João Vasco. O professor e pianista português faz-nos uma visita guiada pelos seus projetos musicais.
João Vasco é professor de piano na Escola de Música do Conservatório Nacional. A sua vida é passada entre as salas de aula e os palcos. O nosso entrevistado já atuou em países como Espanha, França, Alemanha, Irlanda e Brasil. Já em Portugal, apresentou-se em salas como CCB, Gulbenkian, Culturgest ou Teatro D. Maria. É diplomado pelo Conservatório Nacional de Lisboa, licenciado pela Escola Superior de Música de Lisboa e Mestre em Artes Musicais pela Universidade Nova de Lisboa.
XpressingMusic (XM) – João Vasco, muito obrigado por nos dedicar um pouco do seu precioso tempo. Vamos começar com uma pergunta que passa mesmo por este aspeto do tempo... É muito difícil conciliar todos os seus projetos com a carreira docente?
João Vasco (J.V.) – Eu é que agradeço.
É, de facto, difícil conciliar a carreira docente e os projetos que mantenho ativos. Para além do horário letivo propriamente dito, planeamento e gestão de objetivos, cada projeto implica muitas horas de conceção, pesquisa, estudo individual e ensaios. Para além destas atividades, desenvolvo também trabalhos na área da fotografia, design gráfico e vídeo, pelo que procuro rentabilizar cada minuto da melhor forma.
XM – Abraçar a carreira docente é algo necessário para um performer num país como Portugal, onde o mercado para concertos é bastante limitado?
J.V. – Ensinar torna-se imprescindível. Por um lado pela segurança que o salário mensal representa, e por outro pela reduzida dimensão do mercado nacional de concertos, ineficaz rede de divulgação, reduzido poder de mobilização e captação de (novos) público(s), cortes constantes e exponenciais no financiamento das instituições culturais. Por tudo isto a perspetiva de viver exclusivamente de rendimentos provenientes da atividade artística é, atualmente, muito desanimadora.
O mercado de concertos em Portugal atravessa uma fase muito difícil, porém, diria que não totalmente inesperada. Para além dos fatores acima descritos, e salvaguardando que há ainda em Portugal teatros que apresentam boas condições de trabalho, se pensarmos que em países como a Alemanha, França ou Inglaterra há muito se tornou prática corrente (com as devidas exceções) que músicos e outros artistas trabalhem com receitas de bilheteira e não com cachet fixo, e constatando a conjuntura nacional, percebemos que esta mudança de paradigma nas condições dadas aos músicos para se apresentarem em concerto se torna inevitável. Não obstante, e infelizmente, há vários programadores, teatros e outras instituições culturais que, aproveitando o ensejo, agora nos apresentam condições verdadeiramente lamentáveis. Creio que seria importante a existência de uma mediação ou regulação institucional (sindical, ministerial ou outra) que garantisse que esta mudança de paradigma não retira razoabilidade e dignidade às condições dos artistas.
XM – Ao "passearmos" pela sua biografia verificamos que se divide em múltiplos e contrastantes projetos. Há no João Vasco uma vontade grande de fugir à rotina? É isso que o "empurra" para diferentes tipos de abordagens musicais?
J.V. – Não será uma fuga à rotina mas sim, por um lado, o reflexo de um percurso variado - paralelamente à formação clássica, e até aos meus 19 anos, experimentei o fado (na viola, acompanhando o meu pai que foi, desta forma, o meu primeiro professor), o rock, o jazz, o piano bar e até a música de baile - e por outro a vontade de perseguir um conceito de transversalidade artística (e estilística) em que acredito e que procuro praticar na maioria dos meus projetos. Aprendi a encarar o meu percurso "erudito" não apenas como um fim mas também como um meio para atingir outros fins, nunca perdendo, porém, o perfil de pianista de formação clássica que, essencialmente, define a minha identidade artística e estilística. Quanto ao facto de ter vários projectos ao mesmo tempo, reconheço que talvez se prenda com uma necessidade, porventura compulsiva, de criar algo novo. Ainda em relação a novas abordagens musicais, sinto que vivemos numa época em que praticamente não existe descriminação para com o músico clássico que quer explorar novas linguagens. Afinal, há boa e má música em todos os géneros e estilos. Em 2010 apresentei o meu primeiro trabalho discográfico com o projecto Alémfado, e apesar de ter sido concebido sobre encomendas a músicos e compositores de grande prestígio não posso deixar de reconhecer que foi com alguma ansiedade que o dei a conhecer no meio erudito. Felizmente as reações foram ótimas e algumas surpreendentes.
XM – Fundou com o pianista José Brandão o projeto "O Guardador de Canções". Pode falar um pouco deste aos nossos leitores e seguidores?
