José Valente. O músico partilha o seu trabalho e algumas reflexões sobre a arte e a sociedade…
O músico José Valente partilha com os leitores do XpressingMusic o seu percurso formativo e artístico. Sem rodeios, o nosso entrevistado fala-nos da sua visão sobre a forma como a cultura é encarada em Portugal. Numa entrevista onde a frontalidade sobressai, exaltam-se aqueles que protagonizam o que de melhor se faz na música e lançam-se alertas para o que de mais negativo tem contaminado a plena vivência da música e das artes em geral. José Valente recusa-se a catalogar os géneros musicais em que se move deixando isso a cargo dos profissionais que a colocam à disposição do público.
XpressingMusic (XM) – José Valente, queremos desde já agradecer a amabilidade demonstrada para com o XpressingMusic desde a primeira hora. Pode descrever resumidamente o seu percurso formativo desde o período em que se enamorou pela música até aos dias de hoje?
José Valente (JV) – Para mim é um prazer responder às vossas questões. Agradeço o vosso interesse pelo meu trabalho e terei todo o gosto em partilhar alguns pontos de vista convosco.
Quanto ao meu percurso académico. Iniciei os estudos provavelmente com 5/6 anos de idade num curso de iniciação musical que existe em Coimbra leccionado por, na minha opinião, um grande pedagogo – o maestro Virgílio Caseiro. Depois fiz o habitual Conservatório Nacional também em Coimbra. Entretanto conheci a Ana Bela Chaves e foi esta que alertou os meus pais para uma evidência (nos anos 90): se fosse minha intenção seguir música, deveria pensar em emigrar. Isto aconteceu teria eu uns 13, 14 anos. Assim, com os meus 17 ou 18, terminado o 8º grau no Conservatório, fui admitido na classe do Prof. Brian Finlayson no Kaertner Landes Konservatorium em Klagenfurt na Áustria. Depois de finalizar a licenciatura com nota máxima na Áustria, foi-me atribuída uma bolsa de estudo pela New School for Jazz and Contemporary Music. Mudei-me para Nova Iorque para estudar improvisação e jazz, e acabei em 2009 também com nota máxima no diploma e com uma distinção "with honors".
XM – Ao longo de todo o seu percurso trabalhou com grandes músicos e pedagogos. Há algum, ou alguns, que o tenham marcado de forma mais vincada?
JV – Além do já mencionado Virgílio Caseiro, também ele responsável pela escolha da Viola d'arco enquanto instrumento, enalteço a importância da Ana Bela Chaves – foi ela que me seduziu a procurar outros destinos para desenvolver as minhas capacidades. Enquanto estive na Áustria também aprendi muito com mestres como os violetistas Sebastian Burger e Matthias Buchholz. No que diz respeito à música de câmara, o pianista Alexei Kornienko e o meu professor, o Brian Finlayson foram importantes. Fui também aluno do compositor Alfred Stingl. Nos Estados Unidos tive o privilégio de aprender com outros mestres excecionais como os violinistas Mark Feldman e Christian Howes, o contrabaixista Reggie Workman, os bateristas Charlie Persip e, sobretudo, o grande Jim Black!... o pianista Aaron Goldberg e claro, não posso esquecer as aulas de blues com o lendário pianista Junior Mance e de R'n'B com o baterista também lendário Bernard Purdie. Também fui aluno de composição do Kirk Nurock. Finalmente, de mencionar os conselhos preciosos da saxofonista Jane Ira Bloom que sempre ouviu com muita atenção a minha música, sempre me apoiou na busca por uma voz própria.
XM – Para além dos professores há também os colegas músicos com os quais se tem cruzado ao longo da sua carreira que também acabam por fazer parte de inúmeros momentos de trocas e de partilhas... À semelhança dos pedagogos, também alguns lhe deixaram marcas?
