O percussionista Jean-François Lézé passa em revista 20 anos de trabalho em Portugal.

Jean-François LézéJean-François Lézé chegou há 20 anos a Portugal. Recorda-se como se tivesse sido ontem. Nesta entrevista, em jeito de comemoração, revisitamos a sua vida artística que tem sido recheada de êxitos. Fala-nos da evolução da música e dos músicos em Portugal e da sua participação neste contexto. Jean-François Lézé encara a criação artística como uma só e considera que "A música deve ser sentida, intencional, consciente ou inconsciente, intelectual, emocional, improvisada, ensaiada e vivida". A música, para o nosso entrevistado, "corresponde a um gesto, um som caraterizado pelo propósito intelectual ou a intenção emocional".

Jean-François Lézé, esta entrevista surge no ano em que se cumprem 20 anos de residência artística em Portugal. O balanço que faz desta experiência no nosso país é positivo? Assistiu a uma grande evolução da música e dos músicos... Concorda?
20 anos já... o tempo voa! Cheguei a Lisboa no dia 31 de Agosto de 1994. Lembro-me do calor naquele dia, era quase insuportável! O Paulo Gaio Lima foi-me buscar ao aeroporto e, em francês perfeito, fez-me descobrir Lisboa. Aliás, todos os novos músicos, sopros e percussão, que ingressaram na Orquestra Metropolitana de Lisboa naquela altura, foram "acolhidos" por um músico das cordas destacado para o efeito. Fomos todos muito bem recebidos, bons tempos!
O balanço que faço é muito positivo. Percorri Portugal e ilhas, descobri um país encantador, que tem e continua a ter cantos e recantos magníficos, instituições notáveis, festivais e salas de concertos com ótimas condições. Conheci muitos músicos, compositores, maestros, artistas, pessoas ligadas às artes e não só. Lembro-me, por exemplo, da Expo 98, onde tive a oportunidade de atuar, tanto na orquestra como a solo, com a Companhia Portuguesa de Bailado Contemporâneo, do coreógrafo Vasco Wellenkamp. Descobri também o mundo do Circo e as artes circenses no Chapitô, na companhia da Teresa Ricou, onde apresentei uma série de recitais de Música de Câmara e a solo. Aprendi uma língua difícil mas tão bonita de falar e de escrever!
Assisti a uma grande evolução da música e dos músicos, sem dúvida. Há 20 anos atrás, não havia tantas escolas do ensino especializado de música. O surgimento de escolas nos diferentes níveis de ensino, proporcionou uma evolução significativa dos músicos, dos professores e dos alunos.
Na Academia Nacional Superior de Orquestra, instituição de ensino superior onde foi criado o primeiro curso de licenciatura de Instrumentista de Orquestra, muitos professores eram estrangeiros e formaram os "novos" professores portugueses da atualidade. Foi também na década de noventa que as escolas profissionais de música surgiram e se desenvolveram em Portugal. Foi graças a esses estabelecimentos que o número de alunos a ingressar no ensino superior aumentou exponencialmente e onde se iniciaram na aprendizagem musical alguns dos mais destacados músicos portugueses. Jean-François LézéDesde então, houve algumas reformas ao nível dos cursos superiores (bachalerato, licenciatura, mestrados etc...) e, hoje em dia, o número de músicos com licenciaturas, mestrados e doutoramentos é muito superior ao da altura. Outras áreas que evoluíram consideravelmente foram a da composição e da direção de orquestra. Atualmente temos maestros e compositores portugueses de grande qualidade a trabalharem em Portugal e no estrangeiro, tais como o Rui Pinheiro ou o Pedro Neves, com quem tive o prazer de trabalhar.

