Vicky Marques em entrevista ao XpressingMusic na Serra do Pilar, em Gaia…
Fomos ao encontro de Vicky Marques em plena tournée da fadista Mariza com quem trabalha há já algum tempo. Assistimos ao teste de som mesmo ao seu lado onde nos pudemos aperceber da energia e certeza que imprime em cada movimento que executa. Seguidamente fomos para o camarim conversar durante meia hora. É essa conversa que aqui transcrevemos. Dos primeiros passos que deu na aprendizagem da bateria até ao que considera importante e aconselha àqueles que dão hoje os primeiros passos na aprendizagem do instrumento, fazemos uma viagem pela vida deste baterista que já tocou com nomes como Paulo Gonzo, Mafalda Veiga, entre outros.
XpressingMusic (XM) – Vicky muito obrigado por nos receberes em plena Tour da Mariza, desta feita aqui em Gaia. Com que idade iniciaste a tua formação na bateria? Francisco Furtado foi muito importante para que começasses a assimilar a ideia de que a tua vida profissional iria passar por este instrumento?
Vicky Marques (VM) – O prazer é todo meu. O meu pai já tinha tocado bateria mas, curiosamente, só vim a saber disso mais tarde. Então comecei a aprender sozinho. Quando tinha 8/9 anos já ouvia muita música... ainda no tempo do vinil. Adorava ouvir Roxy Music, Supertramp, Fausto... Tive a sorte de ter uns pais que ouviam vários estilos musicais e assim eu ia assimilando um pouco de tudo. Então os meus kits eram constituídos por uns tupperwares e uns tambores em plástico aos quais se juntavam uns tambores tradicionais que nós comprávamos numa feira de artesanato que havia no Estoril. Assim, na altura eu nem tocava com os pés. Tocava somente com as mãos. Entretanto vim a descobrir que o meu pai também tocava bateria. O meu pai nem queria muito que eu tocasse bateria pois era muito difícil e tal, mas lá me foi ensinando que a mão direita era nos pratos de choque e a mão esquerda na tarola. Mais tarde, os meus pais perceberam que era mesmo aquilo que eu queria (e a minha madrinha fez alguma pressão também) e matricularam-me numa escola de música para aí aos 12/13 anos. Foi nessa escola que conheci o meu professor Francisco Furtado. Ele teve um papel tão importante ao ponto de, logo na minha primeira aula com ele, o impacto ter sido tremendo. Eu faço muitas vezes esta comparação. A forma dele de tocar assemelhava-se imenso à do Dennis Chambers. Ele era forte a tocar e possuía um tipo de batida, um tipo de levada que me fez sentir aquele aperto no peito muito bom e que me fez pensar: É mesmo isto que eu quero! Ele ensinou-me então aquelas primeiras técnicas de Single Stroke, Double Stroke e aqueles ritmos básicos que na altura se tocavam nos hotéis, nos restaurantes e nos bares. Eram outros tempos e os ritmos que me ensinou foram rumbas, boleros, bossa nova, samba e isso para mim foi muito importante. Ele também trabalhou comigo a parte da independência...
XM – Bruno Pedroso, Manuel Costa Reis, Michael Lauren foram outros nomes que passaram pelo teu percurso formativo. O que absorveste de cada um deles?
VM – Passaram e ainda passam pois ainda continuo a absorver bastantes coisas deles, porque todos são músicos extraordinários. De todos absorvi coisas diferentes. No caso do Bruno Pedroso, o percurso dele é fantástico pois ele era uma espécie de All-Around Drummer tocando pop, rock, fusão com vários artistas e, de repente, meteu na cabeça: "O que eu quero mesmo tocar é Jazz!". Especializou-se e é um baterista extraordinário de Jazz, com todas as nuances que este género tem hoje em dia. Continuo a aprender com ele. Posso dar um exemplo: Toquei no outro dia num concerto do Hugo Trindade, guitarrista, e quem gravou o disco foi o Bruno Pedroso. Eu ouvi o disco e, embora tenha tocado à minha maneira, baseei-me também naquilo que o Bruno estava a fazer. Quero com isto dizer que estamos sempre a aprender quando ouvimos os outros. Numa aula (de muitas horas) que tive com ele, aprendi inúmeros exercícios que ainda hoje utilizo para outras coisas, até fora do âmbito do Jazz.