JV – O último que me marcou positivamente foi, sem dúvida, o pianista galego Alberto Conde devido à sua capacidade de liderança de um grupo heterogéneo, e também devido à sua persistência e obsessão por um projeto (algo em que me revejo num ponto de vista profissional). Neste grupo dirigido pelo Alberto, tenho o privilégio de partilhar o palco com um mestre da música clássica indiana, o brilhante citarista Shakir Kahn. De resto, deixaram-me marcas músicos como o clarinetista Paquito d'Rivera; o trompetista Dave Douglas; o violoncelista Hank Roberts; o flautista espanhol Rodrigo Parejo (um músico incrível que muitos ainda não conhecem); o saxofonista Don Byron; o violinista Jason Kao Hwang; a compositora austríaca e grande amiga Manuela Meier. Também gostaria de referir artistas com quem trabalhei/trabalho, provenientes de outras áreas disciplinares, que têm sido importantes no meu crescimento artístico: o artista plástico brasileiro Chico Santos; o meu orientador de Doutoramento, o pintor António Olaio; e a multifacetada e genial Marta Bernardes. Para finalizar, de frisar um grande amigo, o violinista austríaco Raphael Kasprian do Quarteto de Cordas Acies Streichquartett (quarteto que fundámos durante a minha estadia na Áustria).
XM – Enquanto performer, há algum género musical que o fascine e que eleja como preferido? E compositor? Há algum que distinga?
JV – O meu género musical é "José Valente". Os historiadores, críticos, vendedores de discos, equipamentos culturais, agentes, programadores, etc... que se encarreguem de categorizar a minha música. Essa não é, nem deve ser, a minha preocupação primordial. Não sou adepto de um estilo em particular. Aliás se há algo que me enfada na sociedade musical dos dias de hoje são as cenas/nichos musicais geralmente associáveis a géneros musicais reconhecíveis pelo grande ou pequeno público (por exemplo: a cena da música antiga, a cena do jazz avant-garde versus jazz tonal versus jazz tradicional, a cena do fado, a cena do reggae e por aí fora). Quando digo que esta circunstância me aborrece, afirmo-o numa perspectiva meramente pessoal sem condenar a existência e durabilidade dessas cenas/nichos estéticos. Na realidade até defendo que tais nichos se desenvolvam, pois estes podem ser a alavanca para a investigação de princípios e alternativas criativas muito específicas. Ou seja, se o nicho tiver uma génese de interesse sincera, o resultado da investigação e experiência poderá ser muito interessante. E eu, que me considero um "deambulador" bebo desses nichos como de muitas outras fontes artísticas. Uma vez, ao rever diversas obras do meu passado, apercebi-me que me tenho mantido fiel, durante alguns anos, a uma busca pela "mistura de géneros/vocabulários musicais". No fundo, preocupo-me enquanto compositor em alcançar um resultado emocional e expressivo, independentemente do género musical aplicado. Considero que um compositor manifesta a sua "voz própria" em elementos mais sólidos e definitivos do que um mero estilo de música.
Alguns músicos demonstram esta liberdade de género musical no seu percurso artístico. Um deles foi muito influente durante a minha adolescência. Frank Zappa disse numa entrevista qualquer "(...) The all body of my work is one composition. That's what music should be, you should be able to organize any kind of sound and put it into your music. So I wound up with a style of music that has snorques, burps, dissonant chords, and nice tunes and triads and straight rhythms and complicated rhythms and...just about anything, in any order. And the easiest way to summon the aesthetic would be: anything, anytime, any place for no reason at all. (...)"
A portugalidade de Carlos Paredes foi, sem dúvida, uma influência fundamental na construção da minha "voz própria".
Hoje em dia, ouço muitas coisas. Por exemplo, há uns dias estive a ouvir a banda de uma cantora grega emergente chamada Magda Giannikou (o grupo: "Banda Magda") onde toca um amigo meu, o contrabaixista grego Petros Kamplanis. Admiro a música do Osvaldo Golijov. Acho que o Anthony Braxton é um músico incrível, e o filho, o Tyondai Braxton, é um compositor muito promissor. Também gosto muito de música africana: acho que o Tcheka é uma lufada de ar fresco dentro do panorama da música cabo-verdiana, gosto muito do Bassekou Kouyate; daquele duo Vincent Segal/Ballaké Sissoko; etc...
