Henrique Portovedo. Uma conversa em Aveiro numa manhã de janeiro.
Henrique Portovedo é atualmente conotado como intérprete de música contemporânea. Diz-nos, no entanto, que toda a música o fascina. "Comecei a gostar de música contemporânea pelo facto de poder trabalhar com os compositores. Gosto de organismos vivos. Organismos mortos não me fascinam tanto embora nutra o maior respeito por eles". Assim, Henrique Portovedo trabalhou e trabalha com compositores como Phil Niblock, Philippe Manoury, Flo Menezes, Chiel Meijering, Luís Carvalho, Filipe Vieira, Sara Carvalho, Dominic Murcott, Paulo Ferreira Lopes, Gabriel Jackson, Vergilio Melo, James Saunders, Martin Parker, Hugo Correia, Rolf Gehlhaar, Paul Whitty, entre muitos outros. A sua discografia encontra-se publicada em editoras como Naxos, Sumtone, Universal e R´Roots Productions.
Fala-nos um pouco do teu início no mundo da música. Começaste muito cedo?
Sou muito desatento a esses pormenores... Lembro-me que devia andar pelo 7º ano de escolaridade. Tinha mais ou menos 12 anos, era aluno dos Salesianos de Mogofores (Anadia). Nessa altura fui para o Conservatório de Águeda. Comecei também a minha formação numa banda filarmónica. Embora não seja um filarmónico no sentido mais rigoroso da palavra, reconheço a importância das filarmónicas enquanto escola popular. Mais tarde vim a desenvolver esse conceito no Trinity College London. Eles apostam nessa componente do serviço educativo de uma forma muito evidente. Acabei por ter uma experiência interessante, baseada neste conceito de serviço educativo, na Filarmónica Verdi Cambrense, em que, em vez do habitual ensaio, aquele espaço transformava-se muitas vezes numa aula em que estudávamos excertos de obras e exercícios técnicos.
A tua formação foi sempre clássica?
Sim. A minha formação no saxofone foi sempre clássica. Estudei no Conservatório de Águeda com o Fernando Valente e após a sua morte acabei esse ano em Águeda com o professor Carlos Firmino. Alguém por quem tenho uma estima enorme pois é um grande músico, compositor e pedagogo. Depois vim aqui para Aveiro e concluí essa fase dos meus estudos no Conservatório de Música de Calouste Gulbenkian. Posteriormente fui para a ESMAE (Escola Superior de Música e Artes do Espetáculo), andando também nessa altura, em part time, no Conservatório de Amesterdão com um protocolo de exchange students que me foi facilitado pelo Henk van Twillert. Depois de terminar na ESMAE, fui para Londres.
Durante este período de formação de que falas, houve certamente professores que te marcaram...
Qualquer aluno é fruto das suas experiências e das experiências dos professores que teve. Eu sou um caso paradigmático pois fui aluno de alguns dos meus colegas e maiores amigos de profissão. Nomeadamente o João Figueiredo e o Fernando Ramos. Fernando Valente é um nome incontornável pois é responsável por uma nova geração de saxofonistas que apareceu em Portugal. É evidente que o Henk van Twillert, pensando no espaço cronológico em que ele chega a Portugal, acaba por ser uma pessoa que tem um grande impacto. Aprendi coisas extremamente interessantes com o Henk. Quiçá, a pessoa que mais me fez pensar acerca desta forma de estar na música que adoto hoje em dia foi o Gerard McChrystal. Ele ensinou-me uma coisa muitíssimo importante, que é a questão do intérprete face à música, na sua interpretação. Ele ensinou-me a nunca meter o meu ego à frente do texto musical e da obra de arte primordial que é a música composta. Portanto o Henk van Twillert e o Gerard McChrystal também foram duas pessoas que me marcaram muito.
Mas essa "submissão" ao texto musical e à obra de arte primordial que é a música composta de que falas não implica retirares a tua expressão e o teu contributo enquanto músico para essa mesma obra?
A expressão é inerente à voz de cada instrumentista. Quando nós lemos poesia ou prosa, tudo está muito dependente da forma como articulamos as palavras, com o nosso tom de voz...
