Paulo Vaz de Carvalho. A guitarra e a vida numa conversa em Aveiro.
Foi na Universidade de Aveiro que nos encontrámos com o professor e guitarrista Paulo Vaz de Carvalho. Não gosta da palavra "modelo" mas aceita a palavra "exemplo" quando se refere à sua carreira docente e aos seus alunos. Para o nosso entrevistado há modelos a mais. Para Paulo Vaz de Carvalho o que existe de facto são as pessoas e estas precisam de se exprimir. O professor é somente alguém que as orienta para que posteriormente se venham a exprimir em liberdade. O aumento de alunos e de trabalhos para orientar na Universidade de Aveiro são fatores que o têm afastado dos palcos mas promete retomar mais ativamente a sua carreira enquanto performer a partir de março. Ficou ainda no ar a possibilidade de sermos brindados em 2015 com um disco seu.
Nas biografias que temos lido, o Paulo Vaz de Carvalho inicia a sua aprendizagem musical somente após a conclusão do curso de Direito na Universidade de Coimbra... Antes não tinha passado por qualquer processo de aprendizagem?
Eu chego a dizer que não comecei tarde... Comecei tarde demais porque isso constituiu um atraso grande na minha aprendizagem.
Mas durante a sua infância não houve qualquer contacto com a música? Quando é que despertou para esta arte dos sons?
Eu despertei cedo. Despertei tão cedo que até tinha uma guitarra que não tocava. Era daquelas guitarras de brinquedo que havia nas feiras e já naquela altura gostava muito daquele objeto. Mas, de facto, o primeiro relacionamento físico que eu tive com uma guitarra foi já por volta dos meus 5, 6 anos. Assim, de uma guitarra que era do meu avô, fiz um barco e ela despedaçou-se. Foi desaparecendo em peças pelo quintal da casa. Penso que ao longo de todos estes anos se tem consumado a vingança da guitarra. (risos)
Mas em sua casa havia música?
Havia música, havia um velho Schaub-Lorenz onde eu ouvi o Dinu Lipatti, sinfonias de Beethoven, alguns discos do Carlos Paredes e do Artur Paredes e essa foi uma aprendizagem que me marcou muito. Essa aprendizagem pelo gira-discos de baixíssima qualidade, à parte das desvantagens que tem, trouxe-me uma vantagem que era: a música que eu ouvia tinha duas origens, ou seja, uma guitarra portuguesa que cantava e depois as orquestras e os pianos.
Essa discografia de que fala era dos seus pais?
Era do meu pai que tocava guitarra portuguesa. Mas aí eu já tinha uns 9 anos quando o meu pai apareceu com a primeira guitarra portuguesa lá em casa e eu fiquei a saber que o meu pai tocava. (risos) Foi uma coisa muito bonita, o meu pai aparecer com uma guitarra muito modesta de nogueira e com o tampo de tília, das mais baratas que havia. Desembrulhou-a do papel pardo daquele com que se embrulha o bacalhau, a guitarra já vinha praticamente afinada, ele fez mais uma pequena afinação e tirou aqueles primeiros arpejos muito vivos, pois ele tinha uma mão muito elétrica. E foi uma alegria muito grande ouvir aquilo mas nunca me apaixonei pela guitarra portuguesa. Depois quando apareceu a viola, eu tinha para aí uns 10 anos e eu inclinei-me logo para a viola. O meu pai fez de mim metrónomo pois eu dava-lhe um grande jeito a acompanhar a guitarra portuguesa.
Mas então havia abertura por parte dos pais para que prosseguisse uma vida mais ligada à música?...
Não. A música era mesmo um entretém, um divertimento... Havia uma espécie de um vaticínio de que eu iria ser um advogado como o meu pai e isso foi um estorvo para a minha vida como pode imaginar.
Acabou mesmo por fazer então Direito em Coimbra...
Eu fiz o Direito e ele "desfez-me" a mim (risos).
Era um tempo muito diferente. Se calhar hoje em dia, quando um filho chega a casa e diz que quer ser músico, o choque já não é tão grande...
Os entraves eram terríveis. O país e o mundo vistos de uma cidade de província nos fins dos anos 60 e princípios de 70 eram uma coisa muito diferente do que hoje são.
Estamos a falar de Vila Real...