Dos músicos portugueses aprecio muito músicos como o Carlos Zíngaro, o Eduardo Raon, o Mário Laginha, o João Paulo Esteves da Silva, o Camané, o Paulo Bragança, António Variações, Carlos Paião, José Mário Branco e Zeca Afonso, entre outros. Sou da opinião que, tendo eu uma profissão que se sustenta na criatividade, é natural que seja curioso e que ocupe muito do meu tempo a saborear, a deleitar-me com obras de qualquer área artística. Sou um admirador da escrita do Afonso Cruz... já utilizei mais do que uma vez textos deste para a composição, como para a interação musical com a palavra. Gosto muito dos filmes do Tarkovsky. Uma vez fui a uma exposição coletiva na Fundação Arzpad Szenes-vieira e fiquei impressionado com o trabalho da Helena Almeida. E aqui no Porto tivemos o Ângelo de Sousa! Recentemente li um livro de contos que me entusiasmou muito: "Havia" da Joana Bértholo. E ultimamente tenho adormecido os olhos a ler Montálban e o seu Pepe Carvalho.
XM – Tendo em conta ser um músico tão viajado, considera que a sua música e as suas interpretações vão sendo alvo de algumas sobreposições e mutações, fruto de influências e vivências diversas?
JV – Sim. Parece-me praticamente impossível que a minha música não seja o resultado de um conjunto de influências provenientes de diversas experiências. O primeiro gerador de evolução artística, pelo menos no meu caso, provém de um desejo (associado a um desassossego existencial e também reflexivo sobre a sociedade atual) de transcendência. Ou seja, depois de alcançado determinado patamar ou sucesso, fico sedento por um novo desafio que me teste e que me obrigue a encontrar outras soluções. Aliás penso que é fundamental, pelo menos para mim e para o que faço musicalmente, tentar colocar-me numa espécie de linha de risco durante os concertos. Quando falo de linha de risco não me refiro, nem motivo, a hipótese de não estar preparado para o concerto. Na realidade, no meu entender, tocar nessa linha de risco, exige uma preparação ainda mais acentuada. A linha de risco permite que a interpretação de um repertório nunca seja dada como garantida. Por exemplo, um músico prepara um repertório assente numa específica tendência musical. Porque não colocar no meio desse mesmo repertório uma obra com características dispares dessa tendência, obra essa que também apresenta outras técnicas de execução surpreendentes dentro do contexto do concerto em causa? Uma situação que tenho experimentado nos últimos concertos: tocar uma peça e, de repente, alterar-lhe a forma, inventar uma transição na hora e tocar uma peça que não se encontra no programa; ou iniciar um concerto com uma improvisação, sem qualquer expectativa relativamente à segunda peça do programa (ou seja, poderei interpretar a peça que está no programa, ou outra que entretanto me surja na cabeça). A linha de risco oferece-me um desafio permanente. Também gravo todos os concerto, para que depois me seja possível avaliar as opções escolhidas. O desafio, também pode ser muito diferenciado. Por exemplo: um dia aceitei três datas de concerto consecutivas com repertórios completamente diferentes. Num dia tocava a solo num clube onde tinha que agarrar o público (o que imediatamente condiciona o programa), noutro tocava a estreia de uma Sonata da minha autoria (tocada juntamente com um percussionista) e finalmente no terceiro dia, mudava de cidade e tocava novamente a solo, mas numa sala habituada a receber músicos e públicos mais disponíveis a ouvir discursos musicais pouco usuais. Quando o meu agente me propôs as datas, perguntou se eu não ficaria cansado e se não preferiria tocar em datas mais afastadas. Eu recusei essa alternativa por duas razões: primeiro queria testar a minha resistência física e psicológica (o desafio); segundo ao aceitar as datas em sequência libertou-me a agenda para concertos noutros espaços.
Para rematar esta resposta... Ser viajado, ou ter pelo menos pisado palcos noutros países além de Portugal ajudou-me a ganhar um certo "calo" e alguma tranquilidade que me ajuda a analisar o que me acontece e o que acontece à minha volta. O sucesso é relativo e o insucesso também. O facto de ter tocado nalgumas salas emblemáticas permite-me relativizar a importância/reputação de alguns equipamentos culturais. O que é realmente importante é se a minha música foi ouvida com sinceridade e intencionalidade, se eu toquei com sinceridade e intencionalidade e se a postura dos envolvidos no concerto dignificou a minha profissão e acima de tudo, dignificou a música. Como disse uma vez o William Parker numa Masterclasse: Music is everywhere. You can be or not be a part of it.