A tua formação não se resume ao saxofone pois abordas áreas transversais dentro da música...
Digamos que tenho alguma formação na área da tecnologia da música. O meu trabalho mais recente aborda uma área mais transdisciplinar. Tem a ver com programação de sistemas para composição e interpretação musical em tempo real. Também tive alguma formação na área do jazz com o Mário Santos. Mas hoje assumo-me com uma pessoa com mais interesse na música contemporânea e na música escrita.
A música contemporânea é algo que te fascina? Sempre foi assim?
Toda a música me fascina..., dependendo do contexto onde a vivemos. Acho que isto é comum à maior parte dos músicos. Ao longo do nosso processo de aculturação vamo-nos moldando e seguindo rumos. Comecei a gostar de música contemporânea pelo facto de poder trabalhar com os compositores. Gosto de organismos vivos. Organismos mortos não me fascinam tanto embora nutra o maior respeito por eles. A interação com o processo de composição e de interpretação não é tão fortemente estabelecido.
Embora bastante jovem, já foram bastantes os projetos musicais em que deixaste a tua marca até aos dias de hoje. Enquanto músico e enquanto diretor artístico quais foram os projetos que tiveram mais significado para ti?
Um dos projetos de produção de evento, não tanto ligado à performance mas que tenho que enaltecer é o projeto "Aveiro SaxFest". Este foi e é um festival dedicado ao saxofone contemporâneo que foi também ganhando alguma abertura à área da tecnologia musical e da performance mesmo que não diretamente ligada ao saxofone. É portanto um festival que continua a evoluir. Eu gosto de o enaltecer porque as suas características particulares o tornam diferente. Até aqui nunca foi financiado por entidades públicas. É um festival, cujo modelo de implementação permitiu que a música, desde o jazz à contemporânea, se abstraísse de espaços físicos, ou se preferirem de espaços arquitetónicos próprios para esse tipo de evento musical e passasse a ser vivida numa cidade, em locais que poderão ser, por exemplo, um stand de automóveis. Isto permitiu que a cidade de Aveiro vivesse plenamente um festival. Isto deixou marcas também nos artistas que cá vieram pois inclusivamente "compraram" este modelo de festival para outros países. Um exemplo disso é o Andorra SaxFest. Este festival tem o mesmo método de implementação do "Aveiro SaxFest". Relativamente a artistas, tenho procurado trazer sempre artistas que nunca tenham estado em Portugal ou que realmente sejam artistas de "franja", pois este festival tenta fugir ao mainstream dos festivais de saxofone. Isso valeu-me muitas coisas. Por exemplo, uma delas foi fazer parte do European Saxophone Comité onde figuram nomes como Arno Bornkamp, Lars Mlekusch, entre outros. Enquanto produtor/criador tenho um projeto que se chama "Don´t Shoot the Saxophone Player" e que realizei em conjunto com o Filipe Pereira. Consistia num teatro musical. Tenho também o "Sound of Shadows" que foi várias vezes premiado, pela The Wire Magazine inglesa, que é um standard no mundo inteiro em relação a este tipo de cultura underground, experimental, transdisciplinar e conquistou também o Prémio Jovens Criadores pelo Instituto Português das Artes e Ideias 2012. Se calhar muita gente ainda me identifica com esse projeto. Já fiz muitas coisas... Já produzi para o Festival Imaginarius dirigido pelo Paulo Martins. Na altura foi com orquestra sinfónica, companhia de bailado e vídeo...
A televisão e o teatro também são outras áreas em que te movimentas. São atividades que fazes com gosto, ou acabam por ser obrigatórias num país onde os músicos têm que fazer de tudo, um pouco?
Eu sou um bocadinho diletante. Aliás, assumidamente diletante. Penso que esta coisa da extrema especialização e não sairmos da nossa zona de conforto, é algo que no mundo contemporâneo deixa de ter alguma lógica. Como eu mostro alguma abertura para esses desafios, eles acabam por surgir. Embora goste de música contemporânea e de interpretar música escrita, eu não me fecho nessa clausura.
Voltando ao saxofone, podes dizer-nos quais os projetos em que trabalhas atualmente enquanto solista?
