Job Tomé: “Sou um defensor da música portuguesa”.

Job ToméDescontente com a programação de instituições como a Casa da Música e o Teatro Nacional de São Carlos, o barítono Job Tomé assume-se como um defensor da música portuguesa. "Não vou dizer que se trata de uma luta mas assumo como uma preocupação minha o facto de, recorrentemente procurar inserir reportório português e defender aquilo que de melhor temos. Lá fora, já não é a primeira vez que procuro provocar intérpretes de outras nacionalidades com reportório português e normalmente a receção é muito boa porque temos valor, temos mérito naquilo que se faz... Só é preciso é que seja divulgado". Quanto à programação de alguns teatros e instituições culturais diz: "A verdade é que quem decide, quem está nos «poleiros», quem está nos centros de decisão é muitas vezes ignorante. Ignorante porque não tem responsabilidade, não tendo que dar qualquer tipo de resposta pelas opções que tomam e dão-se casos muito graves".

Muito obrigado por nos proporcionar esta conversa. Começamos por uma pergunta relacionada com o início da sua formação. Qual foi o seu percurso antes de ingressar no Conservatório de Música do Porto?
O meu pai dirigia um coro e eu, desde os meus 3, 4 anos, comecei logo a frequentar os ensaios. Ainda me recordo de brincar com os ferrinhos debaixo das saias das sopranos. Somos uma família numerosa e a minha mãe e os meus irmãos também cantavam no coro e eu ia ficando por ali cantando também as canções que se trabalhavam no coro. Em casa também tínhamos piano e, desde que me lembro, sempre andei integrado nessa ambiência musical. Mais tarde comecei a estudar com o meu pai em casa e, aos 11 anos ingressei no Conservatório. Comecei a ter aulas de piano com a professora Francisca, pianista, que entretanto faleceu, vindo o professor Constantin Sandu para o seu lugar. Fiz então alguns anos de piano e, mais tarde, já com a voz amadurecida e com a mudança de voz assumida começaram a incentivar-me para estudar canto pois consideravam que eu tinha um timbre bonito. Nessa altura resolvi fazer a readmissão ao conservatório em canto. Job ToméNa altura comecei a trabalhar com a professora Cecília Fontes e mais tarde acabei por ir para a Escola Superior de Música e Artes do Espetáculo onde concluí a licenciatura com o professor Rui Taveira e, mais tarde, o mestrado. Depois, enquanto existiu o Estúdio de Ópera da Casa da Música, também fiz parte desse estúdio de ópera. Quando terminei a ESMAE fui um ano para Marselha para um estúdio de ópera francês. Aí estabeleci alguns contactos e ingressei na Academia de Ópera de AIX-en-Provence mantendo alguns contactos na área do canto fora de Portugal.

Falou há pouco que aos 3, 4 anos já vivia numa ambiência muito musical. Gostaríamos no entanto de saber qual foi o momento em que percebeu que a sua vida profissional iria passar mesmo pela música...
Creio que isso aconteceu lá para os 18, 19 anos. Antes, tudo era muito imaturo, inconsequente... Estudamos porque nos aconselham a estudar (risos). Tudo acontecia porque nos inclinavam um pouco nessa linha. Uns com mais facilidade do que os outros, o que não era bem o meu caso pois no piano eu penava um bocadinho (risos). Felizmente fui-me alimentando das coisas boas e não daquelas que me faziam sofrer (risos).

Em 2007, quando é galardoado com o 1º prémio na primeira edição do concurso de canto da Fundação Rotária Portuguesa, ainda era estudante ou já era músico profissional?
Bem, quando entrei para a ESMAE, ingressei em simultâneo para o Estúdio de Ópera da Casa da Música. A partir daí a carreira profissional e a académica começaram a andar lado a lado. Eu comecei a fazer produções profissionais pelo facto de estar ligado ao Estúdio de Ópera. Comecei a desenvolver aos poucos uma produção aqui, uma produção ali... Fui então fazendo o percurso académico e o profissional em simultâneo. Uma coisa facilitou a outra e vice-versa. Houve vantagens nesse sentido. Penso que o que me aconteceu acaba por ser o cenário desejável para que um aluno possa colocar em prática aquilo que vai aprendendo na escola e o contrário, ou seja, tirar do que vai acontecendo na carreira profissional para a formação. Julgo que isso é importante. Respondendo à sua pergunta posso dizer que desde 2002/2003 as coisas já seguiam uma via profissional.