XM – Dos palcos que já pisou, realça algum onde tenha sentido uma maior proximidade e envolvimento com o público e onde tenha experienciado uma verdadeira comunhão dos mesmos interesses?
JV – Sim. Gostei muito de tocar e de estar no Centro Cultural de Banff. Eu ganhei uma bolsa para participar no International Workshop for Jazz and Creative Music em Banff. Percebi no primeiro dia de Workshop que, tal e qual como os meus colegas, seria responsável pela preparação de repertórios para formações diversas, reportórios para apresentar em concerto praticamente todos os dias – uma vez que os músicos participantes ficaram encarregues de tocar todos os concertos (excepto os de Sábado à noite) do Festival de música que acontece na cidade todos os anos entre os meses de Maio e Junho. As condições de trabalho eram estupendas. Todos os envolvidos tinham uma enorme vontade de ajudar e de criar música. Nunca assisti a qualquer discussão fora de um contexto profissional e artístico. Havia uma sincera comunhão e imensa disponibilidade por parte dos músicos e organização. Por isso mesmo fizemos coisas fantásticas. Aconselho todos os músicos a candidatarem-se.
Este espírito de partilha e anseio criativo contaminou o público, e o público também contaminou, motivando-nos, a nossa vontade de fazer música. Uma experiência em Banff que me vai ficar na memória: Um dia, fiquei muito triste por causa de um ensaio que não me tinha corrido bem. Estava a andar na rua, a chorar zangado. Às tantas vejo um tipo a descer a rua apressadamente. Dirigiu-se a mim e perguntou quando iria tocar novamente a minha música (porque toquei concertos como líder e como side-man). Tinha visto o meu primeiro concerto no festival, tinha gostado muito e que queria voltar a ouvir a minha música. Salvou-me o dia.
XM – Para além do José Valente performer, há o José Valente docente. Quais as principais características de que tenta dotar os seus discípulos? Há aspetos que valorize mais relativamente a outros?
JV – Antes de responder a esta questão, devo esclarecer que dou muito poucas aulas.
Um detalhe: não concordo nada com o termo discípulo. Discípulo implica uma obediência acrítica por parte do aluno, o que iliba esse mesmo aluno de qualquer responsabilidade. O maestro Virgílio Caseiro disse-me um dia: um professor é alguém que abre o seu cofre de conhecimento e diz ao aluno: leva o que quiseres. A exigência advém dos objetivos construídos em conjunto um pouco à semelhança da "descoberta guiada" que utiliza o José Mourinho (há um livro sobre este assunto escrito pelo Luís Lourenço). Se o aluno aceita os objectivos propostos, automaticamente aceita a responsabilidade. Se não cumpre os objectivos que este mesmo desejou, então sofre consequências muito transparentes (nota negativa, má prestação na audição, etc...).
De resto valorizo três aspectos essenciais para o desenvolvimento musical de qualquer pessoa: um entendimento claro da técnica base; o palco, a prática de estar em palco; e a inteligência: acho que um professor deve incitar o raciocínio por parte do aluno, deve cultivar a boa educação e trato respeitoso; deve falar com um vocabulário rico e claro; deve gerar um conjunto de hábitos que motivem o aluno a ser mais capaz em todas as frentes. Para mim um músico é um indivíduo excepcional. Hoje em dia denoto uma falta de intensidade cultural por parte de toda a sociedade ocidental. Obviamente que sinto mais esta ausência de intensidade cultural em Portugal porque vivo aqui. Este desinteresse parece-me mais evidente nos jovens, mas se analisarmos bem, as primeiras vítimas deste desprendimento com a cultura (e com a reflexão sobre a democracia, ou sobre o mundo e a sua organização) são as famílias destes jovens. As escolas são um espelho da sociedade, por isso, se a sociedade não protagoniza, diariamente, um estado de permanente curiosidade e consequentemente acesso ilimitado à cultura, as escolas também não o irão fazer. Os professores de música, por se relacionarem diretamente com a arte, devem, pelo menos, representar uma exceção a este panorama. Agora, será que isto acontece? Conheço muitos músicos que raramente leem um livro, vão ao cinema, assistem a espetáculos que aconteçam fora do seu circuito de conforto (ou seja, a cena musical).
