Teresa Gabriel fala-nos do seu percurso e do recente trabalho “Rites of Passage”…
Com formação em Som, Canto, Música, Yoga, e Xamanismo, foi há 13 anos atrás que deu início à sua caminhada pela música alternativa, folk e celta. Teresa Gabriel, autodidata da guitarra desde os 9 anos, tem colaborado nos últimos anos com um considerável leque de artistas da "música do mundo". A nossa entrevistada estudou também música indiana, com Nandini Muthuswami, e música búlgara com Dessislava Stefanova em Londres. As composições de Teresa Gabriel emanam do seu interesse pelas antigas tradições ligadas à natureza, como o xamanismo, inspiradas também pela vontade de dar respostas aos problemas que vivemos atualmente. O ouvinte é assim conduzido numa viagem que alia a riqueza tímbrica e versátil da sua voz, à criatividade da guitarra acústica. Teresa Gabriel utiliza diversas afinações alternativas criando desta forma os seus próprios acordes e uma sonoridade muito própria de guitarra, que se torna, ela própria, uma segunda voz.
XpressingMusic (XM) – Começamos esta entrevista agradecendo a oportunidade que nos deu de conhecer melhor o seu trabalho. Como primeira questão, poderemos começar por falar dos vários artistas e projetos com os quais já colaborou... Pode mencionar-nos alguns deles? Houve algum ou alguns que a tenham marcado de forma especial?
Teresa Gabriel (T.G.) – Em 2005 e 2006 colaborei com os ALAP (música indiana com sitar e tablas), projeto que me desafiou a soltar a voz das palavras e explorar outras melodias e outra forma de sentir a música de forma mais devocional, para aprofundar a linguagem musical.
Colaborei, também, de 2007 a 2009 com Ambiens Indages e Sérgio Walgood, dois projetos eletrónicos de chill out pioneiros, em que pude criar de outra forma, utilizando a voz como uma espécie de sintetizador que se funde com a composição, e criar melodias e letras para ambientes e narrativas imaginativas e com um caráter mais onírico.
Cantei, também, com os Terrakota, com os Atma, Hugo Claro, com a Sara Tavares e a Romi e outras cantoras em noites a capella, com o cantautor Jamie Woone o projeto Orchid Star em Londres, com o percussionista étnico Baltazar Molina (com quem fui à Turquia na nossa pesquisa de música sufi, que ambos adoramos), com o Norbi Pan (tocador de hang-drum) em Amsterdão...
Também fiz muitas viagens sonoras sagradas com vários musico-terapeutas-artistas (Bruno Teixeira, Ruben Branco, Rodrigo Maia Loureiro, Angelo Surinder, Anu Biak) que me levaram a aprofundar ainda o sentido do sagrado que tenho em relação à música e ao som, e como podemos meditar, viajar, expandir a nossa consciência e criatividade, e fundir instrumentos diferentes buscando uma abordagem mais vibracional e menos "musical", utilizando instrumentos como taças tibetanas, tambor xamânico, gongos, didgeridu, harmónium, shruti box, etc...), acabando por criar uma espécie de linguagem universal, uma linguagem global para estados de consciência que todos experienciamos enquanto seres humanos.
Todas estas colaborações me marcaram, pois foram enriquecedoras, nasceram de cumplicidades e de visões semelhantes na abordagem da arte e em visões em relação à vida, criando momentos de muita celebração, aprendizagem e expansão. Surgiram todas em momentos de alinhamento muito forte, com os meus próprios propósitos e intenções, com o meu trabalho, com fortes sincronicidades.
XM – O seu interesse pelas antigas tradições ligadas à natureza, como o xamanismo, confere características únicas à música que produz. Pode referir-nos algumas destas características? Estas particularidades podem ser consideradas mais-valias para o seu trabalho no que à originalidade diz respeito?
T.G. – Penso que aquilo que o xamanismo me trouxe foi um sentimento de entrega muito grande ao processo criativo que acontece quando largamos o controlo. Quando deixamos de pensar, analisar, dissecar, separar, racionalizar e simplesmente nos ligamos ao som da forma mais primordial e visceral possível, como ligação direta à alma e ao coração, e assistimos ao que acontece, e ao que se começa a formar de modo mais orgânico, utilizando o hemisfério direito.