Timpaneiro, percussionista, pianista, professor, compositor... Considera que esta sua versatilidade se constituiu sempre como uma vantagem? Como se define enquanto músico?
Timpaneiro e percussionista fazem parte do mesmo percurso, a mesma formação académica e profissional. As primeiras aulas de piano foram com a minha mãe. Foi ela quem me incutiu a prática e estudo diários e a quem, muito agradeço. Sou professor desde 1994, data em que iniciei o caminho pedagógico com os meus primeiros alunos que muito me ensinaram e contribuíram para a aprendizagem e o gosto pela língua portuguesa. Compositor... é talvez a atividade mais recente, se considerarmos a composição como um todo: compor, editar e ser tocado. Tive a sorte de receber várias encomendas de músicos, agrupamentos e instituições que me deram o prazer e a oportunidade de poder ouvir a minha música.
A versatilidade a que se refere foi conscientemente alimentada e trabalhada ao longo dos anos. É uma herança pedagógica dos meus professores com quem aprendi as mais-valias de tentar ser um músico o mais "completo" possível. Por isso, não considero a versatilidade uma vantagem mas sim uma riqueza artística. Procuro mover-me através de vários mundos: a orquestra, a pedagogia, a composição e o piano.
Não é fácil definir-me enquanto músico mas gosto de pensar que sou um músico trabalhador, curioso, atento, disciplinado e sempre à procura de fazer melhor.

Estudou no Conservatório Nacional Superior de música e Dança de Lyon. Quais as principais diferenças que encontrou em Portugal relativamente ao ensino da música em França?
Em 1994, as principais diferenças eram o nível instrumental praticado, o menor número de professores, de escolas e de apostas pedagógicas para a formação no ensino da música. Apesar da minha chegada coincidir com Lisboa Capital Europeia da Cultura (1994), também considerei na altura que havia bastante a fazer ao nível de redes culturais e parcerias entre instituições.

Jean-François LézéFrançois Dupin, Georges Van Gught e Roger Muraro são nomes que estarão sempre presentes no seu trabalho pela influência que exerceram sobre o Jean-François Lézé?
Sem dúvida alguma, pelo ensino transmitido, pelo exemplo e postura em palco, pelo trabalho, dedicação, carreira artística e sobretudo pela dimensão humana. Foram grandes mestres para muitos percussionistas e pianistas franceses e estrangeiros. Cada um na sua área, François Dupin na Orchestra de Paris onde trabalhou com Karajan, Abbado ou Solti; Georges Van Gught fundador das Percussions de Strasbourg, amigo do Xenakis, Cage e Glass; Roger Muraro que é considerado o especialista da música para piano de Olivier Messiaen. Estão sempre presentes nas minhas aulas, nas minhas composições e quando subo ao palco.

O que faz o solista convidado das Orquestras da Opéra de Lyon, Orquestra Nacional de Lyon e da Filarmónica de Montpellier vir para um país como Portugal?
Em 1994, na fase conclusiva dos meus estudos superiores, era freelancer nas orquestras mencionadas na sua pergunta e tive a curiosidade de participar no concurso para a vaga de Chefe de Naipe de Percussão da Orquestra Metropolitana de Lisboa. A OML recrutava sopros e percussão para alargar a já existente orquestra de cordas. O que mais me atraiu foi o facto daquele concurso se realizar em quatro cidades de diferentes países (Lisboa, Paris, Amsterdão e Nova Iorque), o que tornou este concurso de orquestra um verdadeiro desafio internacional. Após ter conseguido a vaga no concurso em Paris, lembro-me ter perguntado ao meu professor François Dupin se conhecia Portugal e o que achava deste pais. Ele disse-me "Ah le Portugal! C'est superbe et les gens sont trés sympathiques." Não hesitei.