Esta semana vamos estrear um concerto para saxofone do Hugo Correia com quem já trabalho há vários anos, também no FadoMorse, que é um projeto que eu só posso caracterizar como música para instrumentos amplificados pois aborda-se um bocadinho de cada género musical. Eu conheço o Hugo Correia há muitos anos e ele escreveu este concerto para saxofone que vamos estrear com o Luís Carvalho esta semana e que vai ser apresentado depois, no próximo congresso mundial em Estrasburgo. Este é o desafio eminente. Depois, ainda para esse congresso, tenho a estreia de várias obras do Rui Penha, do Igor Silva, do Filipe Lopes, para um projeto que se chama Soundgrounds. Tenho um disco na "forja" com The Lawson Piano Trio. A música para esse disco já está praticamente toda composta. Basicamente, o que estou a fazer é isto. Continuo a ter algumas colaborações com o Paulo Mesquita, com o Nuno Aroso, com o Vítor Rua...
E com orquestra?
Com orquestra acontece muito pontualmente. No universo do saxofone não se vislumbra o mesmo mercado que tem um violinista ou um pianista. Quando surgem recitais com orquestra é normalmente no âmbito de congressos e eventos da especialidade "saxofonística". Muito raramente acontece um concerto fora desse âmbito.
Outra faceta tua é a da transmissão de conhecimento... Atualmente dás aulas?
Eu dei aulas no Conservatório de Música de Aveiro, foi a minha principal escola. Dei aulas também no Instituto Piaget, para além das masterclasses que vão surgindo. Atualmente tenho muitas dúvidas se este modelo de educação nos conservatórios é o ideal. Não querendo ser polémico, acredito mesmo que se tenta reinventar uma roda que já foi mais do que inventada, experienciada e que tantos resultados trouxe até hoje. No ensino do instrumento, eu considero que é muito difícil separar as águas... Seres só professor ou só performer. Penso que quando as escolas pedem 30 horas de permanência efetiva estão a ceifar a carreira artística dos professores. Eu continuo a acreditar que um dos principais elementos de motivação dos alunos é poderem rever-se na forma em que o professor se encontra a produzir. Obviamente que há questões pedagógicas importantíssimas pois é diferente ensinar crianças ou ensinar adultos mas eu não acredito no professor inativo. Temo que este ensino da música tal como agora o vivemos torne as pessoas inativas em termos de produção, seja ela científica, performativa ou composicional.
És um músico que tem mais de 30 obras dedicadas a ti. Isto é fantástico não é?
Como já disse, isso faz parte daquele gosto que tenho de me relacionar com organismos vivos, quer na produção de espetáculos a solo, ou noutras produções intermedia. Claro que as obras vão sendo compostas para esse enquadramento que eu lhe quero dar. É disto que surge este número grande de obras. O número, só por si, não significa muito. O que significa efetivamente são as relações pessoais e profissionais que adquiri com os compositores que escreveram essas obras.
Costuma afirmar-se que um prémio é um excelente cartão-de-visita. Tu já arrecadaste inúmeros... Quais os principais?
Eu acredito em prémios de valorização de carreira e muito pouco em prémios de concursos musicais. Assim, dois prémios que me disseram muito, não pela sua importância no panorama nacional e internacional, mas pelo reconhecimento do trabalho, foram o Prémio de Mérito Artístico Fundação Eng. António de Almeida e o Prémio de Mérito da Fundação António Pascoal. Foram dois prémios que, na altura eram atribuídos ao melhor aluno daquele ciclo de estudos. Não que eu procurasse ser o melhor aluno mas foi o reconhecimento do trabalho desenvolvido. É claro que o Prémio Jovens Criadores do Instituto Português das Artes e Ideias em 2012 e o prémio do Centro Nacional de Cultura pelo projeto Soundgrounds em 2014 são também muito importantes para mim porque valorizam a idealização e a concretização de projetos musicais e não tanto uma performance.
Portugal é um país de muitos talentos na área da música?
Portugal é um país super fértil em talentos. Eu entendo o talento, não como uma facilidade, mas como uma capacidade de trabalho e a nossa cultura diz-nos que nós somos pessoas com muita capacidade de sacrifício e de esforço. Por isso digo que na área musical existe mesmo um património ao nível do talento que é enorme, gigante.