O xamanismo é uma forma de nos ligarmos à natureza e um estado de consciência mais próximo do sonho e da alma e do espírito que nos traz insights e ensinamentos.
O tambor xamânico é muito hipnótico, e penso que essa característica de viagem está presente nas minhas composições, na forma como sinto o ritmo e como construo as progressões de acordes, as dinâmicas e a narrativa.
O meu processo criativo está muito próximo da meditação. Penso que a criação é uma forma muito boa de meditar, porque nos ajuda a cristalizar e integrar os processos internos, os nossos questionamentos, a soltar e transformar a energia.
Gosto muito de me soltar com o som, e permitir-me explorar harmonias e acordes como se estivesse em plena viagem ou pleno vôo, e costumo gravar todas essas improvisações que surgem desse "stream of consciousness". A melhor matéria-prima vem desses rasgos, desses rompantes, dessa chuva que subitamente cai sob a forma de inspiração. O processo seguinte é pegar nas melhores partes, e aí sim, estruturar, organizar, construir, e esculpir. Mas esculpir sempre com música que esteja viva, que respire ainda, que tenha vindo dessas correntes.
Penso que a originalidade vem sem pensar muito nisso. O processo é tão visceral e transcende tanto a própria noção de linguagem, que aquilo que me move é mesmo o processo em si.
XM – Jeff Buckley e Tori Amos, Ravi Shankar e Dead Can Dance são as suas principais influências?
T.G. – A nível musical, sim. Jeff Buckley marcou muito a minha adolescência e ainda hoje oiço "Grace" e soa atual, era mais que um cantautor, era um exímio guitarrista e compositor que concebia as canções do início ao fim, como um Beethoven da folk. Isso inspirou-me a desenvolver também as minhas técnicas de guitarra e a forma como compunha.
Os Dead Can Dance sempre me ligaram a um sentimento muito épico, muito forte e muito profundo. Como se a sua música fosse uma espécie de local que existe dentro do imaginário coletivo, e que, eles, com a sua música, nos conseguem transportar para lá.
Tenho outras influências não musicais, mas, também, espirituais e filosóficas como o Terence Mckenna, Charles Eisenstein, Vandana Shiva, Rupert Sheldrake, Graham Hancock...
As viagens também me inspiram muito (estive em Barcelona, Londres, Turquia, México, Holanda...) as pessoas que conheço, as aprendizagens que tenho noutras áreas, tudo isso acaba por se refletir também na minha música em termos de conteúdo e mensagem e também na sonoridade.
Os processos vivenciais, os ciclos da vida, as mudanças... as crises acabam por catalizar a criatividade. Como se a vida de vez em quando pegasse em mim e me sugasse para dentro de um tornado, e eu fosse obrigada a transformar-me. Quanto mais fui aprendendo, com a vida, a entregar-me a esses ciclos de mudança, de morte e renascimento, mais enriquecedora, estimulante e mágica a própria vida se foi tornando. Como dizia o Agostinho da Silva: "A vida sabe sempre mais que nós."
XM – Os seus temas refletem não só a sua criatividade como uma filosofia muito própria transmitida musicalmente... Concorda? Defina-nos por favor o conceito "Conscious Music"...
T.G. – O conceito de "Conscious Music" foi uma reflexão que tive acerca do meu propósito enquanto artista. De 2005 a 2007 vivi em Londres e fui tocar várias vezes a um evento chamado "The Synergy Project", evento que juntava diversas áreas em simbiose por uma visão ou propósito comum de consciencialização e cocriação, e foi aí que me apercebi do poder da arte para fomentar a união e a cooperação em prol do coletivo.
Penso que a música sempre foi a minha ferramenta de catarse, o tapete mágico onde voava, o meu santuário e local sagrado onde me perdia para me encontrar, o meu diário de viagem.
