Filipa Lã fala na 1ª Pessoa ao XpressingMusic
Filipa Lã é licenciada em Biologia pela Universidade de Coimbra, possui o Curso Complementar de Canto do Conservatório de Coimbra e Mestrado e Doutoramento em Música – Canto pela Universidade de Sheffield, Inglaterra. Foi bolseira da Fundação para a Ciência e a Tecnologia durante o seu Doutoramento e Pós-Doutoramento, nas Universidades de Aveiro e Porto.
Entre as suas publicações destacam-se as das revistas internacionais Journal of Voice, Logopaedics Phoniatrics Vocology, Research studies in Music Education and Musicae Scientiae. A nossa entrevistada é ainda professora convidada do Mestrado em Fonética e Audiologia do CSIC em Madrid e do Curso Function of the Singing Voice do KTH em Estocolmo. Tem apresentado workshops em Performance Vocal, Novas Tecnologias Aplicadas ao Ensino do Canto, Acústica Vocal e Saúde e Bem-Estar dos Músicos em países como Portugal, Espanha, Inglaterra e EUA.
XpressingMusic (XM) – Agradecendo desde já a sua boa vontade, gostaríamos de começar esta entrevista por lhe perguntar se, em 1993, pensava seguir uma carreira na área da música ou se, por outro lado, pensava prosseguir na área da Biologia.
Filipa Lã (F.L.) – A música sempre esteve presente na minha vida. Faz tempo, … a minha mãe mostrou-me uma gravação minha, tinha eu 2 anos. Foi muito engraçado ouvir a minha voz com 2 anos... Não se entendia nada da letra mas a melodia estava lá toda, bastante afinada. É de facto extraordinário verificar que o canto já ocupava um lugar de destaque nas minhas preferências musicais. No entanto comecei os meus estudos não pelo canto mas pelo piano. Embora aos 5 anos já cantasse os salmos na igreja, iniciei os meus estudos musicais com o estudo do piano. O canto chegou um pouco mais tarde. Aos 14 anos fiz provas vocais para entrar para o coro misto do Conservatório de Música da Covilhã e foi aí que a paixão pela voz começou. Com as experiências performativas extremamente positivas como solista, foi impossível desviar-me da música e do canto, continuando os meus estudos musicais a par com a minha licenciatura em Biologia. Assim que terminei a licenciatura e tive um ano de experiência de ensino, resolvi largar tudo e dedicar-me inteiramente ao desenvolvimento da minha voz enquanto cantora. Fui para Inglaterra e aí a paixão pela performance tornou-se cada vez maior, surpreendentemente não só do ponto de vista artístico, como também do ponto de vista científico e pedagógico.
XM – Nomes como António Salgado, João Lourenço, Charles Hamilton, Richard Miller, e Rudolf Pierney, Susan McCullok, Robin Bowman, Claire Vangeliste, Ingrid Tobioson, Laura Sarti, Brian Gill e Håkan Hagegård foram marcantes e influenciaram aquilo que hoje faz? Alguns deles a influenciaram de forma mais evidente?
F.L. – Há sempre professores que nos marcam, uns pela positiva, outros, infelizmente, negativamente. Não tenho dúvidas de que a qualidade do ensino é muito importante na nossa formação. O nosso primeiro professor de instrumento deixa-nos sempre uma marca. No meu caso foi o Professor António Salgado, que me ensinou o “bê-a-ba” do canto e na altura me estimulou a ir mais longe. Quatro anos mais tarde, conheci a Carol Smith (medalha de ouro da Guildhall School of Music and Drama). Foi com ela que cresci vocalmente e musicalmente. Ensinou-me interpretação musical, questões de expressividade e uma técnica sólida como veículo a essa interpretação e expressão. Mas também foi com ela que compreendi que, para se ser um cantor com uma carreira internacional, é preciso ter personalidade para aceitar uma forma de vida muito peculiar. Com as suas partilhas e oportunidades de experiência que tive, cedo me apercebi que uma carreira internacional não era o que queria para a minha vida, mas sim a investigação e a sua aplicação ao ensino. Sinto-me muito sortuda por ter tido um pai que me ensinou, desde cedo, a conhecer-me muito bem, por isso no momento de tomar grandes decisões, procuro sobretudo fazer-me feliz a mim própria.
