Mailis Rodrigues e o Intonaspacio…
Mailis Rodrigues vem ao XpressingMusic explicar em que é que consiste este instrumento que criou e que já dá que falar nos quatro cantos do mundo. A nossa entrevistada é investigadora e doutoranda da Escola de Artes da Universidade Católica do Porto. Mailis Rodrigues tem ainda formação na área do som e imagem. A sua formação, os seus interesses e um pouco da sua vida serão aqui passados em revista. Refira-se ainda que o Intonaspacio é um dos semifinalistas da competição Margaret Guthman da Universidade Georgia Teh nos EUA. Esta competição premeia ideias inovadoras de todo o mundo nas áreas do design, engenharia e performance de instrumentos musicais.
XpressingMusic (XM) – Mailis Rodrigues, agradecemos desde já a amabilidade demonstrada para com o XpressingMusic. Quando surgiu o seu interesse pela ligação entre a tecnologia digital e a música? A música e a tecnologia sempre estiveram presentes na sua vida?
Mailis Rodrigues (M.R.) – Bem, a música acho que esteve sempre presente, sempre gostei muito de ouvir música e ir a concertos, embora nunca tenha tocado nada ou feito música. Acho que isso representa uma responsabilidade enorme que deixo às pessoas que admiro musicalmente. A tecnologia, não sei. Talvez não a tecnologia digital mas mais o interesse pela eletrónica, talvez esse tivesse sempre lá, mas de forma mais subtil. Quando era criança gostava muito de montar e desmontar coisas, e achava sempre que era capaz de arranjar a aparelhagem e o leitor VHS quando se avariavam. Costumava abri-los para tentar perceber porque é que não funcionavam. O momento em que comecei a associar as duas foi já na ESAD nas Caldas a ver trabalhos de amigos meus que se interessavam por artistas, que combinavam a tecnologia à arte. Interessava-me não tanto por uma questão da tecnologia ou do gadget, mas pela forma criativa como se utilizava aparelhos do dia-a-dia. Há um trabalho do Nam June Paik, em que ele liga um microfone à entrada do vídeo na tv e isso cria uma série de interferências na imagem. Eu gosto imenso dessa exploração dos limites do material e das suas falhas. Ou de como subverter a função de determinado objeto para criação artística. Acho que ter optado por uma formação em que combinava estas duas áreas foi uma forma de conciliar interesses que me pareciam tão distantes, até me ter apercebido que havia imensa gente, já há muito tempo, a fazer esse género de misturas.
XM – Pode resumir-nos em que é que consiste o instrumento que criou e ao qual chamou Intonaspacio? Quais as principais características deste instrumento? O que o aproxima e distancia de outros instrumentos musicais já existentes?
M.R. – O Intonaspacio é um instrumento digital ou seja, é um instrumento em que a criação do som, ao contrário dos instrumentos "tradicionais" (chamemos assim), não é feito por uma via mecânica – eu faço uma ação e o som é consequência da minha ação; mas gerado através de fórmulas matemáticas, por síntese ou usando samples (pequenos excertos de som pré-gravados). Isto tem várias consequências. Uma delas é que a relação gesto-som pode ser qualquer uma, ou seja, eu posso agarrar no código que gera o som no Intonaspacio e estabelecer que quando o músico bate na estrutura do instrumento, então a frequência do som vai ser mais grave; e no dia seguinte alterar e dizer que afinal quando o músico fizer o mesmo gesto, o som vai parar.
Eu comecei a desenvolver o Intonaspacio no IDMIL, em Montreal na Universidade McGill. Fui para lá porque no IDMIL eles desenvolvem já há algum tempo instrumentos digitais e por isso pude ter condições de trabalho fantásticas e ajuda naquilo que precisei. Todo este trabalho foi feito um bocado na base do autodidatismo, eu não tenho conhecimentos de eletrónica, então a minha estadia em Montreal permitiu-me aprender imenso, ter acesso às coisas e acima de tudo testar, experimentar e errar.
