Fernando Cunha leva-nos numa viagem, passando pelos Delfins, Resistência e tantos outros projetos em que deixou a sua marca…
O nosso entrevistado trabalha a música em prismas diversos, indo desde a produção à execução e composição musical, o que faz de forma irrepreensível e merecendo o aplauso da crítica e dos seus pares. Quem não se lembra dos Delfins, Resistência ou Ar de Rock? Estes são só alguns dos projetos que lembrámos ao longo da entrevista que se segue e que mostra bem, não só os atributos musicais, como também a personalidade do homem que encarna várias personagens que se unificam num só artista. Convidamos os nossos leitores para, nas próximas linhas, ficarem na companhia de Fernando Manuel Silva Gomes Ribeiro da Cunha...
XpressingMusic (XM) – Fernando Cunha, muito obrigado por ter aceitado este nosso desafio. Por onde andava o Fernando Cunha antes de 1982 e do aparecimento dos Delfins? Tocava noutros projetos? Quando começou a tocar?
Fernando Cunha (FC) – A minha aventura com a música começou no Colégio Militar... Após o regresso de Tete, Moçambique em 1973, depois de mais uma comissão do meu pai (oficial de carreira de Infantaria) na guerra colonial. Entrei para o colégio com 10 anos e fiz lá o 1º e 2º ano do ciclo preparatório, onde tive aulas de educação o musical e aprendi a tocar flauta. Fiz também parte do coro do colégio nesses 2 anos onde tínhamos um excelente professor de canto, que era padre. O coro cantava arranjos vocais a 4 vozes de clássicos religiosos, e costumávamos cantar nas cerimónias oficiais do Colégio, nomeadamente no Mosteiro dos Jerónimos onde acabávamos sempre a cantar o Hino Nacional. Foi nessa altura que conheci o Pedro Aires Magalhães, 4 anos mais velho, colega de carteira do meu irmão e grandes amigos. O Pedro tinha uma banda de rock que ensaiava na sala da música onde nós tínhamos os ensaios do coro, e foi aí que vi pela primeira vez uma guitarra elétrica e um baixo ao vivo.
Apenas comecei a tocar guitarra sozinho mais tarde já no liceu da Polivalente em Cascais, com uma guitarra clássica em que substituí as cordas de nylon por cordas de aço, que era da namorada do meu irmão mais velho. Tentava tirar de ouvido os discos que eu e os meus irmãos comprávamos, e por vezes passava dia e dias ou semanas até conseguir apanhar as malhas. Só aos 17 anos é que tive a minha primeira guitarra elétrica (uma Maya Strat) e também o meu primeiro professor de guitarra, que foi o Zé Chan, músico de ascendência chinesa retornado de Moçambique e que tocava muito bem guitarra elétrica, estilo Jimmy Hendrix, e que tinha uma banda de bares chamada Killers Band. Foi nessa altura que conheci o Rui Fadigas, que era o 2º guitarrista dessa banda, nessa altura ainda não se tinha dedicado ao baixo. Formei o grupo que daria origem aos Delfins com o João Carlos Magalhães no baixo, o Silvestre nos teclados e o Álvaro na bateria. Ensaiávamos praticamente todos os dias à noite depois do jantar numa casa que era da avó do Silvestre em Cascais e que estava desocupada. Tocámos ao vivo apenas para os nossos amigos na sala de ensaio onde lhes íamos mostrando os novos temas originais. Mais tarde, o Álvaro saiu e entrou o Pedro Molkov para a bateria e começamos à procura de um vocalista. Fizemos um casting onde apenas apareceu um candidato, que foi o Miguel Ângelo, irmão do João Carlos e que também andava no liceu de S. João, embora fosse 3 anos mais novo que nós.
O Miguel foi logo aceite e com esta formação gravamos 2 singles, produzidos pelo Pedro Aires Magalhães para a editora Fundação Atlântica, o "Letras"/ "Vento Mudou" em 1984 e "A Casa da praia " em 1985.
XM – Nos Delfins passou certamente anos de trabalho muito intenso. Considera que esses anos foram determinantes para que também abraçasse a carreira de produtor?