Depois, é claro que não poderia deixar de mencionar a minha experiência com Richard Miller. Foi com ele que, pela primeira vez, experimentei a perspectiva do ensino de canto da escola Americana. Foi uma experiência única, porque este grande pedagogo, infelizmente já falecido, tinha uma visão do que deveria ser o ensino do canto que eu própria agora tento seguir: o de aliar a ciência vocal à pedagogia e à performance. Qualquer tarefa vocal ou exercício que me pedia tinha um propósito muito claro, explicado conceptualmente pelo mesmo. Nunca me esqueço do primeiro raio-X que vi na masterclass que com ele fiz, da co-ativação do diafragma no canto. Depois também não me esqueço do que me disse: “you need to understand why you do certain things, so the others can also understand and the message is therefore conveyed”. O Håkan marcou-me pela facto de, além de ser um pioneiro com a criação do Singers Studio, ser um professor que estimula o pensamento crítico sobre interpretação musical e as expetativas do público. É um cantor bastante inteligente na abordagem que faz do repertório.
Agora, tenho como fonte de inspiração os Professores Johan Sundberg e Brian Gill. O primeiro, mais conhecido como “o pai da ciência vocal”, que tem dedicado mais de 50 anos à ciência vocal, porque é dos seus ensinamentos que “alimento” a minha pedagogia, performance e investigação. O Brian, porque como responsável pelo curso de Pedagogia Vocal na New York University, é com quem tenho discussões intermináveis sobre as mais diversas temáticas em voz, desde performances vocais de grandes cantores, ao sentido estético e comunicativo de uma dada peça, ao repertório para os alunos, etc.. Um cantor é um eterno estudante e ter alguém que nos ouve cantar, que nos compreende e que fala a mesma língua é fundamental para continuar esta jornada interminável de aprendizagem que é a música.
XM – Já desempenhou vários papéis, tais como o de Vénus e Terpsicore na Ópera La Púrpura de la Rosa de Tomás de Torrejon y Velasco, e tem-se apresentado em vários recitais em Portugal, Espanha, Austrália, e Inglaterra. Alguma destas participações assumiu um significado “mais especial” para si?
F.L. – Uma das performances que foi “mais especial” para mim foi um concerto de canto e piano de Dia de Reis, em 2008 em Penafiel, com o meu querido amigo, pianista e compositor Francisco Monteiro. O meu pai tinha acabado de falecer de uma doença oncológica que fez com que o meu regresso a Portugal, após 6 anos em Inglaterra, ficasse marcado como o período mais difícil e conturbado da minha vida. Se não fosse o Francisco, não teria tido a coragem para enfrentar as expectativas do público e de acreditar que seria capaz de lhes transmitir uma palete de cores e diferentes emoções, quando a única cor que via era cinzento... talvez não tivesse conseguido utilizar todas as “cores” que sou capaz, mas o facto de ter enfrentado este desafio foi algo extremamente importante enquanto artista. Com esta experiência reconheci a enorme importância de ter um pianista com quem trabalho regularmente que, além de excelente músico, me apoia muito mais além da interpretação musical e do processo de construção de um produto artístico. Acho que esta cumplicidade é fundamental para se poder fazer música “no matter what”.
XM – Sabemos ter concluído o seu Mestrado em Canto (2001) com Annette Thompson na Guildhall School of Music and Drama, em Londres e Jane Davidson, na Universidade de Sheffield. Também nesta Universidade terminou o Doutoramento em Estudos em Performance na área do Canto. Houve alguma razão especial por trás desta opção de ir para fora do seu país?