J.V. – Tenho o privilégio de ter fundado este projecto com um dos maiores conhecedores de Cancão que temos em Portugal, o professor e pianista José Brandão. Apresentámos o projeto pela primeira vez há quatro anos atrás nos "Dias da Música" do CCB e de novo nas edições seguintes, e desde o ano passado também no Museu Gulbenkian, para além dos recitais avulso que surgem. O conceito passa pela concepção de programas com temáticas diferentes, por vezes provocadoras, estruturados numa lógica de temáticas e subtemáticas que constituem a força arquitetónica e expressiva do alinhamento. Desta forma, e no âmbito do vasto repertório da Canção, conseguimos articular obras de todas as épocas, géneros e compositores, sem a necessidade de as agrupar de forma tradicional, por vezes bastante restritiva. Para além dos dois pianistas, também diretores artísticos, contamos com um leque alargado de cantores portugueses com o qual temos concebido recitais que felizmente têm tido excelente adesão, contrariando de alguma forma o desinvestimento que se tem vindo a sentir no repertório e nos intérpretes de Canção por parte de programadores e público. Os cantores que já colaboraram com "O Guardador de Canções" são: Ana Quintans, Alexandra Moura, Joana Seara, Sónia Grané, Teresa Gardner, Cátia Morezzo, Carolina Figueiredo, Inês Madeira, João Rodrigues, João Terleira, Hugo Oliveira, Job Tomé, Mário Redondo, Rui Baeta.
XM – A música portuguesa e a "Canção" são uma paixão à qual dedica uma parte considerável da sua vida. Podemos dizer que a música portuguesa é o fio condutor que o liga entre os seus projetos musicais?
J.V. – A Canção ocupou durante vários anos a maior parte da minha actividade como intérprete. Apesar de sempre presente, dedico atualmente menos tempo a este género, dedicando mais atenção a outros projetos. Apesar de não ser, verdadeiramente, o fio condutor dos meus projetos, a música portuguesa tem sido bastante importante no meu percurso. Tive a oportunidade de estrear música de compositores como Vasco Mendonça, João Madureira, Pedro Faria ou Mário Laginha e sempre que possível procuro encomendar obras a compositores portugueses.
XM – Nomes como António Toscano e Miguel Henriques tiveram grande influência e moldaram de certa forma o João Vasco que hoje temos?
J.V. – Moldaram e influenciaram decisivamente. Não posso deixar de referir também o Francisco Sassetti e a Sofia Lourenço, meus professores por menos tempo mas também marcantes na minha formação. Refiro, finalmente, o Luís Madureira que acreditou no meu valor, ainda enquanto finalista na ESML, e me chamou a participar em projectos que moldariam e impulsionariam o meu o percurso profissional. A este respeito aponto igualmente o papel que o Miguel Henriques tem vindo a desempenhar nos últimos anos, apresentando jovens intérpretes de grande valor em palcos e iniciativas de relevo e projeção.
XM – Alémfado, 20fingers, de Mozart A Chico Buarque, Poema Bar, E N S 3 M B L E / 1996 – R. Sakamoto, O Guardador de Canções e XX, XXI Canção Portuguesa são alguns dos seus projetos. São todos eles projetos pessoais? Fale-nos um pouco de cada um deles...
J.V. – O facto de, enquanto músico, nunca ter verdadeiramente explorado a composição levou-me a encontrar outras formas de expressão artística em que pudesse, literalmente, criar – salvaguardando que enquanto intérprete tenho também uma margem criativa ou "recriativa" muito interessante. Assim surgiu a fotografia, depois o design gráfico - impulsionado pelo meu amigo, também designer e músico, Marcelo Vieira - e mais tarde o vídeo - inspirado e influenciado pelo meu amigo realizador Tiago Figueiredo. O facto de desenvolver várias atividades artísticas simultaneamente obrigou-me a uma eficaz rentabilização do tempo e, finalmente, à perceção de que o arquétipo do músico clássico que investe tantas horas a conceber, estudar e ensaiar um recital para o apresentar apenas duas ou três vezes e de seguida recomeçar o processo num ciclo interminável, não se compatibilizava com as minhas necessidades. Por este motivo vou mantendo ativos os projetos que revelam elevados níveis de aceitação por parte do público e do programador, no sentido de os rentabilizar. Para além do recital" XX,XXI, Canção Portuguesa" com a honrosa participação do Barítono Job Tomé, ainda a aguardar estreia, e "O Guardador de Canções", de que já falei, é o caso de:
Alémfado: projeto financiado exclusivamente pelo Museu do Fado/EGEAC, resulta da encomenda a 8 compositores do universo do Jazz e da música erudita/contemporânea. O desafio lançado foi o de recriar para piano solo alguns dos fados mais conhecidos. Ao pianista e compositor Mário Laginha foi pedida uma obra original de caráter evocativo do fado, que recebeu o nome "Quaseumfado". Apresentado, total ou parcialmente, em Portugal, Alemanha, Brasil, França e em 2014 na Bélgica. A versão multimédia agora em digressão conta com filmagens, da minha autoria, de bairros históricos lisboetas.