No caso do Manuel Costa Reis, também aprendi muito com ele. Ele mudou a minha forma de tocar bateria. Estou-lhe muito agradecido porque aprendo com ele de várias formas, ou seja, aprendo tanto em aulas como falando somente com ele. O Manuel Costa Reis é uma espécie de filósofo da bateria. Às vezes, numa simples conversa, aprendo muito porque quando vou tocar a seguir, como o meu pensamento mudou, também eu toco de maneira diferente. O mesmo sinto com o Michael Lauren, para além de o considerar um dos melhores professores de bateria do mundo. É o homem que conheço com o maior conhecimento de bateira. O Michael Lauren é extraordinário. Ele é muito exigente, o que é ótimo. Quando uma coisa não está bem, ele diz de forma frontal que está mal e pronto. Não está ali com palmadinhas nas costas, como se costuma dizer. Nesse momento tu vais para casa trabalhar até ficar bom. Quando está bom, com a mesma frontalidade ele diz que está bom e aí tu ficas mesmo a confiar na palavra dele, o que é ótimo numa relação pedagógica. Com o Michael estudei muitas coisas relacionadas com stickings do Gary Chaffee. Neste momento estou a trabalhar naquilo que virá a ser um livro, partindo deste conceito, mas sobre isto, espero vir a falar um pouco mais adiante quando o projeto estiver mais amadurecido. Também trabalhei coisas relacionadas com Big Band com ele.
XM – Mas a aprendizagem de um instrumento também acontece a partir de muitas vivências informais... Sabemos que houve alguns casos de situações informais que te marcaram até hoje... podes partilhar alguns desses momentos com os nossos leitores?
VM – Sim. Posso começar pelo Alexandre Frazão que para mim é inspirador. Às vezes dou comigo a ver umas coisas que ele mete no YouTube e em que nem aparece a cara dele, sendo somente visíveis as mãos a passar pelo kit. Mas aquilo para mim é inspirador pois vejo outros trilhos por onde também posso caminhar. O que fui absorvendo do Alexandre Frazão foram aspetos que fui apreciando em concertos ou em workshops e da experiência que tive com ele no projeto TIM TIM por TIM TUM onde também estavam o José Salgueiro e o Marco Franco. Cada vez mais utilizo a traditional grip que foi um dos aspetos que basicamente me foram ensinados pelo Alexandre Frazão. Ele ensinou-me que o que segura basicamente a baqueta é o polegar e que não existe quase nenhum movimento de pulso sendo igualmente o polegar a controlar o movimento... Ele ensinou-me também qual deveria ser a nossa postura na bateria, a nossa atitude. A atitude do Alexandre Frazão na Bateria é fantástica e isso é tão importante.
Outra situação muito específica que tive aconteceu com o José Salgueiro. Ele era na altura baterista do Trovante. Eu era miúdo, com 15 ou 16 anos e fui tocar no "Até que enfim" com uma banda de bares. O José Salgueiro apareceu por lá e eu fiquei logo todo a tremer mas lá consegui chegar à fala com ele. Então, muito formalmente, fiz-lhe aquelas perguntas de miúdo do género "Pode ajudar-me aqui com a afinação de um timbalão de 14" de chão?" Ele lá me afinou o timbalão mas afinou-mo de uma forma que só anos mais tarde vim a compreender. A pele ficou muito lassa mas o seu conceito de afinação era esse pois estava habituado a dar concertos ao vivo com microfones a amplificar a bateria. Acusticamente aquilo pareceu-me estranho mas, anos mais tarde percebi que tal afinação se deveu ao contexto em que este estava habituado a tocar. Hoje em dia também eu recorro a esse tipo de afinação. Por exemplo aqui com a Mariza utilizo um timbalão de 12" como timbalão de chão, o que é muito "curto". Neste caso, afino a pele muito lassa ficando esta sem "cantar" absolutamente nada, ou seja, acusticamente aquele timbalão não soa a nada mas quando amplificado fica cá com um "gravão"... Outra coisa que o José Salgueiro me disse na altura foi para eu ter mais atenção às dinâmicas. Eu na altura devia estar a tocar tudo muito forte, ou tudo muito "a direito" sem expressão... Passei a ter mais atenção às dinâmicas a partir daí.
XM – A tua forma de tocar transpira várias influências o que faz de ti um baterista único com uma marca muito própria. Quais os bateristas que mais te influenciaram?