F.L. – Portugal ainda não é um país com uma cultura musical tão vasta, que seja capaz de dar guarida a todos os artistas que forma. Como o meu sonho inicial era o de seguir uma carreira em canto (e carreira enquanto performer é forçosamente pensar num mercado abrangente em que agentes por vezes fazem escolhas por nós), decidi ir para um país em que oportunidades performativas de facto existem, bem como os recursos necessários à entrada num mercado de trabalho extremamente competitivo. Aí ninguém nos conhece, por isso, cantamos se cantamos bem e ponto final. A Annette tinha imensos planos para mim enquanto performer, mas quando conheci a Carol Smith e o Professor William Ledger, decidi ficar por Sheffield e seguir Doutoramento. A vida frenética que Jane levava, a liberdade que tinha profissional, que lhe permitia fazer investigação e ao mesmo tempo ser encenadora e performer, fizeram-me pensar que um dia gostaria de ser assim: conciliar tudo numa só pessoa. É esgotante mas a gratificação de podermos fazer algo que realmente gostamos e nos estimula, vai muito além de tudo o resto. Depois tive a sorte de trabalhar com pessoas como William Ledger, um verdadeiro visionário, criativo, humano, excelente profissional médico, que me abriram as portas à realização de um estudo científico que deixaria marcas em áreas como a medicina e o canto. Foi assim que acabei por conciliar a biologia com a performance musical. E não poderia ter melhor formação do que a orientação dele na parte endocrinológica e desenho de estudo, a da Jane, na parte ligada à Psicologia da Performance Musical e o Professor David Howard (York University), como mentor na parte de avaliação acústica e electrolaringográfica da voz. Foram os anos mais fantásticos que já tive (além dos anos que passei em Coimbra enquanto estudante). Não posso deixar de agradecer ao meu país, na figura da Fundação para a Ciência e a Tecnologia, por ter acreditado nas minhas capacidades e cedido o apoio financeiro necessário a uma jovem para se dedicar a 100% à sua formação pós-graduada.
XM – O regresso para Pós-Doutoramento no Departamento de Comunicação e Arte da Universidade de Aveiro e na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto foi o natural regresso a “casa”?
F.L. – Não sei se foi um regresso lá muito “natural”....com o falecimento do meu pai...além disso, regressei a um país completamente diferente do que tinha deixado, onde ser-se Pós-Doc em música era algo “muito novo”, onde não existia equipamento de investigação vocal acessível e onde as mentalidades ainda viam a ciência vocal e performativa como algo muito distante do que conheciam. Hoje, passados quase 7 anos, as mentalidades começam a mudar, o equipamento que entretanto se adquiriu já deu origem a várias publicações internacionais em revistas importantes, prémios e a possibilidade de formação de uma nova geração de cantores, que acreditam, tal como eu, que cantar e ensinar canto requer interdisciplinaridade. Nesta matéria, ser-se professor é uma vocação que requer dedicação, principalmente no que concerne à formação continua, partilha com a comunidade internacional (de pedagogos e de cientistas) e uma “mente aberta” e motivação para conciliar diferentes tipos de conhecimento. Neste aspecto, a Universidade de Aveiro foi uma natural casa para mim. O empreendedorismo e inovação que lhe são característicos, permitem-me formar jovens, desenvolvendo estudos interdisciplinares na área da saúde e em conjunto com outras Universidades, como é o caso da Universidade do Porto. Existem pessoas em Portugal com muita capacidade, só lhes temos que dar oportunidade. É para isso que também existem as universidades, cada vez com um papel mais ativo nas vidas de todos nós.
XM – Enquanto cantora realizou vários concertos de Canto e Piano em Inglaterra. Que tipo de reportório abordou nestas ocasiões?
F.L. – O repertório foi sempre muito variado. Gosto de desafios! Assim opto por peças em línguas menos comuns, como Russo e em linguagens musicais contemporâneas. Por exemplo, gosto imenso do dramatismo do ciclo Canções de Dança e Morte de Mussorgsky, ou da loucura inerente aos quadros das Satires, de Shostakovich. Mas o que me dá imenso prazer é poder cantar na minha língua mãe, o Português. Há ciclos para voz e piano lindíssimos... por exemplo o ciclo do compositor Mário de Sousa Santos, Tristes Cantigas de Amor, com poemas de António Botto, ou as canções de Eurico Carrapatoso, Cinco Canciones para Piano y Voz Emocionada, ou ainda o ciclo de António Pinho Vargas, 9 Canções de António Ramos Rosa. O repertório Português do século XX é extenso e lindíssimo, devemos fazer-lhe justiça e levá-lo além fronteiras.