FC – Sim, mas não só, pois para além da música, sempre tive uma grande paixão pela engenharia de som e produção de discos. Na altura não havia em Portugal cursos específicos nessas áreas. Assim, estudei 3 anos de engenharia eletrónica, os 2 primeiros na faculdade de Ciências de Lisboa e o 3º no Instituto Superior Técnico, que me deram a bagagem teórica necessária para poder estudar e evoluir sozinho nessas áreas com autodidata. Interrompi o curso no 3º ano para cumprir 17 meses de serviço militar obrigatório com oficial miliciano de artilharia, e depois quando saí em 1988, já tínhamos gravado os álbuns "Libertação" e "U Outro Lado Existe", sincronizados com os meus períodos de férias, e começámos a ter tournées muito extensas incompatíveis com os estudos no técnico. Foi aí que tive de optar entre uma carreira de músico profissional ou de engenheiro electrónico. Claro que optei pela de músico mas também pela de produtor e engenheiro de Som. No seguimento dessa decisão, estagiei 1 ano como técnico assistente do António Pinheiro da Silva no Estúdios Namouche em Lisboa. Foi no Namouche que produzi os meus primeiros discos, os Maxi´s Singles "Um Lugar ao Sol" e "Bandeira", e o álbum "Desalinhados" dos Delfins, o "U Uà Uá" dos Capitão Fantasma, e o 1º disco do Carlos Rouco. Quando saí do estúdio Namouche, convidei o Miguel Ângelo para fundarmos um sociedade e construirmos o Estúdio 1 Só Céu em Cascais. O estúdio foi desenhado pela Jocavi e montado pelo Engenheiro Inglês Jonathan Miller, com quem trabalhei no 1 Só Céu nos anos que se seguiram. Na estreia do estúdio, produzi o triplo álbum de vinil "Ser maior", os singles "Sou como um Rio" e " A nossa Vez", o álbum "Babilónia" dos Delfins e também os primeiros álbuns dos Santos e Pecadores, Polo Norte, Maria Leon, entre outros...
XM – O projeto Resistência foi uma ideia que partiu do Fernando? Esperava o rápido e enorme sucesso que se veio a constatar?
FC – A ideia do projeto Resistência tal qual o conhecemos, nasceu após uma participação numa grande festa da praça do Rossio em Lisboa, em que eu, o Pedro Aires, o Miguel Ângelo e o Tim fomos convidados pela organização, para tocar 3 temas apenas com guitarras acústicas, porque não havia condições técnicas para levarmos as nossas respetivas bandas. Tocámos com apenas 3 guitarras (uma Clássica e duas Folk) e a 4 vozes (ensaiámos nos camarins meia hora antes de subirmos ao palco) os temas: Nasce Selvagem (Delfins); Fado (Heróis do Mar); Circo de Feras (Xutos e Pontapés). A reacção do público que enchia por completo a praça foi tão boa, que nos levou a decidir trabalhar e aperfeiçoar esse conceito acústico... Logo que tivemos a primeira oportunidade de nos reunirmos, fomos para o estúdio Êxito em Lisboa, onde testámos essa ideia. Convidámos mais músicos para participar, os resultados das demos foram muito bons e gravámos logo de seguida no mesmo estúdio o álbum "Palavras Ao vento". E foi assim que ainda nesse mesmo ano de 1992 nasceu a Resistência.
XM – Quando, em 1998 lança o seu primeiro trabalho a solo "O Invisível" pretendeu trazer ao público sonoridades que ainda não tinha explorado?
FC – Sim, nessa altura os Delfins tocaram no Brasil, Moçambique, África do Sul... e conheci muita música e músicos excelentes que me inspiraram a compor um álbum de fusão entre a pop dos Delfins e a música mais de raiz africana e brasileira e, até em 2 temas, a inclusão de rap, resultando num disco com uma sonoridade bastante étnica. Foi também um disco que me deu um gozo especial a gravar, pois conta com a participação de grandes amigos como: African Voices; Boss Ac; General D; Olavo Bilac; Miguel Ângelo; Pedro Ayres Magalhães; Maria Leon; Kika (dos Black Out); Marta Dias; Jonathan Miller; Rogério Correia; Miguel Gameiro (Polo Norte) e Rui Veloso.
XM – Ar de Rock resulta da enorme vontade de nunca deixar os palcos? Fale-nos um pouco deste projeto...
