Bach, Vivaldi – O Íntimo e o Mundano no Barroco Instrumental

O Íntimo e o Mundano no Barroco Instrumental

Bach e Vivaldi são dois expoentes máximos do barroco musical. Os seus legados têm inúmeros aspetos em comum. Porém, a música que se fazia na Europa naquela época, a primeira metade do século XVII, era muito diversificada. Por detrás de uma sonoridade característica – em grande medida resultante do recurso generalizado ao baixo contínuo e a expressivas melodias ornamentadas –, esconde-se um universo fascinante que permanecerá sempre por descobrir. Revelam-se nele existências longínquas, subtis contornos de vivências que de outra forma não conseguiríamos vislumbrar. Este concerto abre-nos essa porta, confrontando duas personalidades antagónicas: Bach, envolto na cultura protestante e ao serviço da convivência mais recatada dos aristocratas germânicos, aqui com duas sonatas para flauta e cravo, contidas nas emoções, substanciais no conteúdo; Vivaldi, imerso no cosmopolitismo de Veneza, deixando-se contaminar pelo mundo, incorporando na sua música o «rústico», evocando madrigais quinhentistas, discorrendo no oboé um virtuosismo exuberante.

Notas ao Programa
por Rui Campos Leitão

Não é raro ouvirmos a opinião de que a Música Barroca soa toda igual. Menos ainda acerca da música de Vivaldi, que mereceu de Igor Stravinsky a ilustre apreciação de que o compositor italiano «não terá escrito quinhentos concertos, mas sim o mesmo concerto quinhentas vezes». Sem ingenuidade, generalizações como estas incorrem em leituras simplistas, reduzindo à condição anedótica realidades que tantas vezes se revelam fascinantes. Há nelas, no entanto, uma parcela de verdade. Com efeito, a esmagadora maioria da música que se fez na Europa no decorrer da primeira metade do século XVIII ostenta recursos técnicos e estilísticos muito semelhantes: a demarcação das tonalidades maiores e menores; bruscas alterações de intensidade e velocidade; o primado da melodia; a robustez do baixo contínuo. Não obstante, esconde-se por detrás, uma grande diversidade. Para além de uma escuta menos atenta, logo se descobrem outros matizes; naturais reflexos dos contextos originais, dos propósitos da criação, das sensibilidades envolvidas...

Contrapõem-se aqui obras de dois nomes emblemáticos da música desse período: J. S. Bach e Antonio Vivaldi. Resplandece a beleza de repertório que é consensual nos nossos dias, mas também se iluminam diferenças. «O íntimo e o mundano» é mote para se colocar lado a lado temperamentos inconfundíveis: o de Bach, que logo associamos a um espírito metódico, conservador, aparentemente reservado, atento às mais modernas tendências, mas também à música do passado; e o de Vivaldi, uma personalidade mais controversa, irreverente, cosmopolita, propensa à rutura. Os especialistas reservam para o músico alemão os capítulos mais destacados, o que se deve, entre outros fatores, à mais decisiva influência que teve no decurso da História da Música. Bach soube assimilar o que de melhor lhe chegou de todos os quadrantes. Fez a síntese e acrescentou uma densidade harmónica que abriu caminho à geração de seus filhos e de compositores subsequentes, como Haydn e Mozart. Mas lembremos que Vivaldi, sete anos mais velho, foi para si uma importante fonte de aprendizagem. Este havia desenvolvido definitivamente o formato Concerto, estendido o alcance da condição do solista e consolidado muitas práticas que daí em diante passaram a ser recorrentes na escrita orquestral. Contas feitas, dificilmente se pode escolher entre as Quatro Estações e os Concertos Brandeburgueses, entre o Gloria e o Magnificat.

Abrem e encerram este programa duas sonatas para flauta e cravo de Bach, música vocacionada para a convivência informal dos salões aristocráticos. A primeira (BWV 1030) explora magistralmente a combinação dos dois instrumentos, não relegando o cravo para a mera função de acompanhamento. É também uma das obras tecnicamente mais exigentes do repertório para flauta, aproximando-se da configuração de um concerto para instrumento solista. Terá sido composta em 1736 em Leipzig, para o Collegium Musicum, uma associação que juntava num ambiente informal músicos e melómanos em torno dos prazeres da música vocal e instrumental. Já a segunda (BWV 1035) é ligeiramente mais tardia. Terá surgido em 1741, no contexto de uma viagem a Berlim, junto da corte de Frederico O Grande. Muito embora Bach não se tenha encontrado com o Rei da Prússia, esta obra terá sido composta para o seu valete – ambos tocavam flauta transversal.

Com Vivaldi, destacam-se o oboé e as cordas da orquestra, estas últimas em dois concertos sem solista compostos no final da década de 1720. No concerto Alla rustica é bastante característica a pujança rítmica do primeiro andamento, como se fosse evocada uma dança rústica; ao que se deve o cognome. O Adagio central comprova que a beleza pode ser alcançada por intermédio da simplicidade. No terceiro andamento regressa o vigor rítmico, com um tema que também assume o caráter de uma melodia tradicional. Depois, no concerto Madrigalesco, manifesta-se deliberadamente um estilo arcaico. São cromatismos emprestados dos antigos madrigalistas, pintando expressivamente palavras que se adivinham. O protagonismo do oboé fica reservado para os outros dois concertos, que Vivaldi também terá composto para La Pietà. Viviam então em Veneza célebres oboístas, alguns dos quais ensinaram as alunas daquele orfanato. Como seria de esperar, sucedem-se os «ritornellos» e os «episódios», com destaque para os contrastes dinâmicos, como que simulando os efeitos sonoros que se ouviam no espaço da Basílica de São Marcos, ali mesmo ao lado.

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