XM – Foi solista em alguns concertos com orquestra. Pode falar-nos um pouco destas experiências? Quais as orquestras que mais a marcaram enquanto intérprete?
F.L. – A orquestra de Perth, na Austrália, sem dúvida. Era uma orquestra que estava mais familiarizada com repertório romântico, mas a sua resposta a repertório como Monteverdi e Schütz foi extraordinária. Ganharam uma sonoridade que fazia parecer que trabalhavam este tipo de repertório desde sempre. Eu penso que aí Andrew Laurence-King deve ter tido grande responsabilidade. Verifiquei que de facto, a sonoridade da orquestra e a qualidade musical dependem, em grande parte, não só dos músicos, mas da experiência e representação mental do maestro.
XM – Filipa Lã tem estudado com Carol Smith e trabalhado com o Diretor Artístico de Música Barroca, Andrew Lawrence-King e Jane Davidson. Isto mostra como a performer Filipa Lã tem um trabalho sempre paralelo com o da Filipa em formação?
F.L. – Sempre! A aprendizagem é o que move a humanidade e um músico não deve ser uma exceção. Da colaboração nascem projetos ricos; do diálogo, da partilha e da realização de experiências é que o conhecimento adquirido é consolidado e o novo surge. Sem esta dualidade, ou melhor, pluralidade, não poderia ser feliz.
XM – Temos conhecimento de que os resultados das suas investigações têm sido apresentados em várias conferências internacionais. A algumas das suas investigações foram, inclusivamente, atribuídos três prémios de investigação da “Society for Education, Music and Psychology Research” (2005), “European Society for the Cognitive Sciences of Music”, (2007) e “The Voice Foundation” (2011). Sobre que áreas de estudo se tem debruçado de forma mais evidente nestes últimos anos?
F.L. – Nestes últimos anos tenho explorado investigação com aplicabilidade na otimização da performance, nomeadamente abordando o músico como um “atleta emocional de alta competição”. Também tenho publicado na área da pedagogia vocal, contribuindo com um capítulo sobre os requisitos para o desenvolvimento de um cantor profissional (Ashgate Publications) e um capítulo sobre o ensino do canto com as novas tecnologias, publicado em Dokumantion des XXIV Jahreskongresses des BDG und des EUROVOX Kongresses, Munich. A performance musical é uma forma de arte que, tal como muitas outras, se revê no conceito de gestalt, isto é, as diferentes partes que constituem o todo estão de tal forma interligadas, que o todo é mais do que a soma das partes. Assim sendo, a investigação em ciência performativa (ramo de estudos em performance) o que pretende é, inicialmente, decompor o todo, de forma a poder compreender como as partes se articulam, colocando-as de novo juntas para que o todo possa ser otimizado. Por exemplo, o prémio recebido em 2011 pela Voice Foundation, em Filadélfia (EUA) constitui um exemplo claro desta ideia. Da observação e decomposição das diferentes formas de interpretação de um cantor de elite, conseguiu-se comprovar que a afinação no canto, mais do que uma competência técnica, é um requisito à expressividade musical.
XM – Para terminar, agradecendo mais uma vez a gentileza de ter aceitado o nosso convite, gostaríamos de saber como consegue conciliar a carreira de performer com a docência, visto ser Professora Auxiliar Convidada no Departamento de Comunicação e Arte da Universidade de Aveiro, investigadora no Instituto Nacional de Etnomusicologia, Música e Dança (INET-MD).
F.L. – Com uma enorme motivação que vem precisamente do facto de que gosto imenso do que faço e, sobretudo, acredito no que faço. Quem me conhece sabe que sou uma pessoa de fortes convicções, capaz de sacrifícios quando acredito que o resultado final poderá de alguma forma contribuir com algo de muito positivo. A minha energia vem dessa convicção e do apoio dos amigos e da família. Estes estão sempre presentes, nem que seja por skype, mensagem ou telefonema (já que vivem espalhados em Portugal e no estrangeiro). São eles que, quando a energia acaba, recarregam as minhas baterias.
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