Estamos a falar de Vila Real mas não da Vila Real de hoje. Falamos de uma Vila Real que era um "burguinho" com meia dúzia de funções administrativas, indústria artesanal e uma vida baseada em poucas operações. Havia uma senhora Dona Francisca Brandão e Dona Francisca Varejão que ensinavam piano mas nunca me passou pela cabeça aprender piano pois não achava qualquer piada àquele móvel.
Não havia coletividades que ensinassem cordas?
Não. Já não havia tuna. A tuna já tinha morrido há muitos anos. Os meus avós tinham pertencido à tuna. Portanto a aprendizagem de um cordofone, fosse ele qual fosse era coisa tratada entre amigos, passava de geração em geração, de casa em casa mas sem o mínimo de alinhamento para se seguir música. Isto acontecia em oposição ao que acontecia com os instrumentos de sopro. Esses já eram sujeitos a uma disciplina. À disciplina das Bandas Filarmónicas que tinham uma organização interna, na altura, tão boa como hoje qualquer conservatório ou escola superior de música só que o mestre tinha que saber vários instrumentos, mas sabia as bases primárias daquilo tudo. Nas cordas não acontecia isso. Era pura e simples intuição.
Sentiu então na pele o facto de ser transmontano naquele tempo...
Ao ponto de nem acreditar que houvesse ambientes em que acontecesse essa aprendizagem. Eu não sabia que isso existia.
Se é que há então uma vantagem de ter ido estudar para Coimbra foi a possibilidade de aprender e de tocar com outros colegas...
Sim. Coimbra teve esse encanto. Os meus contactos com a aprendizagem dos instrumentos de corda foram rigorosamente estes: dois discos do Andrés Segovia, um LP sobre Bach, também do Segovia, dois EP's do Rui Pato, com quem vou tocar amanhã e um LP de um artista flamenco do qual não me estou agora a lembrar do nome. Eu ia rodando esses discos e ia copiando de "orelha". Imitava as expressões do Segovia, dos Paredes, do Rui Pato e ia deixando a marca da minha natureza. Nesta altura eu teria uns 16 anos.
Que idade tinha quando assistiu à sua primeira aula de guitarra?
Talvez uns 19 ou 20 anos com o professor Fernando Lencart, no Porto... Aliás, minto, antes do professor Fernando Lencart, tive uma aula com o professor Manuel Lourenço Ribeiro da Silva, irmão do pianista Paulo Ribeiro da Silva, que me ensinou 3 ou 4 tópicos da técnica de guitarra que ainda hoje utilizo, não foi preciso mais ninguém ensinarmos. Estavam muito certos pois ele tinha uma formação que, embora não muito avançada, era muito sólida. Ele era muito musical.
Teve então a sorte de ter passado por essa experiência com um mestre que lhe deixou algo que ainda hoje utiliza...
Depois passaram muitos outros mestres durante o meu curso de Direito. Durante o meu curso de Direito tive umas 4 ou 5 aulas com o professor Fernando Lencart. Era um homem muito importante no Porto que frequentou alguns cursos do Andrés Segovia em Santiago de Compostela mas que tinha uma técnica muito diferente da do Segovia. Tocava bem. Muito bem! Nessa altura até deu para conhecer (de vista) o alaúde e a vihuela. Foi muito útil esse contacto com o professor Fernando Lencart. Foram umas 4 ou 5 aulas na Escola de Música do Porto. Deram-me pistas de boa sonoridade, de uma técnica mais escorreita em alguns aspetos e começaram a prender-me à ideia de ler uma partitura. Até então era absoluta "orelha". Há uma Sonata de Scarlatti que ainda hoje toco - é uma espécie de fetiche sonoro que tem essa Sonata em Mi menor - que eu aprendi de ouvido a partir do disco.
E quando é que começa a aprendizagem formal?
Muito tarde. Seria até vergonhoso eu dizer como é que foi... Eu nunca tinha andado em nenhuma escola e um acaso levou-me a Viena. O António Victorino D'Almeida tinha que fazer uma gravação para teatro e tinha que a fazer em Viena. Eu tinha acabado o curso de Direito há uns três meses, estava a iniciar um estágio, aliás ainda cheguei a fazer três quartos de hora de estágio (risos), com sacrifício mas fiz... (risos). Fui então a Viena e por acaso havia exames de admissão à Academia de Música de Viena e eu fiz exame e entrei. Estive lá dois anos, toquei em audições e tudo. Viena enquanto cidade não me agradou muito pois o nível de vida era brutalmente alto e a minha bolsa era inferior ao subsídio de mendicidade. Depois mudei-me para França. Aí o meu ensino formal foi no Conservatório de Aulnay em que estudei só guitarra.
