto para falar das pessoas que me são mais próximas mas já trabalhei com outros compositores como o Nuno Côrte-Real, com o Alexandre Delgado, Luís Tinoco, Isabel Soveral, Fernando Lapa, James MacMillan, Augusta Read Thomas, uma das compositoras mais marcantes da cena musical americana. Trabalhei com ela num concerto que foi transmitido em direto para a BBC, o que também foi muito estimulante.
O Maestro Rui Pinheiro é licenciado e pós-graduado em piano. A sua carreira enquanto instrumentista teve que ser interrompida para que abraçasse a direção?
Neste momento sim. Completamente interrompida. Fiz o meu percurso como pianista. Estudei na ESMAE, no Porto indo depois para Budapeste onde fiz a pós-graduação em piano em música de câmara, na Academia Ferenc Liszt, depois ainda fiz o meu primeiro mestrado em piano na Universidade Nova de Lisboa e nessa altura comecei a dar aulas no Conservatório e tinha uma carreira bastante ativa como pianista, não tanto como solista mas com música de câmara que é uma coisa que me dava imenso prazer em fazer. Quando surgiu esta oportunidade de ir estudar para Londres, tendo em conta o trabalho que é necessário para que um pianista se mantenha em forma e o trabalho que é solicitado a um maestro tive que deixar a carreira de pianista um pouco em "standby" mas é algo do qual não me arrependo absolutamente nada. Para mim é muito agradável poder ser maestro a tempo inteiro mas tal não me dá o mínimo de espaço para poder tirar umas horinhas para estudar piano.
Mais uma vez agradecemos este tempo que nos dedicou. Para terminarmos deixamos aqui uma questão relacionada com a sua carreira na área da direção. Quais os grandes nomes desta área que mais o marcaram no seu percurso formativo?
Logicamente os meus professores em Inglaterra, Peter Stark e Robin O'Neill, que foram pessoas absolutamente marcantes. Como já referi o maestro António Lourenço foi uma pessoa muito marcante para mim por me ter dado um voto de confiança proporcionando-me a oportunidade de dirigir. É claro que no Royal College of Music foi importante trabalhar com pessoas como Esa-Pekka Salonen, pois foi fantástico poder trabalhar ao lado dele, com o maestro Roger Norrington, uma pessoa que faz uma abordagem mais ligada à música do século XVIII embora utilizando instrumentos modernos. Já na Orquestra Sinfónica de Bournemouth foi fantástico ver trabalhar o Maestro Sir John Eliot Gardiner.
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