VM – Para além de todos estes de que estivemos a falar, o primeiro que foi uma grande fonte de inspiração e ainda continua a ser foi o Phil Collins. Fico arrepiado só de pensar nos discos dos Genesis tais como o "Three Sides Live". Lembro-me de passar com a minha madrinha por uma discoteca (porque naquele tempo que eu era um miúdo), havia lojas/discotecas a vender discos nos centros comerciais e na rua, e ouvir aquilo e pensar: "Mas o que é isto?" Eu nem fazia ideia de que aquilo pudesse existir. Tanto chateei a minha madrinha que ela lá me comprou o disco. Fui para casa e tanto estudei por cima daquele disco que o consegui tocar todo, embora à minha maneira. Aquilo tinha três bateristas que se iam revezando: Phil Collins, Chester Thompson e Bill Bruford. Estas são grandes influências para mim e ajudaram-me muito a tocar pois, quando tens dois bateristas a tocar ao mesmo tempo, tens que fazer uma seleção auditiva daquilo que realmente interessa. Isto ajudou-me muito a trabalhar a parte auditiva. Outro baterista que me tem influenciado muito ao longo da minha carreira é obviamente o extraordinário Vinnie Colaiuta. Para mim é o mais versátil, mais completo, mais criativo, mais desenvolvido de todos os bateristas, se é que isto se pode dizer assim... Dennis Chambers e Dave Weckl também são grandes influências para mim, assim como Billy Cobham e todos os bateristas que vieram dele como Simon Phillips, Chester Thompson... estou de certeza a esquecer-me de alguns, mas todos estes foram e são grandes influências para mim.
XM – Agosto de 2007 foi um ano que não esquecerás... Em que consistiu a tua experiência em Bath, na Inglaterra?
VM – Eu soube pela internet que o Billy Cobham iria lá dar um workshop. Aquilo consistiu numa espécie de Campus que decorreu durante uma semana e foi organizado pela WOMAD. Embora o Billy Cobham fosse a personagem central, houve ao longo da semana vários ateliers onde pude trabalhar com Chartwell Dutiro, Colin Woolway e com Dr. Joel. O facto de grande parte desta formação passar por Billy Cobham deu-me a oportunidade de o ver tocar bem perto de mim. Ele não se focou em aspetos muito técnicos. Focou-se em coisas mais generalizadas. Deu para perceber como ele encara os compassos compostos. Ele usava muito os stickings e os paradiddles para tocar os compassos compostos. A ideia que transpareceu foi a de que ele ia por ali para tocar os compassos compostos e depois alterava um pouco aquilo à maneira dele. Ele passou-nos muitas experiências e deu-me a oportunidade de tocar com ele. Ali eu senti o quão importante um baterista pode ser a liderar uma banda. Eu senti que estava a ser liderado por ele. Aquilo não foi nada de transcendente mas também não era para ser. Ele propôs-me que solássemos alternadamente e o que eu vi nos solos dele foi que tudo aquilo era muito explícito. Os solos dele tinham um fio condutor, tinham princípio, meio e fim. Os solos não eram um conjunto de exercícios. Eram como uma história. Os solos dele eram altamente musicais e altamente explícitos. Ao tocar com ele senti que ele me dizia "estou aqui" e ia indicando onde estávamos, tamanha era a sua liderança. O solo dele era uma frase por inteiro.
XM – Para além da artista Mariza, com quem vais tocar hoje, são inúmeras as tuas participações ao vivo e em estúdio... Quais os principais nomes e projetos com quem já tocaste?
VM – Todos são importantes à sua maneira. Não há projetos mais importantes. É óbvio que existem artistas mais conhecidos do que outros. É assim que funciona. Tem a ver com o mercado da música, com a personalidade de cada um, etc. Cada vez que fazes uma gravação, estás a aprender alguma coisa porque o estúdio é um laboratório extraordinário. Isto porque para além de estares a fazer uma performance que vai ficar gravada para a posterioridade, possibilita-te fazer também um trabalho de análise. No âmbito das participações ao vivo, também tive grandes experiências. Toquei por exemplo com o Ivan Lins... Ele tem a capacidade de ele próprio ser uma banda. Todas as harmonias das músicas dele estão nos dedos dele. Também gosto de tocar com a Mariza, obviamente. Também gostei de tocar com a Mafalda Veiga, principalmente pela simplicidade do tocar, pois era o que ela nos pedia e fazia muito sentido porque às vezes pensamos que estamos a embelezar uma música e só estamos a complicar. O simples, às vezes, é muito difícil de fazer.