Job ToméJá nada o podia parar (risos)...
Há sempre a possibilidade de pararmos de um dia para o outro (risos) mas, penso que com o rumo que as coisas têm tomado, muito dificilmente me contentaria com outra profissão.

Ainda em 2007 recebeu o Prémio Helena Sá e Costa da ESMAE. Foi importante este prémio para o Job Tomé?
Sim. É um reconhecimento da nossa instituição pelo nosso trabalho. E não foi só isto. Também fui bolseiro do Instituto Politécnico do Porto com a Bolsa Leonardo Da Vinci quando terminei o meu curso, o que me permitiu ir para fora. Há assim uma série de coincidências que eu reconheço que me deixam contente. É bom sentirmos que não são só as notas que contam mas também o reconhecimento pelo nosso trabalho.

Agora, mais recentemente, foi premiado no Concurso Luísa Todi, onde também conquistou o prémio de melhor canção portuguesa...
Felizmente tem-me sido reconhecida essa via mais interpretativa de canção portuguesa e não só. Sou um defensor da música portuguesa. Não vou dizer que se trata de uma luta mas assumo como uma preocupação minha o facto de, recorrentemente, procurar inserir reportório português e defender aquilo que de melhor temos. Lá fora, já não é a primeira vez que procuro provocar intérpretes de outras nacionalidades com reportório português e normalmente a receção é muito boa porque temos valor, temos mérito naquilo que se faz... Só é preciso é que seja divulgado.

Das várias conversas que temos mantido com músicos portugueses, verificamos que existe um fio condutor naqueles que fizeram a sua formação na ESMAE. O Job Tomé sentiu, ao longo da sua formação, que há um incentivo e um claro sentimento de defesa do reportório português patente na ESMAE enquanto instituição de ensino? Há um incentivo para a missão da preservação e divulgação do reportório de compositores lusos?
É difícil de responder a essas questões porque, embora existam itens nos exames para que se respeitem certos aspetos que estão regulamentados, para além disso, e se calhar é daí que advém essa magia, há um reconhecimento e uma vontade de partilha. Na ESMAE há muita partilha porque trabalhamos com os professore e eles próprios são compositores. O Fernando Lapa andava por lá, o Carlos Azevedo também. Encontrei-me lá com o Luís Tinoco, com o próprio António Pinho Vargas, Mário Laginha... O facto de convivermos com estas pessoas influencia muito a vontade que nós temos em defender as causas e as composições desses compositores. Esta proximidade e a partilha de experiências valem mais do qualquer diploma ou qualquer critério de avaliação.

Há pouco falávamos da música enquanto profissão. Pelo que vemos o Job tem trabalhado bastante. Não sente a crise na música?
Ui!! (risos) Claro que sentimos a crise. Falamos de uma questão de oferta e de procura. Realmente o mérito vai premiando algumas pessoas. Eu espero fazer parte desse grupo e daí as solicitações de que fala. No entanto, cada vez mais, a forma de compensar esse trabalho é precária, mais incerta, mais tardia, menos valiosa...

Job ToméHá muito trabalho mas este é mal compensado. É isso?
Exatamente. Sobrevive-se.

É realmente lamentável que uma arte tão nobre como a música esteja quase numa situação de "mão estendida" como de se uma atividade menor se trate.
Temo que as minhas palavras possam ter uma repercussão negativa mas não me incomodo pois vivo bem com isso. A verdade é que quem decide, quem está nos "poleiros", quem está nos centros de decisão, é muitas vezes ignorante. Ignorante porque não tem responsabilidade, não tendo que dar qualquer tipo de resposta pelas opções que tomam e dão-se casos muito graves. Neste momento, na Casa da Música, estamos constantemente a ouvir cantores convidados que vêm cá e os cantores portugueses não colocam lá os pés. Outro exemplo: Quando se fez As quatro óperas do Anel do Nibelungo de Wagner havia cerca de 40 papéis, 40 cantores e nenhum era português. Isto é lamentável e vergonhoso para quem dirige. Estamos a falar de uma casa que tinha um Estúdio de Ópera que se constituiu como um dos pilares da fundação da Casa da Música. É grave quando estas coisas acontecem. Há pessoas que têm responsabilidades e têm que as assumir mas ninguém as responsabiliza nem as questiona quanto às suas opções mas nós temos que as pagar.