O Intonaspacio é no fundo um interface para controlar um programa criado no computador para gerar música. Para mim é importante ter algo que os músicos possam de facto mexer e explorar, e por isso a decisão de fazer um objeto em vez de manter tudo no computador. O instrumento em si, pode-se dizer que, pelo menos por agora, é composto por duas partes: o objeto físico e o computador. Tem a forma de uma esfera e na sua estrutura tem uma série de sensores que calculam diferentes coisas como distância, orientação ou impacto. Essa informação é toda enviada para o computador através de um sistema wireless, e depois no computador são criadas as tais relações gesto-som de que falei há pouco. Essas ficam um bocado ao critério do compositor. Para além disso tem um microfone que me permite ter uma análise da resposta acústica do espaço onde estou. Esta é no fundo a característica principal do Intonaspacio para mim, e aquilo que o diferencia, porque o meu objetivo sempre foi criar um instrumento musical que pudesse integrar a influência do espaço no som. O espaço torna-se um parâmetro a ter em conta na composição. Desta forma tocar uma mesma composição em espaços diferentes resultará sempre numa obra diferente porque a influência que o espaço vai exercer é outra.
XM – Porquê Intonaspacio?
M.R. – Intonaspacio, porque é uma homenagem aos Intonarumori do Luigi Russolo, futurista italiano que no início do século passado criou este conjunto de instrumentos mecânicos. Os Intonarumori recriavam sons de coisas consideradas pouco musicais como o vento, o motor dos carros e assim. São, no fundo, um dos primeiros sinais de abertura dos sons tradicionais da música para novos sons mais ligados ao quotidiano. Eu vejo-o assim como o Duchamp quando apresenta o urinol na galeria de arte. É uma carta-branca para se poder usar o som que se quiser usar. De resto o spacio vem ligado à questão do espaço e a esse meu interesse de ter um objeto que crie sons situados.
XM – Numa altura em que se fala tanto em cortes na ciência, o caso da Mailis não é exceção e para se apresentar na competição Margaret Guthman da Universidade Georgia Teh nos Estados Unidos teve que colocar mãos a uma iniciativa de angariação de fundos... Pode falar-nos um pouco desta aventura?
M.R. – O crowdfunding não esteve diretamente relacionado com a FCT. Eu tive bolsa de doutoramento durante os quatro anos, que terminou em dezembro do ano passado. Em relação aos cortes, a FCT de facto, antes da crise pagava 750 euros anuais para deslocações, valor a que o ano passado eu já não tive direito porque eles entretanto alteraram as regras. Era um financiamento que ajudava e teria sido importante para esta deslocação, por exemplo. A questão do crowdfunding na verdade foi uma experiência, em que eu não estava nada convencida, pelo contrário, até tinha um bocado de vergonha, porque sempre associei o crowdfunding a projetos mais para venda de produtos ou fazer um filme. Achei que nunca ninguém me iria financiar para viajar, mesmo que fosse uma viagem a trabalho. Quando me passou a euforia de saber que tinha sido selecionada e comecei a fazer contas, entrei um bocado em pânico, a minha bolsa ia acabar nesse mês, tenho propinas para pagar, e a viagem era muito cara. Então comecei a pesquisar na net e fiz mesmo uma pergunta "ao google" do estilo – como financiar uma viagem? ou algo do género, e começaram a aparecer sites de crowdfunding específicos para viagens (mais ligado ao voluntariado e assim) e no meio disso alguns artigos de jornais que faziam algumas comparações entre sites de crowdfunding. Nesses artigos descobri este, o gofundme, que era mais direcionado para projetos pessoais e não bloqueava o dinheiro recolhido. Existem sites deste tipo em que se dá um prazo e se não se recolhe o valor pedido até lá, não se fica com dinheiro nenhum. Eu como não estava muito convencida do sucesso e como para mim qualquer ajuda era bem-vinda optei por este que não tinha regras tão estritas. A verdade é que consegui juntar o dinheiro todo, acho que tenho amigos e uma família linda (risos). Eu esperava sempre mais gente a dar menos dinheiro do que, como aconteceu, menos gente mas a dar-me quantias enormes. Isso aumentou a responsabilidade, não que ela não estivesse lá, mas de alguma forma fez-me sentir que tinha de fazer o máximo porque estas pessoas confiam o suficiente em mim para me darem este dinheiro, que numa altura como aquela em que estamos agora, é super precioso.
XM – Porque decidiu ir para Grenoble realizar o mestrado em Arte, Ciência e Tecnologia? Procurava aprofundar os seus conhecimentos em modelos físicos que recriam digitalmente o comportamento mecânico dos instrumentos musicais? Em Portugal não existia uma formação similar?