FC – Os Ar de Rock nasceram em 2010 após o fim anunciado dos Delfins. No início não era uma banda, começou por ser um projecto cujo objectivo era produzir um grande espetáculo de celebração da música portuguesa chamando a atuar no mesmo palco vários artistas nacionais que habitualmente não tocam juntos, a interpretarem algumas das melhores canções do rock Português que apesar da passagem do tempo ainda perduram na nossa memória coletiva. E foi nesse sentido que nos estreámos num grande concerto nas Festa do Mar em Cascais onde atuámos para cerca de 27000 pessoas e que contou com a participação de: Fernando Cunha (Delfins/Voz e Guitarra); Tim (Xutos/Voz e Guitarra); Miguel Gameiro (Polo Norte/Voz); Olavo Bilac (Santos e Pecadores/Voz); Paulo Costa (Ritual Tejo/Voz); Maria Leon (Ravel/Voz);Lara Afonso (Voz); Diogo Campos (Legal Evidence/Voz e Guitarra); Luiz Arantes (Guitarra), Flak (Radio Macau/Voz e Gtr); Miguel Magic (Polo Norte/Baixo); João Gomes (Kick Out The Jams/Teclados); Emanuel Andrade (Ravel/Teclados); Emanuel Ramalho (Delfins/Rádio Macau/ Bateria). O concerto correu muito bem e deu origem à edição de um CD/DVD "Ao Vivo na Baía de Cascais". No início do ano seguinte, fizemos um grande concerto de Solidariedade no Campo Pequeno a favor da Associação Novo Futuro, que acolhe crianças em risco, que teve a participação, para além dos que estiveram em Cascais, também do Rui Pregal Da Cunha (Heróis do Mar); Maria Bradshaw e Rui Veloso. A partir daí fizemos a Tour de Verão em Portugal, fomos tocar ao Festival Internacional de Macau, e na reentre, decidimos gravar com os músicos do núcleo base um novo CD em estúdio com arranjos novos para alguns temas que seleccionamos do reportório português e que contem também um original da minha autoria chamado "Dizem"... E assim nasceu a banda Ar de Rock.
XM – Enquanto produtor, recorda com especial carinho alguma ou algumas das suas produções?
FC – É difícil escolher apenas uma situação, mas penso que o que devo destacar aqui, foi a oportunidade única de poder produzir um álbum, o "Saber Amar" dos Delfins ao longo da nossa Tour de 1996, onde fomos gravando o cd em excelentes estúdios com engenheiros de som top nas cidades/países por onde íamos passando e que foi verdadeiramente inesquecível... dava para escrever um livro... Nesse disco participaram os artistas Brasileiros e Sul Africanos:
– Gabriel o Pensador; Paulinho Mosca; Roberto Frejat (Barão vermelho);
– A secção de metais do D´Javan nos temas: "Saber a Mar", "Primeira Vez" e " Através da Multidão".
– A secção rítmica da banda Côr do Som no tema "Solta os Prisioneiros - Navegar é preciso).
– Um coro Zulu Sul Africano de Gospel no Tema "Estou ao Teu Lado".
Gravámos em cidades e países como Lisboa/Portugal; Genebra/Suíça; Joanesburgo/África do Sul; São Paulo/Brasil; Rio de Janeiro/Brasil; Londres/Inglaterra.
XM – Na peça "O Breve Sumário da História de Deus", encenada por Carlos Avillez, tornou-se ator durante tês meses para interpretar o papel de Adão. Gostou dessa experiência? Vê as artes numa perspetiva integrada sendo portanto natural esta passagem na sua carreira?
FC – Sim, cresci para a música numa altura em que estavam na moda as chamadas óperas Rock. Algumas marcaram-me muito, ao ponto de desejar escrever também uma obra desse tipo, estou a lembrar-me das que mais gostei: Quadrophenia e Tommy (dos The Who); Hair e Jesus Christ Superstar. Acho que a música e a representação são compatíveis pontualmente. Para mim, juntar as duas artes foi realmente um grande desafio, de onde guardo muito boas recordações, pois compusemos toda a banda sonora para a peça, e para além de atuarmos como atores, também tocávamos todos os temas ao vivo. Foram 33 sessões em 3 meses. Foi também uma experiência única trabalhar com o encenador Carlos Avilez e contracenar com o elenco da época do Teatro Experimental de Cascais, recheado de grandes atores consagrados e também de novos talentos oriundos da escola do teatro.
XM – Há alguma composição sua que eleja como favorita?