Será assim tão gigante que se torne impossível haver lugar para todos num país tão pequeno?O "não haver lugar para todos" é algo que os países desenvolvidos já sofrem há muitos anos. É evidente que não há lugar para todos quando, a partir das escolas de música formamos colunatos. Se um aluno não procurar e não idealizar uma voz pessoal desde cedo, é claro que se torna difícil haver lugar para todos. As indústrias criativas e a área cultural permitem, precisamente, que qualquer pessoa, independentemente da sua condição social possa aceder a uma carreira e viver do seu talento e do seu esforço. Portanto, se há área em que ainda há futuro e em que as pessoas possam ter uma carreira, é a área das artes que é transversal em todo o mundo.
O que sonhas ainda fazer? Já falámos aqui de tanta coisa...
Eu não sonho muito (risos). Eu sou uma pessoa que, enquanto diletante, vivo um bocado o dia-a-dia. É claro que sou uma pessoa que sofre de "ansiedades" e dessas coisas todas como qualquer outra, mas, de facto, não passo muito tempo a sonhar com coisas. Quando acordo e me lembro de qualquer coisa, o que faço de seguida é pegar no telefone e ligar a duas ou três pessoas a perguntar o que é que acham da ideia e se dá para avançarmos. Portanto, alguns projetos já estão na gaveta há muito tempo e vão saindo da gaveta aos poucos. Posso dizer que irei estar a trabalhar com bastante afinco para conseguir realizar uma tournée internacional de concertos para Saxofone & Ensemble. Esses concertos já estão a ser escritos, portanto irão ser o grande desafio para daqui a 4 ou 5 anos.
Já falámos da tua carreira como músico, como professor... Qual o principal contributo que gostarias de deixar às próximas gerações?
Eu acredito que o conhecimento não tem espaço físico encerrado numa arquitetura própria. O que quero dizer com isto é que eu não acredito que o conhecimento artístico se encerre em instituições. Embora eu viva de trabalhar em instituições, acredito na sua abertura em comunhão com o que é realmente o mercado musical. Nós que viemos da música erudita, acabamos por fazer carreiras sempre ligadas a um certo tipo de institucionalismo quando o mundo musical é muito mais abrangente do que isso. O mundo musical existe a toda a hora e em qualquer lugar. Portanto enquanto inspirador é isto que eu pretendo deixar, ou seja, nós para produzir arte não precisamos de ser validados por instituições, sejam elas universidades ou centros de espetáculos. Dou-te um exemplo que me faz pensar muitas vezes, e se calhar a ti também pelo que me tens apresentado de ti e do trabalho que desenvolves no XpressingMusic. Quando tu ligas o Mezzo TV, há uma quantidade enorme de recitais e de produções que tu vês que obviamente estão ligados a instituições mas a maior parte dos músicos que lá vês não provêm de escolas universitárias ou de fileiras de educação musical e é isso que fascina o público. É essa autenticidade que não é muitas vezes conseguida nas instituições. É essa visão de abertura ao programa artístico que eu gostaria de deixar para o futuro, não enquanto heritage fixo num museu ou instituição mas a acontecer em todo o lugar ao mesmo tempo.
Muito obrigado Henrique por nos teres presenteado com esta entrevista. Para terminarmos, só gostaríamos que partilhasses com os nossos leitores algumas das datas e locais onde te poderão ouvir e ver em breve.
Agora nos dias 7 e 8 de janeiro às 18:00 em Coimbra e Aveiro respetivamente. Irei atuar com a direção musical de Luís Carvalho e a Orquestra de Sopros da Universidade de Aveiro. Vou tocar música de Hugo Correia. Dia 28 de janeiro estarei no Liceu Camões onde farei um recital para Saxofone e Piano para a Antena 2. A 13 de fevereiro estarei em Bruxelas, no meu novo local de trabalho, o Koninklijk Conservatorium Brussel onde leciono performance musical contemporânea e tecnologia das artes.
Sistema de comentários desenvolvido por CComment