Mas ao crescer, ao expandir, ao viajar e ao me começar a questionar acerca da forma como o mundo está a funcionar de forma tão disfuncional, comecei a aperceber-me que a música podia ser ainda muito mais – podia ser um espelho da consciência coletiva, que ajudasse não só a exorcizar sombras e falsas crenças, como mostrar uma tela de visões onde nos pudéssemos encontrar em comunhão com angústias e sonhos comuns à nossa experiência enquanto seres humanos neste ponto específico da nossa história.
Vivemos num mundo onde os governos são fantoches de corporações cegas de ganância, que ameaçam o futuro das gerações seguintes numa completa inconsequência abusiva e desrespeito pela natureza com a qual todos, e absolutamente todos, temos uma ligação umbilical.
Estamos a ser colonizados pelos bancos e a ser transformados em zombies globalizados, máquinas de fazer lixo, e escravos contentes em que os países deixam de ser países e a herança cultural e ancestral é desprezada e aniquilada. Felizmente as coisas estão a mudar e cada vez as pessoas estão mais conscientes.
O lado bom das crises é que catalizam a mudança que já devia ter começado há muito, como que é criado o contexto certo e a circunstância para o grande "aha!" coletivo...
E a música que se reporta a estes assuntos essenciais e cruciais acaba por tocar todos esses pontos sensíveis dos processos que todos estamos a passar, mas que nem sempre conseguimos expressar ou comunicar. A música acaba por ser uma teia de união.
XM – Considera como um ponto alto da sua carreira os concertos de abertura de Beth Gibbons dos Portishead no Coliseu de Lisboa e Porto em 2003? O que sentiu quando surgiu essa oportunidade? Como correram esses concertos?
T.G. – Foi um dos pontos altos pela oportunidade de partilhar a minha música com um grande número de pessoas. Senti-me muito bem, foi uma grande honra e uma grande oportunidade, e tive um ótimo feedback das pessoas. Foi, também, um momento de grande nervosismo, lembro-me de estar com as pernas a tremer quando entrei em palco, mas depois consegui improvisar pela primeira vez em palco, ao me deixar ir e, curiosamente, foi um momento em que as pessoas começaram a bater palmas, acompanhando o crescendo e a improvisação, até que houve um certo clímax, e foi o ponto alto da noite, com os maiores aplausos, e reação e resposta do público. A vida recompensa a coragem. Vale a pena correr o risco de nos estatelarmos ao comprido. O pior que pode acontecer é rirmo-nos disso depois. O que me aconteceu quando toquei com os Terrakota na Aula Magna em 2007 e escorreguei mal entrei em palco.
XM – Há outros momentos altos da sua carreira que queira partilhar com os nossos leitores?
T.G. – Houve outros momentos muito especiais. Todos os momentos que pude cocriar e colaborar com as pessoas que mencionei anteriormente foram muito marcantes e pontos altos de inspiração.
Em Amesterdão toquei no Club Lite, com mais 8 músicos de todo o mundo e a proposta era fazer um concerto de música improvisada, mas além do conceito de jam. Havia uma forte ligação entre todos nós, na forma como sentimos a nossa arte, e a espontaneidade de cada um tornava-se um diálogo entre todos, com a música, com o público, com dança, e com insights que íamos recebendo. Não houve protagonismo, nem virtuosismo exagerado e egóico, éramos como um círculo criando a uma só voz, e tive dos momentos mais bonitos, de sentir mesmo que estávamos a ter um diálogo de almas e não só a tocarmos música juntos, fazendo som pelo som, mas fazendo música com uma forte intenção.
Foi um momento muito alto pois transportou-me simultaneamente para um espaço de inocência de quando tinha 9 anos e pegava na guitarra e ia para outro mundo. Termos a capacidade de nos transformarmos e abrirmo-nos na forma como fazemos as coisas, renova sempre tudo, e renova a energia com que fazemos as coisas. É impossível morrer no hábito. É impossível estagnar quando simplesmente escutamos e nos entregamos. Tocar sem pretensões e sem expectativas, mas apenas a ligarmo-nos àquele espaço, àquele momento, àquela vontade que nos fez pegar num instrumento, e àquele sentimento puro de apenas querer comunicar, e sentir.