Voltando um pouco atrás... falou-nos da bolsa que teve para estudar em Viena. Visto não vir do mundo musical, foi fácil conseguir essa bolsa?
Foi porque eu estava inscrito na academia em Viena. Eu concorri em janeiro, entrei e matriculei-me. A matrícula era muito baixa para alguns países. Quando vim a Portugal pedi uma bolsa trimestral (foi o que me aconselharam) já como inscrito. Deu-se então ali uma cambalhota muito rápida em que eu, de absoluto marginal, passei a ser aluno da Academia de Viena. Foi algo que me abalou. Fiquei deslocalizado.
Nessa fase da sua vida como é que foi encarada toda esta situação pela sua família? Uma pessoa que acaba o curso de Direito e vai estudar música...
Aí o fenómeno inverteu-se um bocadinho porque as veleidades de eu ser advogado acabaram mesmo. Então a guitarra em vez de ser um apêndice de marginal passou a ser símbolo de um geniozinho, o que se desculpa perfeitamente. A partir daí passaram a ter todas as expectativas... as que eu podia dar e as que eu não podia dar. Portanto, a partir desse momento, as pressões para ser advogado acabaram.
Ao mesmo tempo que estudava já ia tocando, ou seja, ganhando a vida como músico?
Sim. Eu era um daqueles músicos de "vão de escada" (risos). Dava aulas na Tuna Académica, em casas comerciais que tinham ensino instrumental, na minha República, no Palácio da Loucura... Era uma vida assim estranha mas eu sobrevivia já com a música. A música já era o meu meio de sobrevivência em Coimbra.
Quando regressa de Paris? É imediatamente a seguir à conclusão do seu curso? Ainda trabalhou por lá?
Não. Nunca trabalhei em Paris embora tenha tido alguns alunos a nível particular. Um deles vim a saber que se formou em guitarra. Era muito pequenino e filho de pai português. Quando cheguei a Portugal continuei a estudar porque eu fiz guitarra mas tinha que fazer cadeiras paralelas que fiz no Conservatório do Porto e depois concorri para um Mestrado em Ciências Musicais em Coimbra. Entrei e fiz um trabalho de investigação sobre a vida e a obra de António da Silva Leite que era um guitarrista de guitarra portuguesa do século XIX. Isso desviou-me um pouco para o ambiente universitário.
Depois acabou por vir para aqui, para a Universidade de Aveiro anos mais tarde... Está cá desde o início dos cursos de música?
Sim. Vim para cá antes do princípio (risos). Foi uma coisa muito bonita. Eu toquei nuns encontros de música contemporânea da Gulbenkian, foi um acaso, eu estava a trabalhar num CIFOP em Vila Real para a formação de professores do ensino primário e ensino infantil, coisa que não me atraía muito nem puxava muito pelo meu brio, sejamos sinceros, pois no fundo eu almejava ensinar guitarra. Nessa altura até fundei com um grupo de amigos a primeira Academia de Música de Vila Real da qual saí depois. O que eu gostava era de ser professor de guitarra. Deu-se então esse acaso de eu estar a tocar com o grupo "Música Nova" com o Cândido Lima e o Amílcar Vasques Dias ouviu e no dia seguinte encontrámo-nos no comboio. Ele disse "ainda bem que te encontro, estou a fazer isto em Aveiro e precisava de alguém como tu". Felizmente a turma foi crescendo. O primeiro aluno que tive é ainda hoje considerado por mim como uma pessoa da mais fina sensibilidade no campo da guitarra, que é o Miguel Lelis. Foi ele a primeira pessoa a inscrever-se no curso. Ele já vinha muito bem preparado. Portanto, isso deu-me logo uma responsabilidade muito grande. Ser professor do Miguel Lelis. A turma foi crescendo, solidificando-se, embora nos primeiros anos, e isso foi um vício que se projetou durante muito tempo, houve uma certa facilitação devido ao facto de este curso se destinar a formar professores do ensino não vocacional. Isso levava a que os programas fossem um pouco mais ligeiros, não se puxando tanto pela qualidade. O Miguel Lelis é uma exceção a isto. Mas, à medida que os conservatórios foram aceitando alunos saídos daqui as coisas foram acontecendo.