XM – Do que temos lido sobre si, ficamos com a ideia de que vislumbra a arte numa perspetiva integrada. Concorda? Considera que as artes devem ser subsidiárias entre si?
JV – Nunca subsidiárias: as artes devem complementar-se. No meu entender as artes devem colaborar entre si. A arte numa perspetiva integrada torna-se, no meu entender, valiosa quando os artistas ambicionam, em colaboração, criar uma obra enriquecida por duas disciplinas artísticas díspares, uma obra singular na sua génese porque atinge um discurso que representa um "todo" e não um convívio entre formas de expressão artística. Um exemplo muito simples e direto: vamos compor uma obra que associa a música com o vídeo. Esta obra manifesta-se enquanto "todo" a partir do momento em que se torna difícil discernir qual das disciplinas em causa gera ou condiciona o discurso (e aqui falo apenas de um ponto de vista técnico), fugindo de lugares comuns de criação onde uma das artes é sempre a protagonista, como é o caso de um videoclip (onde o foco está na música) ou de uma banda sonora (onde o foco está no filme).
A interligação e comunicação entre diversas disciplinas artísticas fascina-me. Aliás estou neste momento a fazer um Doutoramento em Arte Contemporânea no Real Colégio das Artes da Universidade de Coimbra, cuja investigação recai muitas vezes, em exemplos de criação onde a interligação entre artes diferentes é fulcral. Recentemente, estreei em Abril uma "Sonata para Viola d'arco e Cubo Vazio". Esta Sonata, comissionada pelo projeto EMPTY CUBE (do curador João Silvério), excedeu positivamente os meus limites de contacto entre várias áreas artísticas, uma vez que o processo criativo da mesma despoletou problemáticas provenientes de outras disciplinas artísticas como a performance, a arquitetura e as artes plásticas. Esta obra consiste, fundamentalmente, num diálogo musical/performativo entre quatro instrumentos de expressão artística: a viola d'arco, um cubo (enorme) de madeira, uma galeria de arte e um projeto de curadoria de arte.
XM – Grande parte da sua formação foi realizada no estrangeiro... Se fosse hoje teria feito as mesmas opções? Como vê o ensino da música em Portugal atualmente?
JV – Sim. Sinto-me um privilegiado por ter estudado na Áustria e nos Estados Unidos. Teria tomado exatamente as mesmas opções.
Penso que seria injusto, da minha parte, avaliar o ensino da música em Portugal. Como referi anteriormente leciono poucas horas. Além disso, não tive uma experiência académica em Portugal, exceptuando a que vivi no Conservatório de Música de Coimbra – e essa não foi propriamente um exemplo.
Independentemente de não ter uma percepção mais profunda sobre o ensino da música em Portugal, sinto de um modo geral que ainda há uma imaturidade e falta de entusiasmo cultural em Portugal. Ainda há muita ignorância sobre a arte e, obviamente, sobre a música. Atenção, na minha opinião, um aumento de inscrições nos conservatórios do país não representa uma evolução em termos qualitativos. Apenas significa mais horas de ensino para recém-formados em Música. Se bem que essa situação também se tem vindo a modificar. Com os cortes do governo, os concursos públicos, segundo li, ficaram estagnados. O que também é extremamente negativo. Contudo, apesar de ser um cético, que admito que sou, tenho que mencionar algumas pessoas que conheci nestes últimos anos e que demonstram, pela sua entrega e dedicação, uma esperança saudável no progresso da educação: desde logo o diretor pedagógico do Conservatório de Música David de Sousa, o Professor Nuno Bettencourt Mendes, um senhor incansável que não para de tentar melhorar as perspectivas musicais de uma cidade pequena em dimensão e em ambição; e também tenho alguns colegas que demonstram, pela sua atitude e capacidade de adaptação, um desejo forte de seduzir as gerações mais jovens a transcenderem a inércia presente na sociedade atual; também sei de ações singulares que devem ser valorizadas, por exemplo as conferências recentes "A democracia e o ensino da música | O ensino da música e a democracia" organizadas pela APEM e pelo seu presidente, o António Ângelo Vasconcelos – alguém que não conheço pessoalmente mas que me parece ser um ativista muito sério na discussão sobre o ensino da música em Portugal e, claro, sobre o seu desenvolvimento.