M.R. – Quando fui para Grenoble ia já com a ideia de fazer este instrumento, mas depois isso não se proporcionou e eu acabei por trabalhar no centro de investigação em Grenoble cujo trabalho era nessa área da síntese por modelo físico. Em Portugal, na altura, acho que não havia nada do género, talvez a Católica tivesse alguma coisa, mas a Católica sem bolsa é impossível. As propinas na França são absurdamente baixas, eu paguei 450 euros pelo ano todo! Eu comecei por tentar um mestrado no IRCAM em Paris, que se chamava ATM (Acústica, Tecnologia e Música penso eu). Como me interessava muito a acústica, achei que era o ideal. Mandei o projeto com a ideia do Intonaspacio, escrito num francês terrível. Eles responderam-me a dizer que o meu projeto era demasiado artístico para esse mestrado e sugeriram-me o de Grenoble. Pronto, reenviei a minha candidatura e fui aceite. Foi ótimo ter ido para lá, aprendi imenso, contactei com outro sistema de ensino e aprendi francês como deve ser.
XM – Qual o passo que pensa dar após esta etapa da competição? Já pensou em encontrar investidores para produzir o Intonaspacio tornando-o acessível a músicos e compositores?
M.R. – Após a competição só quero sentar-me e terminar de escrever a minha tese. Ando a trabalhar há quatro anos nisto e sinto mesmo que está no momento de fechar. O concurso ajudou-me a estabelecer prazos e isso foi importante.
Nunca pensei na questão de investidores porque acho que sempre vi o Intonaspacio como um protótipo. Mas claro que quero que compositores e músicos o utilizem, gosto de fazer coisas que possam ser usadas. Estou a trabalhar com um amigo meu que se ofereceu para me ajudar a repensar a estrutura do instrumento. Então vai ter uma forma mais robusta, essa quero, até como parte do meu doutoramento, entregar a vários performers e compositores para experimentarem e criarem música com ele. Depois da tese, se houver possibilidade de o instrumento ser utilizado e as pessoas tiverem interesse, ótimo. É a possibilidade que mais me satisfaz.
XM – Tem algum site ou página online que os nossos leitores e seguidores possam consultar para saberem ainda mais sobre si e as suas criações?
M.R. – Eu não tenho nenhum site, sou bastante crítica com o meu trabalho e não gosto muito de falar das coisas que faço, porque tenho sempre a ideia de que não são suficientemente boas. Mas para o Intonaspacio fiz uma página no site do IDMIL (http://www.idmil.org/projects/intonaspacio), está em inglês. E na Católica em principio deve estar para ser criado uma outra, desta vez em português. Talvez no futuro. A verdade é que não tenho muitas criações, por isso nunca senti necessidade de criar um site.
XM – Tem algum conselho ou máxima de vida que possa partilhar com os investigadores portugueses que muitas vezes se encontram animicamente fragilizados pela falta de apoio e de investimento na investigação?
M.R. – Máxima não tenho mas, não sei, acho que o que posso dizer é para tentarem todas as possibilidades, mexer, furar e mais tarde ou mais cedo alguma coisa há de surgir. Eu sou muito ansiosa e para mim é mesmo difícil lidar com estas situações de incerteza, mas normalmente tenho tendência para me pôr a tentar muitas coisas ao mesmo tempo. Às vezes há uma ou outra que resulta. Mas não desistir acho que seria o meu conselho. Se é um trabalho que gostam de fazer e que é importante, é tentar sempre contrariar o panorama de crise e depressão. É um bocado cliché mas pronto. Eu costumo brincar dizendo que temos de ver as coisas como sinusoides, há sempre um momento em que a onda volta a subir. Mas isto já é um bocado nerd demais.
XM – Agradecemos mais uma vez ter aceitado o nosso convite para esta entrevista. Para terminarmos, gostaríamos que nos dissesse quais os seus planos para o futuro... Já se vislumbra mais alguma criação sonoro-musical no horizonte dos seus dias?
M.R. – Obrigada eu pelo interesse. Para depois da tese ainda não sei, tenho andado com umas ideias. Gostava de explorar os wearables – tecidos com sensores, para a criação musical. Mas ainda está tudo muito no ar, tenho de arranjar financiamento se quiser continuar a trabalhar em investigação. Mas aqui em Portugal, pelo menos, e como se viu pelos resultados dos concursos da FCT, essa possibilidade está a tornar-se difícil. Vamos ver o que surge.
Clayton Mamedes - Entoa
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