O que tem mais relevância e peso no Paulo Vaz de Carvalho? O instrumentista, o professor, o compositor...
O compositor não tem importância de espécie nenhuma, ou melhor, tem uma importância existencial enorme. Digamos que eu não trocava a liberdade de compor por coisa nenhuma. As minhas obras não têm importância de espécie alguma. As minhas composições são absolutamente livres e algo que nasceu à volta do teatro desde os primeiros tempos de Coimbra. Compus um primeiro trabalho para uma peça que se chamava "Nasceu Vilão, foi Jogral" encenada pelo José Barata no TEUC. A música foi feita por mim, tocada por um grupinho de câmara pequenino que emulava uma ambiente de música antiga, renascentista e barroca, talvez... Foi ditada por mim ao Aníbal Pires que sabia escrever música e eu não sabia. Considero curioso que o amor às artes gere assim fenómenos tão desequilibrados como este. Quem ouvisse a música, até já parecia "compostinha", composta por um estudante de música, mas não, eu era analfabeto. Depois continuei a compor para teatro, ainda compus bastantes peças. De algumas ainda aproveito a experiência. Hoje em dia ainda tenho a mania que componho. O tempo é muito pouco e os deveres são muitos.
A carreira docente absorve-o muito...
Absorve porque há reportórios difíceis para orientar, há um trabalho minucioso de construção e reconstrução da técnica dos alunos para eles seguirem para a frente, depois há a leitura de trabalhos, tanto ao nível das licenciaturas como das pós-graduações, sendo que estas últimas contemplam leituras muito próprias que absorvem muito tempo. Isto traz alguma amargura também porque fica pouco tempo para tocar e pouquíssimo para escrever. Eu gostaria de ter tempo para escrever mas, mais do que escrever, para estudar as bases da minha escrita.
Do que nos vamos apercebendo à medida que o vamos conhecendo melhor, ficamos com a ideia de que é alguém que, embora tenha passado por vários contextos aliados a outras tantas cidades, Vila Real é para si a "terra mãe", aquele lugar em que sente que pode ter um papel transformador e que se distancie daquela terra onde, no seu tempo, era muito difícil ter acesso à cultura e à educação artística. Já falámos há pouco da Academia que ajudou a fundar, mas também houve e há outros projetos onde contribui e contribui com o seu talento e experiência...
Essa Vila Real do meu tempo felizmente já não existe. Lisonjeia-me saber que fiz parte da primeira comissão instaladora para que houvesse ensino de música formal em Vila Real. Estive por lá muito pouco tempo porque depois as coisas acabaram por seguir um caminho próprio e não era aquele que eu desejava e portanto separámo-nos, o que é natural pois essas coisas acontecem muito. Mais tarde essa academia acabou por encerrar e deu lugar a uma outra já perfeitamente formalizada e depois, por sugestão minha, acabou por se formar um Conservatório Regional de iniciativa camarária. Mas aí já não fiz parte. Aproveitaram a ideia mas não o "idiota" (risos). Este é um bom conservatório com bons professores e já coloca alunos em sítios bastante importantes.
No que concerne à vida cultural de Vila Real... Tentou levar sempre música até à cidade?
Duas das peças de teatro para as quais escrevi música foi com uma companhia de teatro de Vila Real.
O Paulo Vaz de Carvalho dá mais importância às conquistas e ao seu percurso até estas do que propriamente ao caminho que é posterior à conquista. Concorda?
Há aquela expressão latina "ite seminare" de que tanto gosto e que reflete precisamente o "ir para semear". São palavras que refletem o fazer de um mestre ou de alguém que tem alguma convicção. Ainda hoje se passou isto aqui nesta sala. Há umas duas horas eu dizia a um aluno: "Pronto, isto é assim. Assim vai funcionar, agora são as tuas horas". Considero que passar a outra pessoa, a um curioso, o princípio gerador de um tecido é que é importante, não o ficar a assistir e a insistir com o aluno para que ele seja alguém na vida, para que ele toque muito bem, para que ele ganhe o concurso... Eu não faço isso por vício de formação minha. Se eu toco, é porque desejei intensamente tocar. Estou profundamente convencido de que o mundo musical não precisa de pessoas a quem não apeteça tocar. O mundo não precisa dessas pessoas. Há muita gente que deseja intensamente tocar, ou cantar, ou dirigir e que não tem onde nem emprego para isso. Estar a pedir a uma "criancinha" de 20 ou 25 anos para me fazer o favor de tocar porque o pai está a pagar propinas... eu não faço isso. Se calhar com prejuízo para alguns alunos que bem amestrados até poderiam fazer alguma coisa.