20Fingers - De Mozart a Chico Buarque: projeto de piano a 4 mãos criado com o pianista Eduardo Jordão. Estreado em 2007 em Cork (Irlanda) é um dos projetos mais vezes apresentado e com reações verdadeiramente entusiasmantes por parte do público. O programa propõe uma viagem que começa em Mozart, Schubert e Satie passando pelo Ragtime e o Tango, acabando em Chico Buarque. Os arranjos, exclusivos, são da autoria dos pianistas Eduardo Jordão e Inês Mesquita. Em 2014 estrearemos um novo recital, concebido para um conjunto de apresentações no Brasil. Para além de Portugal e Irlanda, este recital foi também apresentado em Berlim, na abertura da 1ª edição do festival "Berlinda".
Poema Bar: projeto transversal para recitante e piano, reúne música e poesia de Portugal e Brasil, em torno de Fernando Pessoa e Vinicius de Moraes. Conta com a privilegiada presença do ator brasileiro Alexandre Borges. Estreado em 2011 na casa Fernando Pessoa, em Lisboa, foi já apresentado em mais de 30 cidades. Apresentado no âmbito da celebração do ano Portugal/Brasil assim como no centenário do nascimento de Vinicius de Moraes e na celebração dos 125 anos de Ricardo Reis, este projeto levou poesia e música a todos os tipos de público: da Favela do Morro do Vidigal, no Rio de Janeiro, à Fundação José Saramago, na Casa dos Bicos de Lisboa; da Biblioteca Joanina, em Coimbra, ao Teatro Alberto Maranhão, em Natal; da Embaixada Brasileira, em Berlim, ao Café Vilarino, no Rio de Janeiro; do Auditório do SESI/FIESP, na Avenida Paulista, ao Teatro Mário Viegas, em Lisboa; do auditório da Petrobras, em Cubatão, ao Teatro Bühne der Kulturen, em Colónia, "Poema Bar" já foi visto e ouvido por mais de 12 000 pessoas. Na maioria das apresentações temos contado com duas cantoras convidadas, a Mariana de Moraes e a Sofia Vitória.
1996 – R. Sakamoto por e n s 3 m b l e: o meu projeto mais recente mas um sonho antigo. Recital multimédia para vídeo e trio com piano. A música deste versátil compositor é bela, inspirada e surpreendente. Estreado em Novembro passado no Teatro Académico Gil Vicente, em Coimbra, e depois na temporada "Le Foyer" do Conservatório Nacional. A auspiciosa adesão e reação do público leva-me a crer que apresentarei este trabalho com regularidade. O trio e n s 3 m b l e conta com o violinista Pedro Lopes, a violoncelista Sofia Gomes e os vídeos da minha autoria.
Sobre estes e outros projetos poderão saber, ver e ouvir mais em www.joaovasco.com
XM – Como vê o atual momento que se vive em Portugal no que concerne ao ensino artístico? O que, em sua opinião, urge fazer tendo em conta a conjuntura que vivemos?
J.V. – É um momento terrível que afeta e afetará várias gerações. Vinco que a educação e a cultura são fatores determinantes na definição da identidade e do espírito coletivo de um país e neste momento estão a ser menosprezados como se de valores acessórios se tratassem. Poderia falar da situação injusta e ilegal em que vivem os colegas contratados do ensino artístico público, ou da situação de eminente fecho de portas que várias escolas do ensino particular e cooperativo vivem, por falta de pagamento dos contratos de associação por parte do estado, mas creio que tudo isto, e o que virá, resultam do menosprezo, desprezo e ignorância a que as esferas políticas de decisão votam as artes e o ensino das mesmas.
XM – Muito obrigado, mais uma vez, por esta partilha com os nossos leitores e seguidores. Há alguns projetos novos para breve que deseje partilhar? O João Vasco tem muitos sonhos que ainda não tenha concretizado e que mereçam particular atenção no ano de 2014?
J.V. – Eu é que agradeço a oportunidade. Desejo-lhes a continuação de um bom trabalho, que só agora conheci mas que irei, com certeza, acompanhar. Quanto a 2014, desejo que a cultura e o ensino artístico em Portugal recebam a atenção e a dignidade que merecem.
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