Carlos Damas. O violino, a música e a vida…
O violinista Carlos Damas, reconhecido internacionalmente nos mais prestigiados meios musicais, aceitou o nosso desafio para uma entrevista onde abordámos a sua carreira como instrumentista e como pedagogo. Carlos Damas é Mestre em Artes Musicais, Doutorando em Psicologia e Educação da Música. Faz parte do Conselho de Direção da Academia Nacional Superior de Orquestra. Carlos Damas considera que Portugal tem ótimas condições para promover festivais de música erudita pois está dotado de inúmeros Mosteiros, igrejas, parques naturais que seriam espaços ideais para acolher esse género de eventos. Para o nosso entrevistado ainda existem vários obstáculos a ultrapassar para que a música erudita e o público se aproximem de forma mais efetiva. Um dos problemas reside no facto dos canais televisivos raramente noticiarem a música erudita. Na opinião de Carlos Damas, "conseguiremos ser um país muito mais rico no dia em que promovermos mais a cultura do que o desporto".
Carlos Damas, o facto de sabermos que a sua vida é repleta de trabalho e compromissos faz com que nos sintamos lisonjeados por nos conceder este espaço que será partilhado com os nossos leitores. Vasco Brôco, Leonor Prado e Alexandra Mendes são nomes que estão intimamente ligados ao início da sua aprendizagem. Ainda hoje se revê nestes em algumas das suas atitudes enquanto músico e enquanto homem?
Leonor Prado, Vasco Brôco e Alexandra Mendes estiveram na génese da minha formação, estou-lhes muito grato. A seriedade e honestidade artística foram valores que me transmitiram e que me têm acompanhado.
Aos 15 anos estreou-se, acompanhado pela então Orquestra da Radiodifusão Portuguesa. Lembra-se bem deste dia? O que mais o marcou?
Mais do que o dia do concerto lembro-me dos ensaios. A professora Leonor Prado esteve sempre presente, atenta, mas não interferiu no trabalho. Ao contrário do que sucedia nas aulas, nesses dias fui livre. Marcou-me também a partilha musical com o maestro Silva Pereira, que me aconselhou e ajudou naquela que foi a minha primeira experiência à frente de uma orquestra profissional.
Em Paris foi aluno de Jacqueline Lefèvre e do mestre Ivry Gitlis. Foi aqui que a sua carreira começou a adquirir contornos mais aproximados com aquilo que hoje nos é apresentado?
Sem dúvida, a professora Jacqueline Lefévre fez-me crescer tecnicamente, o mestre Ivry Gitlis ensinou-me a ser músico e não um mero tocador de violino. Na realidade o que se pretende é que o violinista consiga exprimir as ideias implícitas no texto musical com o seu instrumento. O violino serve para amplificar o que o intérprete quer exprimir. Ainda hoje, no meu trabalho, utilizo o que aprendi com Lefévre e Gitlis.
Durante os anos em que viveu em Paris foi sendo orientado no plano artístico e performativo por Sir Yehudi Menhuin. Foi muito importante para si a oportunidade de ter este acompanhamento? No Portugal desse tempo seria impossível usufruir de tal orientação?
Conheci Sir Yehudi Menhuin quando realizei uma audição para a Orchestre de la Cité (Paris), na altura Menhuin fazia parte do conselho artístico. A referida orquestra era um projeto que reunia músicos dos quatro cantos do mundo, e da qual fui concertino durante três anos. Durante esse período tive encontros regulares com Sir Yehudi Menhuin aquando das suas deslocações a Paris, fui também a Londres ao seu encontro. Em Portugal, nesse tempo, seria impensável ter acesso a tal personalidade.
Já estreou inúmeras obras. Algumas dessas estreias se tornaram inesquecíveis ou guarda todas com o mesmo carinho recordando as especificidades de cada uma?
Tento encarar tudo o que toco da mesma forma. Todas as obras têm um discurso que poderia comparar a uma história de vida. Vivi cada uma dessas estreias da mesma forma apesar do discurso ter sido distinto. Todas foram inesquecíveis.
Em 1997 foi o único músico ocidental a ser convidado para participar no Quinto Festival de Artes da República Popular da China. Recorda-se desta experiência? Sente que estes momentos se constituem como momentos privilegiados de aprendizagem?
Recordo que no referido festival tive várias participações como solista. Uma dessas participações foi no duplo concerto de Bach, que toquei três vezes com três violinistas Chineses diferentes. Foi um desafio à minha flexibilidade, em geral, os músicos asiáticos não são muito flexíveis na sua maneira de tocar.
Sinto que hoje me adapto com facilidade, o que me permite tocar seja com quem for. Talvez seja reflexo das experiências que me obrigaram a praticar a flexibilidade. Não gosto que me acompanhem, gosto da partilha, do jogo de cedências que tem de existir entre os músicos. Só assim se interpreta de forma criativa.