XM – Sabemos ter colaborado na produção e em vários espetáculos do Projeto Sinergia, do qual foi uma das fundadoras. Pode descrever-nos este projeto e os seus objetivos?
T.G. – Era um evento de "Conscious Partying" de 2007 a 2009, com arte visionária, nova música, terapia, palestras, numa perspetiva de sustentabilidade, partilha da consciencialização e educação ambiental para disseminar conhecimento, rumo a uma unificação por problemas essenciais existentes no planeta e à vivência de uma civilização planetária, utilizando a internet e os movimentos sociais como o super poder do novo século. A ideia de "algo maior que a soma das partes" estava presente nestes encontros, que foram a semente de uma expansão e criação de uma rede regional e nacional de colaboração e cooperação por visões comuns, relacionadas com soluções práticas e sustentáveis, com respeito pelo meio ambiente, numa linha de ecologia espiritual com vivências muito práticas.
XM – Considera a música uma arma? Perguntamos porque, se atentarmos no seu percurso de vida, estão sempre presentes preocupações relacionadas com a sustentabilidade dos recursos, com a liberdade das sementes, contra a privatização da água entre muitas outras causas...
T.G. – A música é tão infinita e livre, daí ser um caminho com tantas possibilidades infinitas, que acaba por conseguir conter tudo... A música une-nos em hinos de desespero e de esperança, cria pontes invisíveis, cura feridas que não se vêm, ajuda-nos a ouvir os nossos próprios questionamentos com mais volume, sintoniza-nos em questões que nos tocam a todos.
Quando a música serve a verdade, e serve um propósito, sentimos aqueles arrepios.
Sempre adorei música que me arrepiasse, que me fizesse chorar, rir, que me fizesse reagir, que me desse vontade de fazer coisas.
Mais que uma arma, a música é uma espécie de código divino, uma teia coletiva, um reino de compreensão dentro da confusão coletiva. É como se nos ligasse a uma rede wireless universal.
XM – A sua colaboração com coreógrafos, poetas, entre outros artistas tem-se mostrado também um caminho para uma formação mais holística? Fale-nos de algumas dessas colaborações...
T.G. – Em 2008 colaborei com a companhia de dança Amálgama e em 2010 com o Imprevisto Coletivo – numa abordagem improvisacional da música e do movimento, em que trabalhávamos a escuta e a ressonância – por vezes a música era conduzida pelo ritmo e harmonia dos movimentos, outras vezes o movimento era conduzida pela música. Foi uma experiência enriquecedora, sinestésica e muito inspiradora, de conseguir criar em plena simbiose de energias e dialogar no imediato através da expressão criativa, em busca da ressonância. O movimento vinha também inspirado por técnicas de tai-chi, e chi-kung, e todas as sessões eram como viagens meditativas e catárticas em que havia sempre dinâmicas e clímaxes coletivos.
A performer sagrada Iris Lican (que tem uma abordagem muito criativa e holística do movimento e com muita força intencional nos seus trabalhos), também é uma grande fonte de inspiração, tem um trabalho absolutamente pioneiro na fusão de técnicas energéticas e físicas num trabalho de corpo que busca autoconhecimento, cura e transcendência.
XM – Porque decidiu estudar o som, a música, yoga e xamanismo? Como se encontram em si todas estas áreas?
T.G. – A música decidi estudar para compreender melhor a linguagem e saber "falar" a língua. Para melhorar a técnica ao serviço da criatividade. Decidi estudar som para complementar a minha formação e profissionalizar-me na área, para conseguir, também, gravar em casa, para compreender melhorar os processos de mistura, gravação, etc... e realizar, assim, as minhas pré-produções em casa sem depender de ninguém.
Descobri o Yoga em 2000, comecei a praticar regularmente em 2005 e fiz formação em 2012. Tem sido uma medicina que me equilibra e me ajuda a centrar. Tenho uma mente muito ativa que fervilha de ideias como um vulcão. O Yoga ajuda-me a acalmar, a integrar, a ligar-me à respiração de forma consciente e também a criar de forma mais orgânica, pois através da respiração encontro outra forma, também, de sentir o ritmo, e para conseguir entrar em estado meditativo dentro do processo criativo.