Talvez essa convicção lhe venha do facto de ter tido que lutar muito para conquistar m sonho que só mais tarde veio a ver concretizado...
Eu não conquistei o sonho. Nem de longe nem de perto. Fiquei muito aquém daquilo que esta maquineta chamada Paulo poderia ter dado, ou poderia vir a dar. De facto, até aos 18 anos não tive nenhum contacto musical que não fosse do mais liberto amadorismo, as coisas são o que são. Mas ficou-me daí uma espécie de fobia por esta gente que não tem apetite de tocar e a quem são dados meios de informação brutais, gigantescos que na altura seriam considerados dilúvios de informação. É-lhes dado isso e eles dizem: "Eu não gosto assim, gosto com um bocadinho mais de canela". Não. Eu não tenho paciência para isso.
Agora que entramos nesta reta final da nossa entrevista gostaria que nos desse a sua opinião relativamente ao caminho que temos trilhados enquanto país nestes últimos anos no que concerne à criação e formação de públicos. Estamos no caminho certo no âmbito da formação artística? Estará a escola a formar públicos? Será o investimento que se tem feito no ensino artístico inversamente proporcional ao que tem sido feito nas escolas do ensino básico para formar públicos, ou seja, estaremos a criar mais artistas do que propriamente públicos para os ouvir?...
Essa pergunta é muito incómoda e muito boa. Nem precisa de resposta. Basta fazer-se a pergunta para provocar logo uma reação. De facto, o conjunto dos professores e a tenacidade dos professores fizeram o ensino atual. Por exemplo, o ensino profissional de música foi qualquer coisa que nasceu de um golpe de oportunismo muito interessante. Um grande maestro que é o Borges Coelho aproveitou a ideia do ensino profissional e propôs que esse se aplicasse à música e daí saiu um alfobre de gente de se lhe tirar o chapéu. Está fora de dúvida que essa escola tinha que aparecer. O Ensino profissional está moldado exatamente de acordo com duas necessidades: a de formar músicos a tempo, a tempo de aos 20 anos estarem a disputar concursos com um grande reportório e, por outro lado, evitar que o músico fosse um "dedilhador" sem formação intelectual de espécie nenhuma. Na tradição antiga, grande parte dos músicos vinham das bandas filarmónicas e depois faziam o estudo do conservatório e não ficavam com uma ideia de cultura. Com a gente que vem do ensino profissional já não acontece isso. Aliás, uma das provas que eles prestam no final do curso que é uma PAP, ou seja, uma mini dissertação sobre um tema qualquer, que embora modesta, é importante. São portanto gente que integra a sua música num plano cultural. Quanto à formação dos públicos, embora julgar seja o que for é muito perigoso, eu julgo que a formação dos públicos é uma qualquer coisa muito difícil porque há concorrência da televisão caseira que é cómoda e é barata, tem cores, agrada à família toda ou mesmo desagradando a quase toda, há sempre alguém a quem agrada. Sair para ouvir música é incómodo, a noite está fria... e os públicos, mesmo assim estão-se a multiplicar. Estão-se a multiplicar por força dos milhares e milhares de meninos e meninas que vão ao conservatório ou à academia de música e que chegam a casa e depois querem ir ao concerto. Julgo que é essa juventude que que está a redimir a atmosfera musical. Por um lado os pais e os irmãos mais velhos vão para ver os meninos, por outro ficam e depois querem ir outra vez. Claro que fazer revoluções muito grandes não é seguro. Vão ser décadas de construção desse público.
Estamos então a trilhar o caminho certo. Pelo que me diz, os conservatórios e as academias estão a ter esse impacto que nos diz...