Considera que o ensino da música em Portugal evoluiu muito nos últimos 20 / 30 anos?
É uma questão complicada. Temos muitos jovens a querer aprender e a investir numa carreira musical. O número de jovens a aprender música hoje não se compara ao de há 20/30 anos. Hoje temos melhores músicos, alguns de grande qualidade. Questiono-me se esse aumento de qualidade não terá a ver com o aumento do leque de escolha, tendo em conta que a maioria das escolas tem como corpo docente os mesmos professores de há 20 anos atrás.
Apareceram também muitas escolas novas que contribuíram para a expansão do ensino da música e do aparecimento de novos talentos.
Nunca temos o cenário ideal, mas o que pensa ser urgente acontecer para que o casamento entre o público e os músicos eruditos seja uma realidade mais evidente em Portugal?
Um sistema educativo e uma oferta de concertos que permita chegar a música erudita aos quatro cantos do território nacional... Acolhimento e divulgação pelos principais meios de comunicação social.
Nos dias de hoje é difícil levar a música erudita às aldeias e cidades mais pequenas. Portugal é dos poucos países da europa em que o turismo musical não é explorado. Por exemplo, não existem festivais de Verão dedicados à música erudita. Temos tantos Mosteiros, igrejas, parques naturais que seriam espaços ideais para acolher esse género de eventos...talvez o problema esteja no sistema fiscal nacional que não motiva as grandes empresas a financiar a cultura, pois dá muito mais visibilidade financiar o desporto do que a cultura.
Os canais televisivos raramente noticiam a música erudita.
Na minha opinião, conseguiremos ser um país muito mais rico no dia em que promovermos mais a cultura do que o desporto.
O seu trabalho tem sido muito apreciado nos Estados Unidos e em outros países. Qual a vertente que mais o deu a conhecer na América? A de professor, ou a de instrumentista?
A de instrumentista. Desloquei-me pela primeira vez aos Estados Unidos como violinista, aos 16 anos. Sempre que posso regresso, tenho grandes amigos que amam a música e com quem gosto de tocar. Aprecio o conceito de amar a música e não o de profissional da música...
De todas as orquestras com que tocou, quais as que destaca no seu vasto currículo?
Toquei com orquestras europeias, asiáticas e norte americanas. Em todas elas se sentem diferenças, é sempre um prazer tocar seja com que orquestra for...
Depois de anos dedicados à interpretação de obras de consagrados e imortalizados compositores como Mozart, Beethoven, Brahms, Mendelssohn, entre outros, sabemos que o Carlos Damas dedica especial atenção à interpretação de obras de compositores portugueses bem como a obras menos tocadas de compositores «clássicos». Pensa que o seu nome poderá ajudar a imortalizar outros nomes que, em sua opinião não tiveram o merecido destaque na sua época devido à sua localização geográfica ou até a outros fatores inerentes a causas sociais, económicas e políticas?
Regressei a Portugal no ano 2000. Nestes últimos catorze anos tenho tentado fazer justiça a muitos compositores portugueses que ficaram esquecidos nos arquivos e nas gavetas. Para mim nunca foi compreensível que em Portugal não se invista na interpretação do espólio dos nossos compositores tal como acontece noutros países. Quando chegamos a França somos bombardeados com música francesa, em Inglaterra com música inglesa, em Espanha com música espanhola, em Portugal com música alemã, espanhola, inglesa, francesa... qual é a lógica? Se não formos nós, portugueses, a defender e divulgar a nossa música, ninguém o fará!!!!
Toquei música portuguesa na ásia, américa do norte e europa e tive sempre excelente receptividade da parte dos públicos. Muitos reagiram com estupefacção pela qualidade da música apresentada. Parece valer a pena!!!!
Mais uma vez, muito obrigado por nos ter dado esta oportunidade. Pode deixar um conselho àqueles que agora dão os primeiros passos rumo à concretização do sonho de serem um dia músicos?
Yehudi referia-me que ser violinista implica sermos "escravos do nosso metier". Frequentemente, enquanto os nossos amigos ou familiares gozam momentos de lazer, temos de passar horas e horas a estudar, mas o amor que nos transmite a música compensa. Jacqueline Lefévre dizia-me frequentemente que o ato de pisar a corda deveria ser encarado como um encontro amoroso entre um dedo e uma corda "um dedo que pisa a corda com amor". Qualquer ato musical deve ser refletido. Ivry Gitlis referia que passava muito do seu tempo a imaginar o som que queria produzir com o seu violino. Um músico deve ser persistente, sonhador e amar o que faz! E o mais importante: não existe arte sem disciplina!
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