O xamanismo é, até hoje, uma grande fonte de inspiração, porque me ajuda a lembrar sempre da origem de tudo. Ajuda-me a desligar da opressão constante da realidade material, da ilusão, futilidade e da distração mediática, da manipulação psicológica do sistema corrupto em que nos encontramos, e encontrar-me com uma estado de consciência mais próximo da vida, e da essência das coisas, e ajuda-me a encontrar as minhas próprias respostas e a criar o meu próprio caminho, sem necessidade de seguir velhos mapas, e a abrir-me e a confiar no desconhecido, na intuição e nas mensagens pessoais que recebo.
Todas estas experiências me fizeram ter vontade de partilhar com os outros este espaço de liberdade e criatividade que a arte ritual tribal cria. Por isso comecei a organizar círculos de dádiva, de partilha de sonhos, workshops de canto, círculos de música espontânea, porque estamos na Era da Reunião e da Participação, e penso que o papel dos artistas também é convidar o público a participar, a dançar, a cantar e vocalizar, para que quem habitualmente escuta possa também deixar-se ir e ligar-se a essa energia que é tão especial e que nos traz tanto preenchimento, e que está tão perto da essência da vida. As técnicas meditativas e respiratórias aliadas ao movimento consciente, à meditação em movimento, ao canto intuitivo tornam o processo criativo muito orgânico e dinâmico, e quando o grupo se sintoniza, todos nos começamos a transcender, a dialogar noutro registo além da própria linguagem e a superar limitações, sejam elas quais forem, e todos devem poder ter acesso a isso, para autoconhecimento, para terapia, para se libertarem, para se descobrirem.
É como se a vida estivesse sempre a convidar-nos para dançar, e dizemos quase sempre não, por vergonha, por medo, ou por falta de vontade. Mas quando levamos um abanão, e nos apercebemos de como o nosso tempo é tão curto, dizemos finalmente sim... e aí compreendemos, finalmente.
XM – Considera que a voz pode ser abordada ou encarada numa abordagem terapêutica, sagrada e intuitiva como ferramenta de catarse, liberação e apuramento do autoconhecimento e evolução pessoal. Pode explicar-nos toda esta sua conceção?
T.G. – A voz é o nosso instrumento primordial. É um veículo de comunicação que pode ser muito explorado como liberação pessoal para fortalecimento da autoconfiança e desbloquear.
Nascemos a chorar, e durante a infância somos máquinas de experimentação e criatividade espontâneas e, com a educação e a cultura, acabamos por nos fechar e inibir, o que começa a reduzir a vida e começa a criar-nos muitos autojuízos que nos impedem de experienciar a vida em toda a sua plenitude.
Muitas vezes passamos a nossa vida inteira sem realmente escutar a nossa voz. Apenas a dizer palavras, falando, conversando, mas nunca indo mais fundo em quem realmente somos, na nossa identidade, que é infinita.
Desde a minha adolescência que sinto que cantar me ajudou a mover-me através de processos emocionais e crises existenciais. É como se aliviasse a carga da vida, a intensidade de certas experiências, processos e traumas, e nos ajudasse a escutar melhor o que se passa dentro de nós – o som tem uma grande ressonância com os nossos corpos emocionais.
Ao trazer a respiração consciente para um trabalho de voz, alio a técnica vocal ao canto intuitivo, para que o processo se torne o mais além da linguagem possível. É um pouco como nos mantras – cada mantra tem uma vibração e uma intenção específica – com a nossa voz também podemos focalizar, vibrar e criar uma intenção com a energia da nossa força vital.
XM – Tal como tínhamos prometido inicialmente aos nossos leitores, vamos agora falar um pouco do seu trabalho "Rites of Passage". Podemos dizer que este trabalho sintetiza o que é a Teresa Gabriel enquanto ser humano?