Para além da carreira enquanto performer, também leciona? Da formação?
Entre 2008 e 2010, como estive fora, não lecionei. Mas desde sempre fui conjugando as duas atividades precisamente porque em Portugal é impossível viver só dos concertos. Neste momento estou a dar aulas no Instituto Politécnico de Bragança e na Academia de Viana do Castelo.

Senti alguma mágoa quando referiu o facto dos músicos portugueses serem muito pouco solicitados, quando se fala de grandes produções, acentuando-se a gravidade da situação quando falamos de instituições com tanta responsabilidade como é o caso da Casa da Música. Considera possível que exista a curto prazo uma mudança de paradigma no sentido de se vislumbrar finalmente uma nova forma de gerir a cultura? Será que vai chegar o dia em que os portugueses se vão aperceber de que "exportamos" tanta qualidade para as grandes orquestras por esse mundo fora e que, dentro de portas, damos propriedade à expressão de que "santos da casa não fazem milagres"?
Job ToméDevemos começar por questionar o Teatro Nacional de São Carlos, a Casa da Música, excetuando, e honra lhe seja feita, a Gulbenkian que desenvolve um trabalho ímpar. Tem que se perguntar ao Teatro Nacional de São Carlos porque é que eu, a Ana Pinto, Hugo Oliveira, Rui Baeta e outros tantos cantores como a Ana Quintans, João Fernandes, Paulo Ferreira, cantores com presenças habituais em teatros tão importantes como Teatro Versailles e outros tantos por essa Europa fora, não cantam no principal teatro português. Eu penso que essas perguntas têm que ter resposta. Tem que haver responsáveis por estas opções. Isto é vergonhoso. É lamentável.

Falemos agora de coisas mais entusiasmantes, ou seja dos seus projetos para o futuro próximo...
Tenho alguns projetos interessantes com pessoas também interessantes mas deixo aqui o mistério lançado. Mas tenho outros projetos relacionados com a Companhia de Ópera que tenho com alguns amigos. É a Companhia all'Opera. Isto porque nós não nos resignamos a este marasmo que outros nos querem impor. Acreditamos no valor das coisas e no trabalho que desempenhamos. A prova disso é que, apesar de não termos qualquer tipo de apoio, temos feito alguns espetáculos em que tivemos casas cheias ainda há pouco tempo. A falta de público, nomeadamente no caso da Ópera, é um verdadeiro mito em que nos querem fazer acreditar. Não posso deixar também de referir a forma carinhosa como a Paróquia de Perafita nos tem recebido, permitindo utilizar um espaço para ensaios. Também temos tentado exportar o nosso trabalho e já fomos a Maputo, várias vezes a Espanha, sempre tentando valorizar o trabalho dos portugueses. Deixo ainda uma referência ao fantástico trabalho que tem sido desenvolvido pelo Quarteto Contratempus e pelo qual fui convidado para participar na ópera "A Querela dos Grilos". É um projeto no qual tenho muito orgulho em participar. Felizmente tem sido um sucesso, cá e também agora em Espanha. A Querela foi uma aposta ganha e o seu futuro será risonho e promissor com toda a certeza, tudo isto graças ao empenho, talento e dedicação dos seus intervenientes.

Podemos dizer que all'Opera é um pouco a "menina dos seus olhos"?
É um projeto que já me acompanhava há alguns anos e que, finalmente, no ano passado conseguimos concretizar. Estamos felizes porque as oportunidades começam a aparecer e o futuro a sorrir. Nos próximos dias 27/28 de março estão já previstos os concertos da all'Opera com a Orquestra Clássica do Sul, um marco importantíssimo para a Companhia, uma vez que é a primeira apresentação com orquestra. É realmente uma significativa evolução e reconhecimento do nosso trabalho e esforço por parte de outras instituições que assim a nós se associam.

Pode apresentar aos nossos leitores os elementos que compõem a companhia?
Somos quatro pessoas, ou seja, eu, o pianista Ángel González, a soprano Sara Braga Simões e o tenor Mário João Alves. Este é o núcleo base mas depois trabalhamos com outras pessoas, como o encenador António Durães e outras pessoas que procuramos integrar aos poucos nos nossos projetos.

Onde o poderemos ouvir em breve?
Estarei a fazer a ópera Banksters do compositor Nuno Côrte-Real em Lisboa no CCB e em Torres Vedras, depois farei uma ópera do Rui Coelho... como vê, o reportório português está sempre presente na minha vida.

Job Tomé

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