De 1994 a 2002, residiu em Lisboa e foi timpaneiro, Chefe de Naipe, da Orquestra Metropolitana de Lisboa. Paralelamente a esta carreira artística dava aulas em inúmeras instituições. Foram anos de trabalho muito intenso? O que recorda com maior veemência destes anos e destas experiências?
Foram mesmo. O projeto inicial do Miguel Graça Moura era único na Europa e no mundo, creio eu. O músico da orquestra era também professor e apresentava-se em recitais solo e de Música de Câmara. Eram muitas atividades mensais e uma dose considerável de trabalho a fornecer. Foi sem dúvida uma grande "escola" para mim, aprendi imenso. Aprendi a ser timpaneiro de orquestra, a tocar a solo com orquestra, a ser professor com os meus primeiros alunos (Rui Sul Gomes, Lúcia Moniz, Pedro Silva, Rui Rodrigues, Francisco Sequeira), a fazer concertos comentados em Português nos mais diversos palcos.
Recordo-me e destaco as digressões com a Orquestra Metropolitana, como as três semanas no Oriente; a primeira vez que toquei a solo com orquestra, o Concerto para Percussões e Orquestra de André Jolivet com a direção de Jean-Sébastien Béreau; o duo com Artur Pizarro nos Açores; a estreia do Concerto para Marimba, Vibrafone, piano e Orquestra de e com Bernardo Sassetti; as improvisações com o Mário Laginha e a Maria João; o sucesso dos meus alunos aquando da atribuição em concurso dos lugares de solistas das Orquestras Sinfónica Portuguesa e Nacional do Porto, e o mais importante, do nascimento das minhas filhas Sara e Beatriz.

Sente-se como um dos grandes responsáveis pela criação de uma nova geração de percussionistas portugueses? Quais as principais características que tenta transmitir aos seus alunos para que estes sejam músicos de excelência?
Sinto que contribuí para a criação de uma nova geração de percussionistas portugueses de orquestra. A licenciatura de instrumentista de Orquestra da ANSO era a ferramenta que tinha à disposição para esta tarefa e tinha as condições ideais para promover a formação dos alunos através da Orquestra Metropolitana. Em 1994, as percussões em Portugal resumiam-se, quase exclusivamente, ao notável trabalho na música de câmara desenvolvido por Miguel Bernat e às percussões de orquestra na ANSO.
Aos meus alunos, tento incutir o sentido de responsabilidade, a curiosidade, a autocrítica e autoconfiança, a disciplina, a importância da(s) diferença(s), a necessidade de riqueza cultural, o trabalho diário e, sobretudo, a importância de ter e procurar alcançar os objetivos, os sonhos e ser feliz.

Jean-François LézéDesde 2002 que é timpaneiro, Chefe de Naipe, da Orquestra Sinfónica do Porto Casa da Música. Quando foi de Lisboa para o Porto sentiu muitas diferenças na cidade, nas pessoas e na forma de trabalhar dos seus colegas?
Senti. Lisboa tem "aquela luz", o Porto tem charme. São duas cidades completamente diferentes mas ambas lindas à sua maneira. No Porto sente-se um ambiente mais "bairrista", mais familiar e tranquilo. Relativamente às pessoas e à forma de trabalhar, na minha opinião, as diferenças prendem-se às instituições e não às cidades. É claro que a essência de uma cidade ou outra pode influenciar as condições de uma ou outra instituição no que diz respeito as questões laborais, culturais, educativas e artísticas. Vivi muitos momentos felizes em Lisboa e estou a viver outros no Porto, com colegas diferentes, em instituições diferentes. Penso que devemos sempre adaptarmo-nos às condições que nos rodeiam e continuar o nosso trabalho da melhor forma e qualidade possíveis.

Onde se encontra a lecionar atualmente?
Na Escola Profissional de Música e na Academia de Música de Viana do Castelo.

Não segmenta a música que interpreta e produz pois movimenta-se em ambientes tão diversos como a música erudita, o Jazz e as músicas do Mundo. Vê a música como uma só?
Não. Vejo a criação artística como uma só. A música deve ser sentida, intencional, consciente ou inconsciente, intelectual, emocional, improvisada, ensaiada e vivida. A música para mim corresponde a um gesto, um som caraterizado pelo propósito intelectual ou a intenção emocional. O facto de compor ou tocar diferentes músicas tem a ver com a necessidade de expressão artística pluricultural. Perceber os estilos e as linguagens musicais, fundi-los, destacá-los, misturá-los e influenciar a próxima criação é, para mim, o equilíbrio artístico que procuro.