XM – Tem projetos novos para lançar em breve? E concertos? Onde o poderemos ouvir nos próximos tempos?
JV – Vim agora de Espanha onde fui fazer dois concertos, um a solo e outro como convidado especial do projeto HUMAN EVOLUTION (dirigido pelo pianista galego Alberto Conde). Fizemos o concerto de apresentação do nosso primeiro disco no Festival Imaxinasons, em Vigo. Na próxima semana vou regressar a Espanha para tocar em Corunha no 1º Festival Jazz Garufa Club, também com o HUMAN EVOLUTION.
Há uns meses atrás estive na Áustria a dar concertos, um dos quais o dueto com o contrabaixista Lukas Kranzelbinder.
Nos últimos meses, durante as horas "vagas" de estrada, tenho ido para o estúdio gravar a minha música a solo. Ainda não planeei nada, no entanto, lentamente começo a ter o material necessário para fazer um disco.
Como fui distinguido como NOVO TALENTO FNAC 2014, andarei pelas Fnac's do país a partir deste mês. Em Julho, vou às Fnac's da área metropolitana do Porto. Em Setembro devo ir às Fnac's de Lisboa. Para além disso, também em Setembro, vou estar no Teatro Maria Matos para interpretar novamente "As Fabulosas Fábulas em Terra de Nenhures" com a Marta Bernardes.
Tenho também umas encomendas muito desafiantes: a banda sonora para uma peça de teatro (Janeiro 2015); e uma obra para assobios de um bairro SAAL (Janeiro 2015). Vamos ver....
Para saber datas exatas visitem: www.josevalente.com
XM – Mais uma vez, muito obrigado por este momento de partilha que nos proporcionou. Para terminarmos esta entrevista, vamos fazer-lhe uma pergunta mais abrangente... A cultura em Portugal é várias vezes apontada como uma área desprezada pelos que governam. Concorda com esta afirmação? O que considera ser urgente mudar? Se pudesse propor mudanças, quais seriam as suas prioridades?
JV – Concordo totalmente com a afirmação. Escrevi sobre este tema no ensaio "Ser de Cultura" presente na Revista Via Latina da Universidade de Coimbra em 2013. Os governos sempre tiveram uma postura indiferente perante a cultura. Digo mais, há uma enorme hipocrisia na relação entre os governos e a cultura. Os governos têm geralmente uma atitude de desprezo perante a cultura, mas ficam todos "inchados" quando um francês ou alemão lhe comunica que adora o fado. Os governos têm uma qualidade intelectual insignificante (a maioria dos governantes são incultos), mas quando se assina um tratado qualquer em Lisboa, contrata-se um músico "da moda" que aparenta pertencer aos quadros da "alta cultura" (ou seja um valor musical/artístico pobre, mascarado de erudito). Os governos não compreendem uma verdade universal: se tivermos conhecimento, mais depressa nos aproximamos da liberdade e da independência. Todos os cortes verificados na investigação científica/artística (de onde nasce a cultura contemporânea) demonstram uma atitude adversa à evolução cultural. No meu entender, uma crise financeira não pode justificar nem alimentar uma crise de valores e de capacidade interventiva. O que deveria fazer um governo de um país periférico como o nosso, perante um regime financeiro aparentemente inquebrável? Deveria apostar na cultura! Naquele elemento caracterizador e distinto que nos permite descobrir novidades e soluções, ou seja, nos permite expor uma independência e com essa independência, uma coragem. Uma independência inclusivamente apetecível aos outros países. No fundo, ao apostar no conhecimento estaríamos a fabricar uma moeda de troca mais poderosa do que qualquer Euro.
Passados 40 anos do 25 de Abril, é tempo de abandonarmos os receios e os trejeitos mesquinhos do tempo da velha senhora. Se nos deixarmos de preocupar com as aparências (que iludem), de nos preocupar em acompanhar as tendências de "lá de fora" talvez surja um espaço de incentivo às tradições contemporâneas (tradições que ainda não existem), um espaço de criação de tendências únicas e genuínas. Gerar e motivar tendências genuínas mas com critério, sem cair em slogans balofos como "porque é nacional é bom". Os portugueses, geralmente, opinam através de extremos e sofrem de um complexo de inferioridade. Quantas vezes não ouvimos, lemos comentários como "Viva o Pop nacional! Porque o nosso Pop não fica nada atrás do que se faz lá fora!" (cá está, o complexo de inferioridade perante o estrangeiro. E muitas vezes esse Pop nacional é tão mau quanto o internacional. Vamos ficar felizes somente porque em Portugal se fazem coisas tão más quanto lá fora? Porque não criamos a alternativa?); ou então, "tenho um primo que emigrou para França. Limpa Sanitas. Lá é que é bom. As sanitas são cor de rosa e as nossas, lamentavelmente, são todas brancas."