T.G. – Acredito que, tanto pessoalmente como a nível coletivo, atravessamos um rito de passagem no nosso país e no planeta inteiro. Está a ser representado pela própria vida no palco da nossa história. É preciso ganharmos uma perspetiva mais ampla de todos os desafios que atravessamos. Aceitar a natureza cíclica da vida e permitir que a mudança continue a acontecer, de forma orgânica.
Este trabalho, em relação com toda esta ideia de ciclicidade, é um timelapse de 5 anos da minha vida. É uma espécie de diário de viagem, inspirado em viagens que fiz pelo mundo mas, também, inspirado na própria viagem que é a vida, com as suas diferentes carruagens, fases, estações... daí chamar-se "Ritos de Passagem".
O ser humano tem muita resistência à mudança, somos criaturas de hábito que muitas vezes morremos em hábitos sem nos apercebermos, com uma visão extremamente redutora da vida. Mas as mudanças fazem parte da vida e quanto menos resistimos a elas, mais entramos na dança da vida. Quando contemplo o mundo natural, tenho muitos insights, e a natureza cíclica das coisas existe em tudo – nas estações do ano, nas relações, nos trabalhos e na própria vida, que tem um início e um fim.
Este álbum é como o encerrar dos vários capítulos que fazem parte desta história, que foi uma história vivenciada de expansão e sonho, mas também de perda, desencanto e ruturas, finalizando com um auto reencontro e com um nível seguinte de transcendência.
Consegui incluir várias pessoas que me inspiraram e com as quais trabalhei e também homenageei pessoas que amei, que me amaram, experiências que me marcaram e transformaram, e cristalizei, condensei cada momento da demanda em cada canção, como se de uma prece se tratasse. Também incluí temas devocionais, instrumentais, temas com conteúdo mais filosófico, além de haver também algumas canções de amor, canções inspiradas em sonhos e canções que exorcizam algumas emoções e sentimentos mais viscerais.
Mas também é o abrir de um novo capítulo, num novo estado, com uma nova perceção das coisas e uma nova forma de me relacionar e reagir ao que a vida me traz.
XM – "Rites of Passage" é fruto de um trabalho de muitos anos?
T.G. – Juntei as canções que compus de 2005 a 2009 e comecei a gravar em 2010 com o Fernando Rocha, nos estúdios Numérica, em Paços de Brandão. O Fernando tem muita experiência a gravar música clássica e jazz e achei que seria a pessoa indicada para trabalhar, devido ao caráter intimista e acústico do meu disco. Gravámos guitarras e vozes, depois bateria e baixo, depois a sitar, o tambor, as cordas... Em 2011 começou o processo de mistura, mas tivemos alguns contratempos devido à distância e disponibilidade (o estúdio é no Porto e eu moro em Lisboa), e também com uma avaria técnica que demorou algum tempo a ser resolvida.
Entretanto fomos escutando e maturando o trabalho, continuámos a limpar e a sentir o que realmente definia este trabalho e o que estava a mais, e fizemos uma última mistura, com um novo equipamento, com o qual ficámos, finalmente, satisfeitos.
Foi bom haver intervalos de escuta no processo de mistura, para melhorar o trabalho e descansar os ouvidos.
XM – Muito obrigado por nos ter dedicado um pouco do seu tempo. Sabemos que desde 2012 tem andado a realizar algumas palestras... O que versam estas palestras? São para continuar em 2014 ou vai dedicar-se mais intensivamente à divulgação do "Rites of Passage"?
T.G. – As palestras falam um pouco sobre as coisas que tenho aprendido e descoberto com o meu percurso, pesquisas, com pessoas que me têm ensinado e inspirado, onde a minha música me tem levado, em termos de contactos e eventos que estão a trabalhar para disseminar conhecimento, unir as pessoas, e espalhar a necessidade de uma grande consciencialização e união para superarmos os problemas essenciais que nos afetam a todos.