Tocar em países como Espanha, Bélgica, Holanda, Luxemburgo, Itália, Alemanha, China, Japão, Tailândia, Índia e Coreia do Sul é encarado pelo Jean-François Lézé como uma forma de aprendizagem natural em que a absorção artística e cultural acontecem de forma espontânea enriquecendo-o como músico e como ser-humano?
Claro. Tive a sorte de viajar e tocar no estrangeiro onde pude vivenciar outras realidades que me influenciaram enquanto músico e compositor. A experiência da viagem promove a aprendizagem e a reflexão sobre aquilo que somos, o que queremos ser e onde queremos ir. Conhecer outras realidades, outras culturas e modos de vida ajudam a tomar consciência do que somos, a respeitar o outro e olhar para nós e para o mundo com outra perspectiva.

Jean-François LézéPara além do músico e do professor, existe ainda o compositor. A sua música é interpretada na Europa, nos Estados Unidos e no Japão e é editada em Portugal, França, Suíça. Sente que está a deixar um legado às gerações vindouras? Quando compõe, pensa que está a deixar uma marca, uma pegada na história da música?
Não diria tanto! Quero simplesmente deixar o meu contributo para as presentes e futuras gerações, para os colegas e amigos que gostam da minha música, para a comunidade artística. Há sempre a esperança de "tocar" a imortalidade na criação artística mas os imortais na música são Mozart, Beethoven e Mahler!

É fundador do Festival Internacional de Percussão "Real Percussões", do qual é Diretor Artístico. Quais os principais objetivos deste festival? O que pretendia ao criar esta iniciativa?
Infelizmente, só conseguimos uma edição, em 2004. Entretanto, os tempos difíceis encarregaram-se de dificultar a repetição do evento. Conseguimos alcançar os objetivos que tínhamos na altura, ou seja: 1) criar um evento à volta das percussões para promover o encontro entre alunos, professores e solistas internacionais; 2) criar uma plataforma para incentivar a divulgação e exposição de material de percussão; 3) incentivar a composição para as percussões; 4) promover masterclasses e workshops.

Artur Pizarro, Natalia Gutman, Bernardo Sassetti, Mário Laginha, Augustin Dumay, Katia e Mariel Labeque e Yuri Bashmet são alguns dos prestigiados nomes com quem já trabalhou. Há algum outro nome que mereça ser aqui lembrado?
Sir John Eliot Gardiner, Pierre Boulez, Kent Nagano, Rostropovitch, Carlos Barreto, Alexandre Frazão, Evandra Gonçalves e Ana Queirós do Doppio Ensemble, entre outros músicos portugueses de prestígio.

O jazz é uma paixão? Considera-o conciliável com outras linguagens musicais, ou esta é uma área à parte?
É sim. Incutida pelo meu pai, em casa a ouvir muitos vinis de Monk, Blakey, Gillespie, Davis, entre outros... Acho que o jazz é perfeitamente conciliável com qualquer outra linguagem musical porque é flexível e moldável num contexto artístico-cultural. Por exemplo, juntar uma big-band e uma orquestra sinfónica no mesmo palco ou, como fazia o Sassetti, criar dois trios num quinteto (CD Ascent), um trio de jazz piano, bateria e contrabaixo utilizando o piano com elemento comum para o trio mais erudito com violoncelo e vibrafone. No entanto, o curso de Jazz tem características únicas pois as suas componentes teóricas e técnicas são específicas, o que faz o músico de Jazz um "especialista" da área. Interessante é perceber na história do Jazz as várias influências de outras linguagens musicais que constituíram as fundações dos vários estilos de Jazz existentes hoje em dia.

Muito obrigado por nos ter concedido esta entrevista. O que espera fazer nos próximos 20 anos cá em Portugal?
Desejo que os próximos vinte anos sejam a continuação destas duas décadas vividas neste que é também o meu país. Desejo acompanhar as minhas mais belas obras, os meus filhos Sara, Beatriz, Vincent e Matis durante bem mais que vinte anos. Se assim for, sentir-me-ei muito realizado e feliz.
Eu é que agradeço a oportunidade e aproveito para vos parabenizar pelo vosso trabalho.

Jean-François Lézé

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