FC – Também me é difícil de escolher porque, para mim, a resposta a essa pergunta vai mudando com o passar do tempo, mas penso que neste momento, olhando para trás, a música mais emblemática dos Delfins e que mais pessoas identificam de imediato como tema do grupo é a Baía de Cascais.
XM – Ao longo da sua carreira foi assistindo à evolução da música em Portugal e no mundo... O que é mais significativo para o Fernando? Considera que as condições de trabalho melhoraram para os músicos e restantes agentes do espetáculo? E a música em si?...
FC – Sim, sem dúvida , que as condições técnicas de trabalho quer ao nível dos concertos , quer ao nível dos estúdios de gravação melhoraram imenso desde que nós começamos. Também existe um acesso a toda uma informação musical e técnica através da internet que não havia nos anos 80. Quem quiser aprender qualquer assunto relativo à indústria musical, basta ter um computador com acesso a internet e muita vontade e determinação. Quanto à música em si, acho que a facilidade com que hoje se consegue gravar num "home" estúdio, com um investimento financeiro muito acessível à grande maioria dos músicos e com excelentes resultados de som e performance, permitiu e permite o aparecimento sistemático de muitos mais grupos e artistas bastante criativos e a fazerem coisas muito boas nas diversas áreas da música portuguesa.
XM – Agora que se fala tanto de crise... Continua a ser possível viver-se da música em Portugal?
FC – Isso já é outra História, a mesma tecnologia digital que hoje nos dá a possibilidade de aprender, criar, gravar e divulgar a nova música, também foi responsável pela queda mundial gradual da indústria da música e, no caso de Portugal, penso que já atingiu os 90% (desde os anos 80 até agora). Ou seja, os rendimentos que permitiram a independência financeira aos grupos portugueses dos anos 80 e 90, que vinham dos direitos de autor e royalties de vendas dos discos e dos bons cachets do então mercado de espetáculos existente dependente dos concertos de entrada livre promovidos anualmente pelas câmaras municipais um pouco por todo o país, foi desaparecendo progressivamente desde 2000 em diante tornando-se praticamente inexistente nos dias de hoje. Agora vivemos numa situação em que os músicos têm enormes dificuldades em viver apenas da música, em especial os da área do pop/rock cantado em Português. No entanto, penso que com o tempo se irão aperfeiçoar e descobrir novas formas de redefinir o mercado, mais uma vez através da internet, com técnicas de marketing de vendas e produção de autor, de forma a devolver aos músicos o rendimento justo a que têm direito pelo seu trabalho e que lhes poderá permitir atingir a sua independência financeira e consequente profissionalização.
XM – Que projetos abraça neste momento enquanto músico e produtor?
FC – Neste momento estou a coproduzir em conjunto com o Tim e o Pedro Aires as demos do próximo álbum da Resistência e, de seguida, avançaremos para a produção final do álbum, se tudo correr como desejamos. De seguida penso terminar o meu 2º cd a solo já por 3 vezes adiado e logo que possível gravar um novo álbum dos Ar de Rock.
Desde 2008 que desenvolvi também todas as competências na área da produção de espetáculos, sendo neste momento o principal produtor executivo da UGURU Música, empresa do meu irmão António Cunha. Produzi já inúmeros concertos nos últimos anos com artistas nacionais e internacionais (descarregar PDF), e é mais uma atividade da indústria da música que gosto imenso de fazer, pois permite-me conhecer e trabalhar com inúmeros excelentes artistas que doutra forma provavelmente nunca viria sequer a conhecer.
XM – Muito obrigado mais uma vez por este tempo que nos dedicou. Para terminarmos, gostaríamos que abrisse um pouco da caixa dos seus projetos para que nos revelasse o que vamos poder ver e ouvir num futuro próximo...
FC – Vou continuar a dividir o meu tempo pela várias vertentes da música em que me encontro envolvido... - Na produção musical, espero até ao fim do ano editar o novo cd da Resistência; - Na composição, vou continuar a compor para o meu segundo cd a solo para ser editado em 2015; - Na Produção de espetáculos, estou a desenvolver um projeto para concertos no Verão em Cascais, vou produzir o MistyFest 2014, em novembro, bem como a nova tournée dos Harlem Gospell Choir em dezembro, entre outros artistas internacionais a confirmar ainda ao longo do ano.
Historial de Produção de Espetáculos
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