Todos falam da crise económica, mas o colapso ambiental é bem mais grave, pois na verdade o dinheiro é uma riqueza abstrata enquanto ninguém sobrevive sem água nem comida, logo há a crescente consciencialização de que o futuro requer uma gestão holística dos nossos recursos. Daí eu realizar ações sobre a nova lei das sementes, a privatização da água e sobre a importância da criação de cooperativas e centros comunitários, baseados numa economia de recursos e de dádiva e trocas de bens e serviços que consigam criar abundância para todos, para que as limitações financeiras não tenham consequências tão graves como aquelas que aparecem nos noticiários, que deprimem as pessoas e as fazem entrar em desespero e adoecer em depressões e alienação. Os velhos cânones elitistas e separatistas estão a levar o nosso mundo a um desequilíbrio sem precedentes, mas compete a cada um bater o pé e ser assertivo e fazer a diferença pelas suas escolhas individuais e conscientes, e pela sua responsabilização pela criação de outra realidade por contraponto ao constante queixume e apontar o dedo sem nenhuma ação real.
Vivemos tempos de grandes desafios, talvez os tempos de maiores desafios de sempre... mas pode ser também o início do NOSSO mundo, se conseguirmos transcender a consciência egóica.
Nas palestras falo sobre o papel da arte enquanto transmissora de visões comuns e universais, da importância dos sonhos enquanto bússolas para o nosso caminho individual, de economias alternativas e do conceito de "dádiva" para ultrapassar a escravatura financeira, da unificação crescente da consciência coletiva rumo a uma civilização planetária, num tempo em que cada vez há mais eventos globais sincronizados e uma rede que se espalha, que era periférica mas que cada vez está mais diluída no nosso dia a dia na nossa adaptação aos desafios que enfrentamos. A vida está mesmo a desafiar-nos a sair da zona de conforto e viver de outra maneira. As soluções existem, as alternativas existem e agora importa irmo-nos alinhando uns com os outros, porque as crises são as grandes catalisadoras da mudança que já há muito devia ter começado. Convido as pessoas a ganhar outra perspetiva, a refletir, a questionar-se, a validar as suas próprias verdades e a ter uma visão não-dualista da realidade, para sairmos do pêndulo mental da dúvida que nos faz cair na hesitação, impotência e desespero. A vida é uma espiral... e nós também somos espirais. Se estagnamos, a espiral condensa e adoecemos, deprimimos... e a vida dá-nos um abanão para acordar. Se não acordamos, sofremos. Se nos adaptamos, evoluímos e crescemos. Todas as tragédias que nos acontecem são grandes provas de humildade para sermos melhores seres humanos. É preciso ter a coragem de morrer e renascer várias vezes na mesma vida.
Enquanto nos ficarmos simplesmente pelos velhos chavões e por manifestações, estaremos a gritar para as paredes, para o fantasma da democracia, para uma bandeira que perdeu o significado, porque os políticos estão vendidos ao grande capital.
Quando nos apercebemos do imenso poder criativo que temos, do poder da Internet para criar movimentos sociais e quando todos dermos, aí não será preciso abanar os pilares das torres da babilónia, os edifícios irão ruir por si mesmos... tornar-se-ão obsoletos e desnecessários. Todos temos algo para dar. E quando todos damos, libertamo-nos uns aos outros da máquina debulhadora que é a disfuncionalidade deste sistema.
A minha geração está cheia de pessoas de valor que poucas vezes têm reconhecimento ou espaço para desenvolver os seus projetos pioneiros.
O contexto atual acaba por criar as circunstâncias para todos finalmente percebermos como vivemos demasiado acelerados, materialistas. Foi preciso essa identificação ilusória com o material como medida de felicidade, para agora este processo ser tão visceral e sentindo todo este vazio... somos obrigados a crescer, a evoluir e encontrar outro sentido para as coisas. Os velhos mapas não ajudam a encontrar o nosso caminho e daí o lado bom de tudo isto é as pessoas estarem todas a questionar-se, a pensar e a sair da cadeira do espectador passivo.
Como estes temas acabam por estar presentes, direta ou indiretamente nas minhas composições, penso que continuarei a fazer ambos e falarei nisso em concertos, também. A música e o questionamento são quase inseparáveis no meu trabalho.
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