Vivemos um período de tenebrosa pobreza. Pobreza de meios, de recursos, de igualdade, de solidariedade, de reflexão. Um exemplo desta pobreza espelha-se, em parte, nos miniclubes que defendem certos de modos de vida/hábitos/interesses. Para mim estes miniclubes são um paradigma da democracia dividida e não participativa, característica deste início de século ocidental. Eu tenho a sensação de que os miniclubes se estão a multiplicar, que são cada vez mais fechados em especificidades, escassos em número de participantes e um pouco inconsequentes. Esta circunstância é fruto de uma tipologia de relações humanas bastante presente na sociedade atual. Generalizando: parece-me que os humanos precisam de se alimentar de estímulos de aceitação, precisam de uma confirmação existencial permanente. Por isso mesmo, encontramos cada vez mais aglomerados de pessoas que gostam de comida crua ou que só vêm cinema iraniano. Vivemos, neste início de século, um período da nossa evolução em que o homem-massa é cada vez mais insensível, uma vez que está viciado na constante atualização tecnológica e no desejo de receber novidade, seja esta positiva, negativa, relevante ou irrelevante. Um exemplo deste fenómeno é uma situação habitual em concertos: o humano/espectador vai a um concerto, tira uma foto ou faz um curto vídeo ilegal e "posta-o" (adoro esta palavra, pois é na sua essência bastante rude) no Facebook com um comentário "estou a ver fulano de tal" (um músico qualquer com importância social significativa, tipo figura pública). Ora, semelhante gesto revela vários aspectos: 1) o espectador não está efetivamente a ouvir, ou melhor não está concentrado no que se passa em palco. Para ele, ir ao concerto é somente um ato de afirmação pessoal, baseado num sentimento básico, um "eu estive aqui e tu não". 2) de repente, um músico sem se dar conta está a interagir com imensas pessoas de forma descontrolada. Isto até poderia ser bom, sendo que, neste caso a interação é extremamente impessoal e superficial. Os miniclubes de vontades e de gostos resultam de um desejo ávido por parte do humano em se sentir especial. Depois, há o reverso da medalha: em vez de se especializar num fundamentalismo literário, por exemplo, o humano apenas absorve e não contesta, não comenta e obviamente, não vota, não pensa sobre o que o rodeia e fica estanque. Mas vai a todos os festivais com títulos alusivos a uma marca de telemóveis, arrastado pela opinião das massas (a moda) e seduzido pela publicidade. Aliás, dentro deste panorama temos que ter em consideração a insegurança financeira sobretudo no nosso país. Estando um humano com dificuldades para sobreviver, como poderá este ocupar os seus pensamentos com as tarefas de uma associação ou coletividade que organiza workshops de costura experimental? Perante semelhante conjuntura, o humano está condenado a ocupar os seus tempos livres com a oferta dos media, ou seja, telenovelas, reality shows e concursos com participantes pouco talentosos (que alimentam o sonho do humano em se tornar especial). Quando este humano, ou melhor, homem-massa decide gastar tempo e dinheiro, escolhe aquilo que lhe foi inconscientemente imposto: os festivais das marcas de telemóveis, onde este poderá atordoar a sua falta de "sonho" com cerveja. O Agostinho da Silva já comentava este ciclo de vida nos anos 90, na altura, devido ao aumento da toxicodependência jovem. Este mesmo ciclo de vida, lembra-me uma parte da letra da canção "Felicidade" do Tom Jobim: "A felicidade do pobre parece / A grande ilusão do carnaval / A gente trabalha o ano inteiro / Por um momento de sonho / Pra fazer a fantasia / De rei ou de pirata ou jardineira / E tudo se acabar na quarta-feira".
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