Toquei com vários artistas e estou a esquecer-me de muitos... Mas por exemplo com o Paulo Gonzo, com quem gravei vários discos, ganhei imensa experiência. Para além de ser um músico e cantor magnífico, ele tem grandes ideias e sabe exatamente aquilo que quer. Sempre me deu uma grande liberdade para fazer aquilo que queria e isso é algo que tenho a agradecer à maior parte dos artistas com quem toquei até hoje. É algo que me acontece também com a Mariza... É o facto de eles confiarem na nossa linguagem, no nosso gosto musical e darem-nos liberdade para tocar.
XM – O facto de te encontrares a tocar com a Mariza tem-te dado a oportunidade de tocar em várias partes do mundo e em várias conceituadas salas de espetáculos. Há momentos inesquecíveis que possas partilhar com o XpressingMusic?
VM – Um dos momentos inesquecíveis foi a tournée que fizemos em 2009 durante 3 meses nos Estados Unidos. Fizemos de este a oeste, inúmeras viagens em tour bus e muitas viagens também de avião. Fizemos muitas vezes quatro concertos seguidos com um dia de descanso, sendo esse dia de descanso por vezes gasto na viagem em tour bus... Foi extraordinário. Tocámos em salas magníficas como a Carnegie Hall, Walt Disney Concert Hall, Benaroya Hall da Seattle Symphony Orchestra... Muitas vezes, tocávamos numa noite e nessa mesma noite viajávamos para outra cidade para o concerto que iria acontecer no dia seguinte e assim sucessivamente durante vários dias. Isto tornou-se uma experiência fantástica porque, mesmo andando "moídos" das viagens e com horários trocados, acabávamos por tocar de forma ainda mais enérgica porque andávamos motivados com toda aquela vivência.
Outra experiência interessante foi tocar na Sydney Opera House. Lembro-me de passear um pouco no dia a seguir, dia da partida, ali em frente à Opera House de Sydney, sentar-me para ler um livro e depois olhar em frente e dizer "eu estive ali a tocar ontem, é inacreditável!". Depois há as pessoas que têm feito parte destas equipas das tours da Mariza. Tenho trabalhado com pessoas fantásticas, com pessoas fenomenais que tornam tudo isto mais interessante e prazeroso. As equipas técnicas da Mariza também têm sido fantásticas e têm tornado possíveis concertos que até poderiam não acontecer. É muito gratificante fazer parte destas equipas.
XM – Quando conversas com jovens que agora dão os primeiros passos na aprendizagem da bateria, dás algum conselho especial? O que aconselhas àqueles que agora sonham com uma carreira como bateristas?
VM – Aquilo que lhes digo, em primeiro lugar, é que se é realmente bateria que querem tocar, pratiquem o máximo que conseguirem. Não percam tempo com coisas que não valem a pena. Devem praticar focados. Isto por vezes é difícil mas é preciso ter força de vontade e motivação. A motivação vai-se buscar a discos de que gostamos. Podem treinar técnica com a música de que gostam como suporte em vez do metrónomo pois pode ser um caminho mais motivador (pois estudar técnica é duro e este caminho pode facilitar). Devem ser persistentes também. Este é outro caminho obrigatório pois a oportunidade um dia vai aparecer e temos que estar preparados para ela, por isso não podemos encostar-nos à sombra da bananeira a pensar que estamos a tocar muito bem. Mesmo quando estamos num projeto que está a correr muito bem, devemos pensar no futuro e naquilo que queremos fazer daqui a uns anos. Se tocarmos bem e formos boas pessoas e tivermos uma boa atitude com as pessoas que nos rodeiam será isso que nos ajudará a ter trabalho, a ter uma carreira. Outra coisa importante, é termos a nossa própria voz, ou seja, procurarmos a nossa própria forma de tocar tentando ser, cada vez mais, melhores pessoas.
XM – Tens projetos para um futuro próximo que possas revelar? Já pensaste em gravar um álbum a solo?
VM – Já há muito tempo que ando a pensar no meu disco. Comecei há um ano e pouco a fazer gravações, entretanto tive que parar por vários motivos, enfim, é a vida... mas não há dúvidas de que vou gravar o meu disco pois é algo que tem a ver com a minha voz (aquela de que falávamos há pouco). Quero também terminar o meu livro e gravar mais um DVD. Outra coisa que está sempre no meu pensamento é o meu "querer tocar melhor" e ser cada vez mais uma pessoa boa. Estas duas coisas têm que andar sempre de mãos dadas.
XM – Mais uma vez muito obrigado por nos teres dedicado este bocadinho do teu tempo em plena trournée.
VM – Eu é que agradeço. Muito obrigado. (Abraço)
Sistema de comentários desenvolvido por CComment