Não tenho dúvida nenhuma de que está a ter impacto. Nuns sítios mais, noutros menos. A norte de Portugal, onde as noites são frias e é mais difícil sair à noite, mesmo assim lembro-me, mas isso já foi há uns anos, de conseguir fazer serões em Vila Real com 60 ou 70 pessoas. Constituiu mesmo um desafio. Foram uns encontros que fizemos lá. Havia o Festival de Mateus, um festival rico com nomes internacionais, durante o verão, num palácio... E eu, não fazendo concorrência, experimentei fazer um festival no inverno e dentro da cidade e tínhamos sempre entre 60 e 70 pessoas a assistir. Mas há outros inimigos implacáveis como as transmissões desportivas e nesse campo cabe ao gestor cultural tentar contornar datas e horários desse gigante que não conseguimos combater. Há também outros fatores... As pessoas trabalham. Estão cansadas e a noite é para descansar. São também muitos anos, ou melhor, muitas décadas de uma vida de rotina em que não está nos programas "conviver". Considero que o conceito de agregado familiar, muitas vezes ganha um peso excludente. Gosto mais dos espanhóis nesse aspeto. Reservaram o fim de tarde para ir comer uns pinchos e nessas pequeninas sandwich, conseguem conviver, trocar ideias e dar uma chance à convivência não familiar. A família vem a seguir e vem muito bem e está muito bem. Admiro portanto os espanhóis por serem assim. É quase um enigma pensar porque é que em Portugal não é assim. Porque é que em Portugal as pessoas saem do emprego e se fecham em casa à chave e faltam a tudo. Faltam inclusivamente à vida para ficarem a escabecear contra um écran de televisão.
Certamente terá sonhos ainda por concretizar. Pode partilhar com os nossos leitores quais ainda gostaria de realizar?
Há um sonho que tinha até agendado para este ano... Gravar. Eu não sei se gosto suficientemente do resultado do que faço que me leve a editar... mas pode vir a acontecer e com alguma brevidade. Gostava também de escrever mais. Nos tempos que correm parece-me que se está a abrir, ou que se está a reconhecer que a escrita musical pode não ser exclusiva desses grandes líderes, que serão sempre os líderes, não tem mal nenhum, isso. Mas dá-me a sensação que está a acontecer à escrita musical o que sempre aconteceu na escrita poética e na literatura. As pessoas escrevem literatura. Em Portugal, um empregado de escritório escreveu a obra mais monumental de poesia. O Saramago foi bate-chapas, depois foi jornalista... Não há uma coincidência absoluta entre o escritor e o estudioso de literatura. É claro que não estou a receitar a ignorância a ninguém. Na música há mais exclusividade. Há a aquisição da qualidade de compositor e parece-me que neste momento há muita gente que não quer ser compositor a "full time", que não tem nada a ver com as grandes linhas de orientação da composição mas que compõe, como quem faz os seus versos, como quem pinta os seus desenhos... Nessa perspetiva eu quero fazer mais algumas coisas. A composição tem um outro lado que é o de um meio de expressão, de realização não profissional também. Nesse quadro é que eu vejo o meu desejo de compor. Não estou a dizer que não estudo composição mas não é um objetivo ser compositor. Mas compor é uma necessidade.
Muito obrigado por nos ter concedido esta entrevista que será certamente lida por muitos dos seus admiradores e até muitos dos seus alunos que, quando lhe falamos de si, se torna notória a satisfação que demonstram por o terem tido como mestre.
Eu é que agradeço porque ao entrevistarem-me estão a dar-me uma importância num ambiente... e eu não podia acabar esta entrevista sem referir isto... Tocar guitarra, já é uma coisa muito natural em Portugal. Há muitos guitarristas para entrevistar que estão a obter menções de destaque no país e no estrangeiro, a fazerem carreiras internacionais e que não são necessariamente meus alunos. São alunos de outros colegas meus. Colegas com quem muito aprendo e aos quais "copio" muitas coisas. E aqui reside outro aspeto muito gratificante, porque é gente nascida, vou dizer aleatoriamente, na Guarda, Castelo Branco, Lisboa, Porto e em Lisboa e Porto já havia pois as suas escolas sempre foram muito bem estruturadas. Isto reflete as mudanças operadas no Portugal democrático. Esse crescimento na guitarra é um crescimento paralelo ao da medicina, da engenharia, das letras, de tudo. Portanto falamos de obra do 25 de Abril.
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